Censura insana contra Literatura na Escola

Tentativa de censura ao livro O menino marrom é mais um ataque ao mundo da escola no que toca à formação do estudante-leitor cidadão. Que escola queremos? Que sociedade teremos?

Por Paulo Sérgio de Proença (*)

Recentemente ocorreu mais uma investida contra material de natureza literária utilizado em escolas. Em março deste ano, o livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, foi censurado em escolas de alguns estados do Brasil, dentre eles Rio Grande do Sul e Paraná, sob alegação de vocabulário inadequado para o público a que se destina, composto por jovens (ensino médio).

Neste junho, a Secretária de Educação do Município de Conselheiro Lafaiete (MG) suspendeu o uso do livro O menino marrom, de Ziraldo, utilizado no Ensino Fundamental, sob a alegação de que na obra há trechos agressivos; foram destacadas dois: a primeira registra a reação do menino marrom que confessou desejar que uma idosa sofresse um acidente ao atravessar uma rua; a segunda se refere a um pacto de sangue entre dois meninos (o outro é o menino-cor-de-rosa), para selar uma amizade que entre ambos tinha nascido. Para as pessoas de bem, esses trechos não seriam boa referência na formação de adolescentes nem de jovens.

Tais ocorrências parecem ser manifestação orquestrada, com objetivo de pôr em descrédito princípios didático-pedagógicos das escolas públicas que seguem os parâmetros recomendados por pesquisadores e instituições especializadas e por políticas públicas que não podem ficar à mercê de opiniões quase sempre conformadas a princípios políticos redutores.

Alcance adicional aponta para versão continuada do que se convencionou chamar de guerra cultural, termo cunhado em leitura equivocada de Antonio Gramsci e ajeitada na arregimentação ultradireitista no Brasil por Olavo de Carvalho. Segundo essa ideia, a esquerda perdeu a guerra do poder imediatamente após a ditadura miliar e tentou compensar a perda na ocupação de espaços simbólicos, como escola, cultura, sindicato, igrejas etc.

Na versão atual dessa leitura, seria necessário combater e anular esse suposto espaço da esquerda e, nesse cenário, pode-se entender outras iniciativas dirigidas sobretudo contra a valorização da educação no Brasil, que não foram poucas.

Citam-se algumas: desqualificar a importância de Paulo Freire, que foi chamado de energúmeno por ninguém menos que o inelegível criminoso; em 2019, o deputado Heitor Freire (PSL-CE), propôs projeto para revogar a lei que declarou o pedagogo pernambucano Patrono da Educação Brasileira. Paulo Freire foi o proponente da renovadora Pedagogia da Libertação, mundialmente reconhecida e celebrada, mas, para o deputado, “o modelo freiriano de educação é celebrado pela reversão, pela indisciplina, pela insubordinação do aluno perante o professor”[1], em evidente avaliação desconexa com o que de fato é o método do ilustre educador brasileiro.

Esses ataques não se restringiram ao campo ideológico. O governo que se instalou em 2019 fez de tudo para desestruturar a educação do país. Cinco ministros tiveram gestão catastrófica incompetente e inimiga da Educação; Milton Ribeiro, evangélico, para quem a universidade é para poucos, abrigou escândalos de corrupção descarada, com pastores negociando em ouro a influência divina nos corredores da Educação; houve intervenção de natureza ideológica no ENEM, evasão escolar e queda no número de matrículas. Cortes e desvios de verbas que inviabilizaram a rotina das Instituições de Ensino, que passaram a indispor dos recursos necessários para o funcionamento rotineiro das unidades (nos anos  Bolsonaro, foram cortados R$ 113 bilhões (aproximadamente 20% do período)[2].

Em adição, podem ser citadas a militarização do ensino, a precarização das condições de trabalho e da carreira docente e dos profissionais da área, com congelamento salários e de bolsas de pesquisadores, futuros cientistas, cenário no qual o Brasil vinha demonstrando considerável avanço.  Sem falar na desastrosa gerência da educação na pandemia.

Ainda outra ocorrência vale citar. André Valadão, pastor supostamente ungido por lábia divina, mas protegido na prática por roupa de grife e joias caras no braço e no pescoço, em vídeo publicado neste 20 de junho, aconselhou não mandar filhos para a faculdade, pois as meninas se tornam vagabundas, rodadas, doidas; para esse mercenário da fé, faculdades são a porta do inferno. Tudo sob aplausos acumpliciados de machismo trevoso.

O que mais ameaça e assusta é que esses formadores de opinião, uivando ameaças, renegam o pregado. Inimigos do conhecimento libertador, são lobos que se alimentam de dinheiro e de crimes, a julgar pelo que se vê na imprensa e nas redes sociais: um membro da súcia, o pastor Lucinho Barreto, disse recentemente nas redes sociais ter beijado filha na boca, um mulherão (“ah, se eu te pego”, afirmou, sem constrangimento nenhum), também aplaudido por plateia masculina, que não pôde conter sorrisos de satisfação. Joilson Santos, outro pastor dessa rede religiosa, era responsável por ministrar ensino a crianças e jovens, em Guarulhos (SP); ele foi preso em junho do ano passado, acusado de estuprar menores[3]. Como se vê, é compreensível que esses aproveitadores não queiram que jovens possam se educar e formar consciência crítica. Eles nos mostram, ainda, que em algumas células religiosas nossos filhos estão menos protegidos do que nas escolas que atacam.

Por tudo isso, compreende-se que passamos pela pior situação a que o país foi exposto em sua história recente – e talvez remota.

Faz parte desse conjunto de ações o trâmite no Senado de um projeto de lei que tem a finalidade de autorizar a homeschooling[4], que tem a disfarçada intenção de desobrigação à frequência escolar a crianças que se incluem em condições próprias de famílias privilegiadas, para as quais há, no ambiente da escola, a leitura de livros de Tenório e de Ziraldo.

Mais do que lances de estratégia extremista, a desqualificação dessas obras carece de elementar fundamento; a julgar pelos argumentos evocados, seria preciso censurar obras de Jorge Amado, de Machado de Assis e até da Bíblia, para citarmos apenas poucas fontes de prestígio. Assusta, contudo, que participa desse conjunto complexo de forças, recalcado com intenção nas polêmicas, o racismo.

No texto de Tenório é o drama de negras e de negros o motor ficcional; o autor põe em cena o que brancos não querem ver nem assumir: o massacre material e simbólico de tudo que diz respeito à vida e à cultura negra, na reprodução do tradicional racismo à brasileira, cuja violência perversa não cabe em termos fugidios nem nubilosos. Tenório retrata o drama de ser negro no Brasil, escrevendo dores e martírios com a tinta extraída de sua própria pele.

Ziraldo, consagrado escritor de literatura infanto-juvenil, como O menino maluquinho, teve também sua obra revisitada pela tropa ideológica da extrema direita. Em O menino marrom, o título anuncia a dimensão do preconceito racial. Na época em que o livro foi publicado (1986), não havia ainda o encorpado debate hoje corrente sobre os desdobramentos do racismo. Os personagens são identificados como menino marrom e menino cor-de-rosa, eufemismos para negro e branco. No Brasil há uma graduação cromática entre os extremos branco-preto para referência à cor da pele. A tendência é fugir do preto, que é associado ao mal, ao pecado, ao demônio. Assim, pessoas negras tendiam a não assumir essa condição, procurando enquadramento mais distante desse polo; daí surgiram: moreno, mulato, marrom, marrom bombom, cor de jambo, dentre outras; é comum, ainda, a expressão “limpar o sangue”, ideal de casamentos mistos que tenderiam a embranquecer a pele negra, o que não é recente no Brasil, conforme indica o famoso quadro “A redenção de Cã”, de 1895:

 Quadro: “A redenção de Cã”

Fonte: https://www.edusp.com.br/wp-content/uploads/2018/08/%E2%80%98A-Reden%C3%A7%C3%A3o-de-Cam%E2%80%99.jpg

Contra o menino marrom pesa, disseram, o fato de ele ter desejado que uma idosa fosse atropelada, o que não seria bom exemplo para leitores mirins. Contudo, não se contextualizou a cena, pois o menino marrom ofereceu auxílio para ela quando, atravessando a rua, ia à missa, o que foi recusado com estas palavras: “Não careço de tua ajuda. Me larga, menino, por amor de Deus! Deu um tapa na mão do menino marrom, e atravessou a rua sozinha”.

A cena é crucial para entender a reação do menino marrom – e foi apagada para culpa-lo, como acontece com negros neste país. A reação da idosa repele a inocente ajuda da criança e, ainda mais, o tapa revela o que teria motivado a reação do menino. Mas, poderia alguém perguntar: como uma criança reage desse modo? A resposta está na observação das atitudes de nossos filhos e filhas. Principalmente daquelas que não leram o livro. Oura pergunta cabe: como uma idosa, indo à missa, bate numa criança? O livro seria impróprio para a terceira idade?

Esse rigor, se aplicado com coerência, deveria censurar um dos mais famosos romances já por aqui escritos: Dom Casmurro, de Machado de Assis. O narrador, quando jovem, para sair do Seminário, não querendo ser padre, desejou a morte de sua própria mãe, obstáculo para seus desejos. Ela não morreu por isso e depois Bentinho se arrepende do que tinha pensado.

Outro argumento contra o livro de Ziraldo é o fato de os meninos terem feito um pacto de sangue, o que, igualmente não é exemplo para aprendizes infantis. Nunca leram a Bíblia? Em O menino marrom o pacto não se efetua, pois não há sangue nem tinha vermelha, vicária. Acabaram usando tinta azul, o sinal de amizade entre eles, que tinham superado as diferenças da cor de pele. Sangue azul oferta ar de nobreza para celebrar o encontro inocente de duas crianças em formação, nobreza que não tiveram os apóstolos censores da obra, esquecidos de considerar que a salvação da humanidade, segundo o cristianismo que alegam professar e defender, só é válido por um pacto de sangue.

(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA


[1] Transcrição feita conforme portal da Câmara Federal, disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/ 558470-projeto-revoga-lei-que-declarou-paulo-freire-patrono-da-educacao/.

[2] Conferir em: https://jc.ne10.uol.com.br/colunas/enem-e-educacao/2022/12/15138129-governo-atual-e-o-que-mais-cortou-em-recursos-de-educacao-e-ciencia.html.

[3] Para mais detalhes, ver: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/policia-prende-pastor-da-igreja-batista-da-lagoinha-suspeito-de-estuprar-adolescentes-em-sp/.

[4] Mais informações em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/26/projeto-que-autoriza-educacao-domiciliar-comeca-a-ser-discutido-no-senado.

 

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