Chacinas como política de Estado

Epigrafia  das   narco-milícias

A violência estatal tem as milícias como corpo para as ações cotidianas e de violência, milícias que atuam, muitas vezes, em simbiose conflitante com as organizações não-estatais catalogadas como Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC) e forças congêneres que nasceram — no útero do Estado brasileiro — no perverso, racista e violento sistema penitenciário do país. Considerando que o CV nasce nos presídios, instância do Estado brasileiro, o foco central de compreensão e de combate à violência, e não o derivado, está localizado no aparelho do Estado, que é expandido para os morros e favelas pelas milícias. O crime organizado pelas narco-milícias é hegemonizado por quadros policiais e agentes oriundos de forças constituintes do Estado.

Por Fausto Antonio (*)

Violência  policial  cotidiana  e  racismo 

A violência policial, o racismo estrutural e a repressão contra trabalhadores e populações pobres são práticas históricas e rotineiras no Brasil. A recente e hedionda “operação” no Rio de Janeiro – uma chacina praticada por um sistema policial que funciona impunemente como esquadrão da morte – assassinou com base na cor da pele, na condição social e no território usado.

Não há qualquer eficácia nessa tática para combater o crime organizado. O monopólio do tráfico de drogas deve ser combatido a partir do seu epicentro no sistema financeiro, e não através da execução de pessoas negras e pobres.  O  pseudo  combate  às  drogas,  muitas  vezes categorizado  como  guerra  às  drogas,   é  um meio  para a  segregação racial  e igualmente  meio para o emparedamento, na linha de  terror  cotidiano e  racista, das  populações  faveladas  e  dos  morros.

O mesmo raciocínio se aplica ao tráfico de armas. É necessário ser muito ingênuo ou estar completamente alheio à realidade para acreditar que os varejistas do comércio de drogas e armas são os únicos  e  principais responsáveis. Os verdadeiros sujeitos ou agentes responsáveis por liberar as fronteiras, os portos, os aeroportos e, sobretudo, por controlar os milhões que transitam pelo sistema financeiro nacional e internacional são os que detêm o poder e o monopólio da venda  de  armas e drogas. Certamente, não  são os  negros e  pobres   favelados,  a  despeito  de  o  sistema  policial  matar  exclusivamente  orientado pela ótica de classe e raça.

A denominada “guerra às drogas” articula dois polos com interpenetração dialética. A política, concebida originariamente pelo imperialismo estadunidense, possui caráter, conteúdo e objetivo inteiramente intervencionistas. A pretexto do combate às drogas, os EUA criminalizam governos,  são  os  casos  da Colômbia  e  Venezuela,  articulam e executam golpes de Estado, sanções, bloqueios e embargos. Nesse escopo, o intervencionismo solapa a soberania de nações e de governos, seletivamente taxados de “narcoterroristas”. No contexto interno, o aparato repressivo do Estado brasileiro, a serviço da burguesia, utiliza o combate às drogas como instrumento eugenista e racista. Com o apoio dos sistemas jurídico e midiático, ele assegura a execução de negros.

Espetacularização do Samba e das Chacinas

O  título dessa  seção não  é  uma  digressão. A violência estrutural racista  contra negros  é  uma  totalidade opressora e  tem muitas  faces.  Duas são  emblemáticas  para  a  compreensão da  cidade  do  Rio  de  Janeiro  como  laboratório  experimental de  políticas racistas e fascistas contra negros  e  pobres. Estamos nos  referindo,  conforme  o  título, à  espetacularização dos  desfiles  de  escolas  de  samba e  às  chacinas  contra  negros e  pobres.

A  cidade do Rio de Janeiro, em conformidade com os propósitos históricos de dominação da branquitude brasileira, tem sido laboratório de experiências de controle das massas negras e pobres nos espaços festivos e, sobretudo, no uso segregado do território. Morros e favelas são formações socioespaciais de negros expulsos e expropriados dos curtiços e de outras formas de habitação fixadas nas áreas urbanas do Rio de Janeiro.  Antes, nos estertores do trabalho escravizado, a população negra foi expulsa e expropriada nas senzalas e fazendas dos meios de produção e  criminalizada, no mesmo processo, pelo Crime de Vadiagem.

O Estado, controlado historicamente pela burguesia branca, tem atuado sistematicamente na produção e contínua atualização do racismo anti-negro. Morros e favelas nascem como socioespacialidades negras e segregadas pelo projeto opressivo e o conjunto de classe e raça, parelha indissociável. A segregação e o uso seletivo/discriminado do território, no carnaval, atendem à indústria turística e midiática-televisiva e são acompanhadas de forte repressão policial e de normas segregacionistas, que são atualizadas pelas instâncias (bolsões do Estado) ligadas aos aparatos de repressão e da chamada justiça.

De modo pedagógico e midiático, o controle racista das escolas de samba e dos desfiles resultou na espetacularização dos desfiles de escolas de samba, no controle das massas nas áreas centrais da cidade e no advento dos sambódromos, ápice da incorporação de sistemas tecnológicos e científicos e do controle totalitário, por parte da burguesia branca e racista, dos desfiles e de seus manifestantes, notadamente.

As chacinas e a espetacularização dos desfiles de escolas de samba, na cidade do Rio de Janeiro, têm em comum a violência contra a população negra e o uso da cidade como laboratório para o controle e extermínio de negros.

A espetacularização das chacinas tem, como ponto inicial e de chegada, a naturalização da violência policial contra a população negra e a legalização do genocídio de negros.  O  processo , no  ápice  da  ditadura  militar branca, 1964- 1985, instituiu, nos gabinetes, mídias, quarteis, prisões  e  porões  da  ditadura,  o esquadrão  da  morte, caracterizado  como  mão  branca. Os  jornalões ordinários  da  imprensa burguesa estampavam  e  hoje  estampam , com o pendor  da  espetacularização, os  corpos  negros, como  imagem espétacular  e  sinonímica  do manequeismo de que  bandido  bom é  bandido morto.  O  Estado   sempre  esteve  e  está  presente, desde o  trabalho  escravizado  e  appos o  fim jurídico  do  trabalho  escravizado, na  política  de execução genocida  de  negros.

Hoje, de  acordo  com a  chacina  do Complexo do Alemão,  a propalada e falsa construção que advoga a ausência do Estado nos morros e favelas é um engodo. O Estado é cada vez mais forte e atua, a partir das forças policiais e jurídicas, para validar a manutenção das desigualdades de classe e raça.

A violência estatal tem as milícias como corpo para as ações cotidianas e de violência, milícias que atuam, muitas vezes, em simbiose conflitante com as organizações não-estatais catalogadas como Comando Vermelho (CV), Primeiro Comando da Capital (PCC) e forças congêneres, que nasceram — no útero do Estado brasileiro — no perverso, racista e violento sistema penitenciário do país.

Considerando que o CV nasce nos presídios, instância do Estado brasileiro, o foco central de compreensão e de combate à violência, e não o derivado, está localizado no aparelho do Estado, que é expandido para os morros e favelas pelas milícias.  O crime organizado pelas narco-milícias é hegemonizado por quadros policiais e agentes oriundos de forças constituintes do Estado.

Tráfico de drogas e de armas, revelando a centralidade das milícias narcotraficantes, tem por finalidade o comércio e o lucro, o controle territorial, o voto por coerção e a venda de serviços de proteção. A  venda de  “serviços”  de  proteção  tem forte  amarra com as  igrejas  genericamente  denominadas  de  evangélicas, que  são, além  de  reduto de  “fieis”  milicianos,   ideologicamente parceiras, na  medida que criminalizam o  sistema  cultural  negro-brasileiro e, principalmente, o  sistema  umbanda  e  candomblé.

O crime organizado não formal (CV e PCC) deve pagar pedágio financeiro e político para o crime organizado que transita pelo estatal, via milícias, que é o fiel da balança para assegurar o monopólio do tráfico de drogas e armas.  Em  outros  termos,para  assegurar  o  monopólio do  comércio  milionário, é  preciso garantir, sem punições, que  a  violência,  as  chacinas  são  exemplares,  fique sob a  exclusiva  responsabilidade do  crime  estatal.

As denominadas guerras das drogas são acertos das facções do crime não-estatal com as frações do crime estatal (as milícias), que atuam concomitantemente nos espaços formais do Estado e nos espaços não-formais das favelas e morros.

(*) Fausto  Antonio  é  professor  Associado  da  Unilab – Bahia,  escritor, poeta e  dramaturgo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *