Por Sonia Fardin (*)
A festa do Oscar, um dos ícones de sucesso sob a ótica da indústria cultural Americana, concedeu pela primeira vez a principal premiação para um filme não americano. A produção coreana Parasita levou também melhor roteiro, diretor e filme estrangeiro na categoria não documental.
O roteiro de Parasita se debruça sobre a sociedade capitalista em sua face mais cruel: a submissão da classe trabalhadora à angustiante busca por trabalho precário, colocando, assim, seres humanos na conflitiva dualidade entre agir de forma solidária com os iguais em sua condição de classe explorada e, ao mesmo tempo, impeli-los à competirem entre si para obter a sobrevivência básica. A direção de Parasita não economizou na crueza para retratar trabalhadores coreanos violentando-se para garantir comida e abrigo. Muitos celebram tal façanha como uma crítica à desumanização nas grandes cidades. Porém foi também a abordagem sutilmente ácida com que descreve as estratégias de sobrevivência e situações limites de uma família asiática no limiar da miséria do mundo precarizado, o que conquistou a academia de Hollywood.
Na categoria documentário, a celebração aqui ficou por conta de Democracia em Vertigem, festejado como vitoriosa presença brasileira em Hollywood, tendo como tema o golpe no Brasil e as angústias sobre os rumos da atual conjuntura brasileira. Mas, foi o filme A Indústria Americana que levou o prêmio da categoria. O documentário, produzido pelo casal Obama e agenciado pelo Netflix, apresenta sob a ótica dos democratas estadunidense as expectativas, frustrações e tensões vividas por trabalhadores americanos e chineses em uma indústria chinesa instalada em Ohio. Claro, A Indústria Americana é explicitamente um filme anti-chinês, que tenta dissimular a forma desigual e pré-concebida com que usa pesos e medidas distintas para mostrar as relações patronais nas indústrias americana e a chinesa (não vou além, pois dedicarei a este documentário um texto específico).
Conflitos de classe e especialmente contradições no seio da classe trabalhadora foram, portanto, o foco de várias obras cinematográficas neste período. Para ir além do Oscar, é válido lembrar também de produções não documentais stricto sensu, que retratam os limites da institucionalidade democrática e o acirramento do estágio atual da luta de classes, com foco nos conflitos e impasses que vive a classe trabalhadora em culturas e sob estágios do capitalismo totalmente diferentes.Desses, são exemplos Bacurau e Miseráveis que, assim como Coringa e Parasita, levaram para as telas situações em que a luta de classes culmina em uma sequência de ações belicosas de extremo impacto.
Com precisão, em países de tradições fílmicas diferentes, uma parcela do cinema condensou de forma magistral as situações dos que vivem em mundos absolutamente diferentes, apesar de criados e conectados pela engrenagem que movimenta o capitalismo.
Situados desde o sertão de Pernambuco até as periferias da França, Coréia e a imaginária Gotham City, os roteiros deram protagonismo para personagens que habitam nas fissuras intestinas da desumanização imposta à classe trabalhadora, pessoas que encontraram soluções para as tensões em seus territórios na imprescindibilidade da ação direta contra tudo o que significa poder institucional e, por vezes, também em atos violentos dirigidos contra personages que, a rigor, deveriam estar na mesma trincheira antissistema. Cada um a seu modo esses filmes não pouparam sangue e horror para descrever o impulso de libertação desordenado de grupos subalternizados.
O sangue derramado pelo impulso individual em Parasita é quase trivial diante da ação coletiva de resistência organizada de autodefesa em Bacurau e da violenta catarse de Coringa. Mas é a violenta e organizada revolta de crianças e adolescentes em Miseráveis, na cena final, que resume o impasse na barbárie. A cena deixa em aberto uma crucial questão: sobre quem atirar nossas justas revoltas? Assistir essas “ficções” e não ficar tomado pela urgência de uma atuação política organizada e focada na superação do capitalismo me parece impossível.
Porém, aqui no Brasil, o cinema em sua dimensão industrial, a que ganha espaços nas telas e afins, ainda está atado a um sistema de distribuição e difusão que continua em mãos do grande capital, e especialmente os filmes mais críticos pouco logram chegar em grande escala àqueles que retrata. Isso não anula o lugar político da criação fílmica crítica, pelo contrário, à esquerda ou à direita todo filme é político e tem seu lugar na luta cultural.
Talvez, para tentar conectar o que está mais próximo das percepções de parte significativa da classe trabalhadora sobre os dilemas atuais da luta de classes e o golpe no Brasil, não seja nem no cinema engajado e ainda menos no mercantilizado pelo Oscar o que devemos mirar. O que se apresentou nesse ano como produção cultural mais próxima das construções discursivas sobre dilemas do povo no Brasil atual foi o carnaval.
Não pretendo fazer comparações reducionistas, pois carnaval é carnaval, cinema é cinema. Mas tudo é luta politica. A produção do carnaval como festa pública, em todas suas formas de expressão, é resultado da capacidade criativa, produtiva e gestora da classe trabalhadora; basta ver de perto um barracão de um bloco de bonecos gigantes, uma nação de maracatu ou uma de escola de samba para conferir isso.
Apesar da influência da “globelização”, o carnaval ainda é uma arte popular que guarda muito das formas artesanais de criação e produção, que possibilitam um grau a mais de conexão entre quem cria, quem produz, quem interpreta e principalmente quem assiste.
O que entra na avenida como criação é em grande parte corporalmente conectado aos que vivem no entorno dos barracões, os que frequentam arquibancadas e os que assistem as transmissões. Sem dúvida, nada mais documental do que se passa nesses territórios do que o desfile de denúncias, desabafos e escracho feitos neste carnaval, para externar a percepção popular de desaprovação social do governo golpista.
Mas, qual é exatamente essa percepção? Nas duas cidades brasileiras mais populosas, os sambas enredos subiram o tom das críticas ao falso messias e seu aparato repressor, e figuras atacadas pelo fascista foram celebradas, como Paulo Freire, Marielle Franco, os indígenas, movimentos negros, movimentos de mulheres, entre outros.
O som geral foi um clamor à união dos diferentes em crenças, raças, gêneros e bandeiras, contra a figura atual símbolo máximo do fascismo, cujo indesejável rosto foi representado sob múltiplas formas alegóricas depreciativas e abjetas. Ele, os aparatos policiais e militares, e as maquinarias midiáticas que o sustentam, também estiveram explicitamente repudiados. Uma grande conquista das forças populares progressistas atuantes na cultura.
Na festa das ruas o povo alegoricamente destituiu um mandatário ilegítimo e denunciou seus capatazes. Alegoria também é política, mas só alegoria não basta.
Finda a festa, uma das perguntas a fazer é: o que o carnaval popular desse ano encenou nas ruas e avenidas terá sido uma prévia ou um esquenta das eleições de 2020 e 2022?
Pode ser que sim, mas para que tal enredo se torne realidade resta a todos nós transformar o empenho materializado em figurinos, letras de samba e adereços em faixas, cartazes e panfletos nas mãos de multidões de mesmo volume e envolvimento crítico, desde já ocupando as ruas, literalmente sem ilusões e fantasias messiânicas e, principalmente, enfrentando os reais donos do poder, cujos rostos e nomes quase nunca enxergamos.
Nas produções culturais que denunciam golpes e dissecam as entranhas da classe trabalhadora há uma face que pouco aparece de forma explícita nas representações levadas para as avenidas e telas de cinema: o grande empresariado multinacional, aqueles que de fato têm nas mãos os poderes que organizam e definem processos eleitorais ilusoriamente democráticos e quando isso incomoda lançam mão do fascismo para dar um breque no samba.
Curioso observar que também em filmes como Bacurau, Coringa, Parasita e Miseráveis, a face do grande capital é pouco ou nada enquadrada pelas câmeras. Há sim menções à seus gestores, asseclas e capatazes, mas aqueles que efetivamente decidem a posição de cada peça no mapa global da economia política são quase invisíveis. Esses nem nos camarotes de maior luxo ou nos tapetes vermelhos de Hollywood mostram suas caras, apesar de decidirem muito sobre ambos.
A invisibilidade das faces reais do poder econômico dá sentido para soluções políticas do tipo: basta destituir maus gestores, escolhendo outros entre os mais capazes e civilizados, obviamente, ungidos pela sagrada democracia.
Para nós é também necessário perguntar: disputar isso basta? Ou melhor, a saída à esquerda está em disputar e eventualmente vencer eleições?
Não, certamente não basta. Vencer 2020 e 2022 poderá ser a chave de uma das portas, mas não será a da saída.
Por quê? Porque as democracias são tão necessárias quanto insuficientes para superar o capitalismo. Calcar-se só nelas é um erro que a história, o cinema e o carnaval já deram exemplos de para onde nos leva.
(*) Sonia Fardin é historiadora e militante do PT Campinas.