Ciro em 2018, Ciro hoje

Por por Marcos A. da Silva (*)

Em 2018 escrevi um artigo comparando os programas de Ciro e Haddad e definindo Ciro como uma via bonapartista, resultado de sua trajetória política ziguezagueante e de seu fraco enraizamento junto a classe operária, ainda fortemente identificada com o PT (1).

O artigo era sobretudo voltado à comparação dos programas econômicos, onde assinalava as inadmissíveis concessões — não encontradas no programa do PT — feitas por Ciro ao sistema financeiro. Um resultado no plano econômico da concepção afinal bonapartista da política, capaz de limitar qualquer programa popular.

A propósito, não me esqueço da entrevista de Ciro na Band naquele mesmo ano, respondendo a uma pergunta sobre como se comportaria diante de uma greve de trabalhadores da Petrobras, como ocorreu no início do governo FHC, com a solução truculenta conhecida de todos. A resposta de Ciro foi: primeiro eu daria um “murro na mesa”, depois negociaria. Para quem conhece o significado dos “murros na mesa”, não é preciso dizer muito mais.

Penso que a entrevista que Ciro concedeu neste 28/2 à Folha de São Paulo, reforça tudo o que eu acima assinalei em torno da sua caracterização como uma solução bonapartista. Ele não diz muito do programa econômico, apenas reforça a tese do nacional desenvolvimentismo, o que obviamente não é lá muito compatível com as concessões de que antes falei ao sistema financeiro e às apostas que ele hoje faz na aliança com a velha direita.

Com efeito, a visão autoritária que decorre do bonapartismo está toda ali. E não só porque se lança à busca do mal chamado centro, o mesmo que tem ligações carnais com o sistema financeiro (em especial o DEM). Mas também porque continua a esconjurar o PT (e Lula), o partido com o maior enraizamento no operariado e na classe média de esquerda, com a alarmante notícia de que está mais preocupado em derrotar o PT no primeiro turno do que Bolsonaro.

Mas o coroamento desta visão autoritária aparece com todas as letras na adesão marota à pauta reacionária em voga hoje no país, já sustentada por Villas Bôas e ex-comunistas como Aldo Rebelo, mas também diferentes representantes da esquerda que se permite flertar com a cultura política do neopopulismo, a saber, a rejeição das mal chamadas pautas identitárias (trata-se, a rigor, de lutas pelo reconhecimento, o disse Domenico Losurdo), ou pelo menos o seu desprezo ou ainda a sua falsa apresentação como um empecilho para resolver os problemas do desenvolvimento econômico.

E no entanto Ciro se apresenta como um legítimo representante da questão nacional. Para a esquerda, todavia, a questão nacional, pelo menos desde Lenin e de seus discípulos mais criativos (Karl Radek, Gramsci), sempre foi a questão popular. Não é outra coisa senão isto o que significam hoje as lutas pelo reconhecimento no campo das questões de gênero, da luta contra o racismo etc. Formas da luta de classes, para lembrar ainda uma vez Losurdo.

E nem falemos dos temas do investimento e do emprego, centrais para a questão nacional e para o combate ao capitalismo em nossos dias — desde que se entenda o capitalismo não em suas encarnações particulares, como gostaria uma visão pueril da luta pelo socialismo, mas como sistema, o que significa levantar muitos problemas relacionados à concentração da riqueza, entre eles o da financeirização desregulada da economia.

Tema este por outro lado ligado à questão ambiental que hoje nos toca, já que o desflorestamento na fronteira e a expansão extensiva do agro tem uma relação direta com o caráter financeiro-especulativo que assumiu a questão da propriedade da terra entre nós.

Ciro Gomes radicalizou o seu discurso, não há dúvida. Mas a julgar pelas alianças que está costurando, e pelos acenos que faz no campo dos problemas econômicos (a aliança com o financismo do DEM) e sociais que estão diante de nós (o reconhecimento dos direitos civis acima citados, por demais entrelaçados às questões econômico-sociais a qualquer observador atento), esta radicalização apenas serve para tornar ainda mais claro o seu lado na luta de classes, o lado das velhas classes dominantes brasileiras.

(*) Marcos Aurélio da Silva é Prof. no Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (CFH/UFSC)

Notas

(1) O artigo foi publicado no portal Resistência – Geopolítica e relações internacionais, e pode ser localizado neste link: https://www.resistencia.cc/ciro-e-haddad-pelas-lentes-de-ignacio-rangel/


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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