A direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda, reunida no dia 26 de maio de 2023, aprovou a seguinte resolução sobre conjuntura.
O futuro do Brasil depende, em grande medida, do êxito do governo Lula. E o êxito do governo Lula depende, também em grande medida, da capacidade política, da organização e da mobilização da classe trabalhadora.
Nosso êxito não é garantido, nem é fácil, entre outros motivos porque temos contra nós a herança maldita do golpismo e do bolsonarismo, além da oposição da extrema-direita e da direita tradicional, do neofascismo, do neoliberalismo e do imperialismo.
Enfrentar tantos e tão poderosos inimigos exige linha política correta, exige método acertado e muita capacidade de trabalho, mas exige também mobilizar de forma permanente a esperança.
Sem esperança, não há vitória. Mas esperança não é igual a ilusão, nem autoengano. A esse respeito, vale atender ao pedido feito pelo próprio Lula: para que o governo dê certo, é preciso apoio, mas também é preciso crítica e, acrescentamos, autocrítica.
Aliás, para um partido de esquerda, para um partido da classe trabalhadora, falar a verdade para nossas bases e para o conjunto da classe é uma obrigação.
Neste sentido, somos de opinião que a direção do PT precisa reconhecer que a atual situação é muito grave, seja devido à falta de orientação adequada, seja devido à existência de conflitos internos ao governo e ao Partido, seja devido à situação econômica e social de grande parte do povo, seja devido à situação política nacional e internacional.
Portanto, reafirmamos a necessidade de um “freio de arrumação” organizativo e, principalmente, de uma mudança na linha política, tanto no Partido quanto no governo, sob pena de sofrermos uma grave derrota, agora e nas eleições de 2024, com consequências seríssimas.
As últimas votações no Congresso nacional confirmaram a gravidade da situação.
O marco fiscal foi aprovado nos termos definidos pelo relator, ao gosto e paladar da maioria de direita do Congresso Nacional. Ao contrário do que afirmou o ministro da Fazenda, não foi uma “vitória do Brasil”, mas sim uma concessão à Faria Lima.
A maioria de direita existente no Congresso nacional impôs, antes e depois da votação do marco fiscal, várias derrotas ao governo, à esquerda e ao PT.
Destaca-se, entre essas derrotas, a indecente votação do chamado marco temporal.
As derrotas sofridas, mesmo aquelas que setores do governo e do partido não admitem ter sofrido, confirmam que a maioria de direita e extrema-direita no Congresso Nacional decidiu instituir, à revelia da Constituição, o semiparlamentarismo, em prejuízo dos interesses populares, dos indígenas, do meio-ambiente, do desenvolvimento, das liberdades e da soberania.
A atitude da maioria de direita liderada por Arhur Lira confirma o erro cometido, em 2022, quando o PT indicou voto na reeleição dos então presidentes da Câmara e do Senado, sem negociar previamente os termos desse apoio, numa atitude que pode ser resumida assim: “toma lá, sem dá cá”.
Sobre o marco fiscal
A Câmara aprovou o marco fiscal, tal e qual foi proposto pelo relator Cajado, do PP da Bahia. Agora o marco fiscal vai para votação no Senado.
O relatório apresentado por Cajado agravou diversos dos problemas já presentes na proposta de marco fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda.
Lembremos: o teto de gastos aprovado no governo Temer impedia a expansão real do gasto público, já o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda possibilitaria esta expansão. Mas possibilitaria, sob condições muito restritivas e muito difíceis de ocorrer. A versão de Cajado tornou as restrições ainda maiores.
Diante do marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, defendemos alterações no sentido de:
1) estabelecer metas de crescimento e geração de empregos, como parâmetros para a política fiscal;
2) estabelecer metas fiscais expansionistas, portanto opostas à política monetária do BC, para evitar o risco de uma dupla pressão contracionista;
3) estabelecer metas de evolução do superávit subordinadas às necessidades de investimento, em nenhum caso aceitando déficit zero ou superávit, enquanto a economia brasileira não crescer de forma sustentada;
4) diluir ao longo de vários anos as “punições” previstas para o caso de não cumprimento das metas;
5) incluir propostas tributárias que, além de rever desonerações e combater a sonegação, aumentassem os impostos sobre os ricos;
6) alterar os números de variação da receita e crescimento dos “gastos”, no sentido de eliminar qualquer restrição ao papel do setor público na economia brasileira. Reiteramos: o peso do setor público frente ao PIB deve crescer e não diminuir, ao contrário do previsto na proposta da Fazenda e na proposta de Cajado;
7) retirar a educação, a saúde, a previdência, o salário-mínimo e os investimentos da conta dos “gastos”, para evitar cortes nos demais gastos públicos;
8) permitir a transferência de recursos do Tesouro para os bancos públicos.
Ademais, alertamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda, se fosse aprovado como proposto, iria gerar pressões contra o piso constitucional da saúde e da educação. O relatório de Cajado acentuou esse problema: os pisos estão sob severo risco.
Pelas razões expostas anteriormente, opinamos que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era contraditório com as posições históricas do Partido e, principalmente, contraditório com o tipo de política que o Brasil necessita para sair das atuais condições de economia primário-exportadora e de uma sociedade de imensa desigualdade. Mais uma vez reiteramos: a propaganda positiva que o Ministro da Fazenda e parte de sua equipe fazem a respeito é puro “pensamento positivo”.
Argumentou-se, dentro do governo e do partido, que o marco fiscal proposto pelo Ministério da Fazenda era o máximo de avanço possível, dada a correlação de forças.
De fato, a correlação de forças é um problema. Mas a questão não está principalmente em constatar qual é a correlação de forças; a questão fundamental está em como fazer para alterar a correlação de forças. Se nos limitamos a constatar qual é a correlação de forças, é óbvio que o passo seguinte será retroceder ainda mais. E foi exatamente isso que ocorreu no debate do marco fiscal no Congresso Nacional.
Mesmo a direção do Partido não tendo sido consultada previamente, prevaleceu na bancada da Câmara uma postura recuada, de não apresentar emendas. Isto contribuiu para que a direita do Congresso nacional, através do relator Cajado, pudesse agir sem nenhum contraponto, apresentando um relatório que piorou muito os problemas já existentes na proposta apresentada originalmente pela Fazenda.
O relatório foi aprovado pela Câmara, inclusive com o voto da bancada do PT, ressalvada a declaração de voto de 22 parlamentares. Como resultado, o marco fiscal original foi alterado para pior, com a introdução de contingenciamento obrigatório, criminalização, eliminação de exceções, proibição de concursos e reajustes etc.
Supondo que o Senado faça como a Câmara, o resultado será que, além de uma política monetária inimiga do desenvolvimento, teremos uma política fiscal que não contribui para o desenvolvimento.
Por que então setores do governo e do Partido apresentam o marco fiscal como uma vitória?
Em alguns casos, por ato reflexo: acham que tudo que vem do governo é bom. Noutros casos, por entender que o marco fiscal aprovado é melhor do que o teto de gastos, o que era verdade parcial no caso do proposto originalmente pela Fazenda e quase deixou de ser no caso do aprovado pela Câmara. Mas há, também, os que acreditam que teremos um cenário primaveril: retomada dos investimentos privados, grandes investimentos estrangeiros, êxitos no combate à sonegação e redução nas isenções.
De fato, se este cenário primaveril se confirmar, as restrições da política monetária do BC e as restrições da política fiscal terão sido superadas.
Também neste cenário primaveril, mesmo que o crescimento dos “gastos” seja sempre menor do que as receitas, mesmo que o marco fiscal projete um futuro em que o peso do setor público no PIB seja menor do que é hoje, isto não impedirá a ampliação dos investimentos públicos e do bem-estar social.
A pergunta é: este cenário primaveril é realista? E, mesmo que seja, ele vai se materializar no tempo político adequado, ou seja, a tempo de afetar positivamente as eleições de 2024 e 2026?
Em nossa opinião, o cenário primaveril não é realista. Sem forte investimento público e sem mudança na política de juros, o investimento privado não crescerá, ao menos não crescerá na quantidade e na qualidade necessárias. Por outro lado, o cenário internacional é excessivamente turbulento, não permitindo confiar em investimentos estrangeiros cujo volume e natureza permitam saltos de qualidade na economia de um país como o Brasil. Além disso, mesmo que haja crescimento nos investimentos, privados e estrangeiros, nas condições atuais ele será em grande parte capturado pelo sistema financeiro.
Por outro lado, é improvável que tenhamos êxito no combate à sonegação e na redução das isenções, no volume e na velocidade necessárias, sem que haja uma imensa mobilização política dos setores populares contra os ricos. E a pergunta é: se existe condições de fazer isso, por qual motivo, na elaboração do tal marco fiscal, fizemos tantas concessões à Faria Lima?
Conclusão: se o cenário primaveril não é o mais provável, se o mais provável for um cenário sem grandes investimentos estrangeiros, sem grandes investimentos privados nacionais, sem avanços significativos no combate às desonerações, sem avanços significativos no combate à sonegação, neste cenário realista o novo marco fiscal impõe imensas restrições a ação do Estado e aos investimentos públicos.
Diante desta situação, estamos convocados a travar uma imensa batalha em favor de uma reforma tributária progressiva, que faça os ricos pagarem a conta. O que exigirá superar a atual postura do Ministério da Fazenda, que assumiu indevidamente os compromissos de não aumentar e de não criar impostos sobre os ricos.
Sem novos impostos sobre os ricos, as receitas não vão crescer significativamente. Como nos próximos anos certas despesas vão aumentar, aconteça o que acontecer. Como – segundo o marco fiscal – o conjunto das despesas não pode crescer mais do que 70% do crescimento das receitas. Então a conclusão é que haverá uma disputa para saber quais despesas serão mantidas e quais serão cortadas.
Pelos motivos acima, vai crescer a pressão para revogar os atuais pisos constitucionais da saúde e da educação, conforme aliás já anunciado pelo Secretário do Tesouro. E por qual motivo setores do governo defendem isso? O motivo real, mesmo que não declarado, é o seguinte: segundo os parâmetros do marco fiscal, o teto das despesas cresce na velocidade de 70% da receita, mas certas despesas, por exemplo, a saúde e a educação, crescem com base em 100% da receita.
Por isso, o novo marco fiscal impõe, como consequência “lógica”, a necessidade de alterar os atuais pisos da saúde e educação, como forma de reduzir o crescimento dessas despesas para próximo da velocidade máxima (70% do crescimento das receitas) autorizada pelo marco fiscal.
Ou seja, um dos efeitos colaterais do marco fiscal aprovado pela Câmara será jogar pobres contra pobres, disputando um cobertor curto.
Por estes e por outros motivos, parabenizamos os parlamentares federais (mais de 22) que, apesar de respeitarem a disciplina partidária, fizeram uma declaração de voto demarcando com as diretrizes do marco fiscal.
O quadro internacional
O ocorrido na votação do marco fiscal, bem como as votações ocorridas imediatamente antes ou depois, também confirmaram a existência de problemas diversos no funcionamento do Congresso e da bancada.
Por razões óbvias, estes problemas estão sendo negados pelo Ministro da Fazenda e por setores do partido e do governo, havendo inclusive quem comemore como vitória o que são inegáveis derrotas.
As dificuldades crescentes do governo junto ao Congresso fazem crescer a dependência do governo frente ao judiciário. Mas o judiciário, como foi sobejamente demonstrado nos últimos anos, não é um aliado das forças democráticas e populares, especialmente quando se trata de combater as políticas neoliberais.
As dificuldades internas levam setores do partido e do governo a terem grandes expectativas na possibilidade de atrairmos investimentos estrangeiros.
Entretanto, não é apenas a situação nacional que vem se tornando cada vez mais difícil; situação similar ocorre no plano internacional.
A esse respeito, cabe uma constatação preliminar: com o presidente Lula, o Brasil voltou a ter protagonismo mundial, algo correspondente tanto a importância do Brasil, quanto correspondente ao prestígio do presidente Lula.
Mas não devemos ter ilusões: no médio prazo, nosso protagonismo real depende do Brasil dar um salto na sua capacidade industrial, científica e tecnológica. E forças poderosas operam contra isso, tanto dentro quanto fora do país, a começar pelos Estados Unidos.
O esforço dos Estados Unidos para reverter seu declínio inclui, em grande medida, uma dimensão militar. Destacam-se o cerco promovido pela OTAN contra a Rússia, cerco que está na origem da atual guerra; e as provocações contra a China no estreito de Taiwan. Nos dois casos, os Estados Unidos querem a guerra, não querem a paz.
E, no plano econômico, as ações do governo Biden e de seus aliados não geram – no Brasil e em grande parte do mundo – repercussões desenvolvimentistas, sociais, políticas e ambientais favoráveis às maiorias.
Por onde se observe o problema, a conclusão é a mesma: embora tenha interessado ao governo Biden a derrota de Bolsonaro, não interessa ao governo Biden o êxito das políticas internas e externas defendidas pelo PT.
Mais do que isso: o governo Biden está trabalhando para derrotar estas políticas, como se viu aliás na recente reunião do G7 em Hiroshima.
A ação dos EUA é um dos motivos pelos quais os atuais governos progressistas e de esquerda, na América Latina e Caribe, enfrentam dificuldades ainda maiores do que no período 1998-2008.
Os resultados das eleições chilenas, as dificuldades na Argentina e na Colômbia, os conflitos internos à esquerda na Bolívia, a difícil situação vivida em Cuba e Venezuela, assim como o quadro na Nicarágua, sem falar de Brasil, Honduras e México, compõem um cenário de grandes dificuldades estruturais e políticas, que exigem de nossa parte (governo Lula e PT) uma conduta que, sob vários aspectos, terá que ser diferente e muito mais ousada do que aquela adotada entre 2003 e 2016.
Neste sentido, devemos valorizar a realização, no Brasil, de 28 de junho a 2 de julho, do 26º Encontro do Foro de São Paulo. E devemos contribuir para que o PT proponha, neste Encontro, medidas concretas para acelerar o processo de integração regional.
Nosso projeto de desenvolvimento só terá êxito nos marcos da integração regional. Mas, por outro lado, nossa política externa só terá êxito se for lastreada numa retaguarda de desenvolvimento, industrialização, bem-estar social e ampla auto-organização do povo brasileiro.
E a verdade é que ainda estamos muito longe disso. Quem vende ilusões em contrário, está contribuindo para nossa derrota.
O tempo corre contra nós
Hoje, amplos setores da esquerda começam a se dar conta das decorrências práticas da chamada política de frente ampla. Assim como vão se dando conta dos efeitos negativos da chamada Federação.
Não se trata, apenas, das alianças que foram feitas nas eleições de 2022, mas principalmente da inexistência de um plano de voo que nos permita superar os limites impostos pela herança maldita, pela maioria de direita nas instituições, pela força da extrema direita em vários espaços de poder, com destaque para os aparatos de segurança.
Falta um plano de voo, acima de tudo, que nos permita superar a condição primário-exportadora, sem o que não vamos superar a desigualdade social estrutural existente no Brasil.
Nesse sentido, o mais grave do atual debate sobre o marco fiscal não são as medidas em si, mas o horizonte medíocre predominante no debate a respeito, projetando perspectivas também medíocres para o desenvolvimento nacional. Num país que precisa crescer 10% ao ano durante muitos anos, grande parte da elite política está focada em garantir seus privilégios e em “enxugar gastos”.
Do ponto de vista da política, o tema central é como alterar a correlação de forças. E isso não se fará sem elevar o nível do debate, sem colocar na pauta objetivos ambiciosos e imediatos, como por exemplo “40 anos em 4”.
Obviamente, a correlação de forças nas instituições só será alterada lentamente. Por conta disto, impõe-se a disjuntiva: i/ou vamos nos conformar com isso e apostar que “devagar se irá ao longe”, correndo o alto risco de logo mais sermos surpreendidos com novas derrotas e golpes, facilitadas pela implacável e inevitável biologia; ii/ou vamos adotar medidas que busquem alterar a correlação de forças nas instituições, agindo de fora para dentro e de baixo para cima, através de ações que contribuam para a conscientização, auto-organização e mobilização do povo.
A segunda opção exige que o PT adote uma política que combine apoiar o governo contra a extrema direita e a oposição em geral, mas também disputar os rumos do governo contra os setores da extrema direita e da direita neoliberal que fazem parte do próprio governo.
A segunda opção exige, ademais, perceber que é necessário mudar rápida e velozmente as condições de vida da maioria das pessoas. E isso se faz através de políticas públicas que incidam na vida material, mas também através de ações políticas que incidam no ambiente psicocultural do país.
Entretanto, parte dos petistas que está no governo, nas bancadas e na direção do Partido, não concorda com isto e, às vezes, nem se dá conta da existência da disjuntiva citada. Atuam como se a dinâmica institucional cotidiana fosse a única alternativa possível e, além disso, como se a dinâmica institucional fosse suficiente para superar as dificuldades e construir as alternativas de que necessitamos. Ademais, não compreendem a necessidade de, ao mesmo tempo, defender e disputar os rumos do governo.
Lula, em nossa opinião, percebe – ao menos em parte – esta necessidade e as demais questões citadas. Dizemos isso com base em parte importante de suas declarações públicas, que não falam apenas de “união e reconstrução”, mas também de “reconstrução e transformação”. Mas boa parte dos petistas que estão em postos-chave do governo estão à direita de Lula.
Sem politização, sem mobilização e sem luta não haverá mudanças. Neste sentido, entre outras propostas, defendemos a convocação de uma Conferência nacional pelo desenvolvimento, que possa servir de catalisador para um plano de “40 anos em 4”.
Nesta mesma perspectiva, defendemos a convocação – por exemplo pelas Frentes – de um encontro nacional do PT e das forças do campo democrático e popular, para debater o enfrentamento da situação atual e das eleições 2024.
É preciso romper o cerco, é preciso mais ousadia, é preciso convocar novamente a mobilização dos que nos deram a vitória em 2022.