Contribuições da Articulação de Esquerda para os debates no Setorial Nacional de C&T e TI do PT

1.A realização de encontros setoriais do PT em 2025, ano que precede eleições gerais no país, exige uma reflexão a respeito do que o partido espera dessas instâncias “transversais” e de que papel elas deveriam exercer seja no terreno das lutas sociais, seja nas frentes institucionais, como os parlamentos e destacadamente os diferentes níveis do poder executivo.

2.No último período, acentuou-se o sentimento, entre a militância que atua nos diferentes setoriais, de um determinado descaso das direções partidárias em relação a esses espaços, atitude que se tornou mais evidente quando da elaboração do programa do PT para a eleição presidencial de 2022, inteiramente definido pela presidência da Fundação Perseu Abramo (FPA) e por seus Núcleos de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPs), à revelia dos setoriais.

3.Certas iniciativas do governo federal, como a recente concessão de incentivos fiscais à instalação de centros de dados (data centers) no Brasil, por decisão do Ministério da Fazenda, sem consulta prévia sequer aos pesquisadores das universidades públicas que estudam as temáticas de Tecnologia da Informação (TI) e “Inteligência Artificial” (IA), e sem aquilatar devidamente os impactos ambientais, revelam a enorme distância existente entre as ações governamentais e os setoriais de Ciência e Tecnologia e Tecnologia da Informação (C&T e TI) e de Meio Ambiente do partido.

4.Outro exemplo de medida dissonante é o novo programa “flexível” de doutorado e mestrado adotado pela Capes, com presumível aval do Ministério da Educação (MEC), que encurta o tempo de formação — sob a alegação, entre outras, de que nos EUA os doutores se formam “antes dos 30 anos” — e institui um sistema de “trilhas formativas” que inclui o “empreendedorismo”. Tudo isso porque a Capes avalia erroneamente que o país forma um número pequeno de mestres e doutores, e sustenta que o novo programa os tornará mais “empregáveis”.

5.Igualmente preocupante é a decisão do governo de promover (ou chancelar, ou tolerar) a conversão formal de órgãos de Estado, como a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e a Advocacia Geral da União (AGU), em “instituições científicas e tecnológicas”,[i] sabendo-se que tal enquadramento costuma induzir a criação das assim chamadas “fundações de apoio” e toda sorte de distorções disso decorrentes.

6.Também assistimos passivamente à condução de políticas do setor pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), sem submetê-las ao crivo de qualquer análise. No mínimo, deveríamos refletir sobre o fato de que o volume total de recursos transferidos — ou em vias de transferência — para o capital privado pelo governo federal (por intermédio da Financiadora de Estudos e Projetos-Finep), dentro do programa Nova Indústria Brasileira (NIB), que é de R$ 26,4 bilhões, equivale a 371% do investimento previsto para a rubrica “Reconstrução do Sistema Nacional de CT&I”, que é de R$ 7,13 bilhões até 2026[ii].

7.Nos últimos anos, apesar das enormes controvérsias e conflitos em torno de questões como a) a atuação preponderante, no Brasil e no mundo, das megaempresas proprietárias de plataformas e tecnologias digitais, as chamadas big techs, por intermédio das redes sociais, bem como seu crescente envolvimento com o genocídio na Palestina; b) o avanço da mudança climática, a persistência da devastação ambiental (inclusive no bioma Amazônia, mas especialmente no bioma Cerrado) e a iminência da realização da COP 30 no país (Belém); e c) a necessidade de reindustrialização, que supõe uma ampla discussão sobre a NIB e sobre prioridades da economia e opções tecnológicas, o Setorial Nacional de C&T e TI praticamente não se pronunciou sobre tais questões.

8.Por outro lado, os setoriais do PT (na sua totalidade e diversidade) são vistos por alguns grupos internos como meros espaços de poder e “escadas” para obtenção de cargos no partido ou em governos, o que causa danos óbvios ao trabalho partidário.

9.Cabe observar adicionalmente que, embora certos setoriais funcionem melhor do que outros, a linha geral de eleitoralismo e de acomodação da militância, que acaba reduzindo o debate no interior do partido, afeta também os setoriais, provocando esvaziamento e desalento.

10.O Setorial Nacional e os setoriais estaduais de C&T e TI não estão isentos de tais problemáticas. O número artificialmente alto de inscrições registradas em alguns setoriais estaduais de C&T e TI, de agosto para setembro de 2025, reforça essa constatação: Pernambuco recebeu mais 598 filiados(as), passando de 635 para 1.253; Distrito Federal 633, saindo de 582 para 1.198; e Rio de Janeiro 1.697, saltando de 2.016 para 3.717. O total nacional de inscritos cresceu quase 49%, de 7.346 para 10.931!

11.Frente às agudas conjunturas nacional e internacional, o Setorial Nacional de C&T e TI e os setoriais estaduais podem, caso se recomponham e readquiram organicidade, vir a contribuir ativamente com nosso partido, com nosso governo federal e com nossas candidaturas majoritárias na disputa eleitoral de 2026 (que, obviamente, já se iniciou).

12.Tarefas imediatas e algumas preocupações

13.Contribuir com a eleição de Lula em 2026, bem como de governadores, governadoras e parlamentares federais e estaduais do PT, por meio de formulações programáticas que subsidiem e orientem nossas candidaturas, dentro da perspectiva geral de mandatos mais alinhados aos interesses da classe trabalhadora e à perspectiva de combate às profundas desigualdades sociais e à perversa concentração de renda, propriedade e poder que persistem em nosso país.

14.O Setorial Nacional de C&T e TI precisa debater e se posicionar sobre a agenda regulatória apresentada pelo governo federal no dia 17/9/2025. Por isso, é fundamental que o Setorial reivindique à Direção Nacional do PT a abertura de canais de diálogo com os ministérios para tratar dessa agenda.

15.Naquela data, o governo apresentou a Medida Provisória 1.318, que institui o Regime Especial de Tributação para Serviços de Datacenter (Redata). A iniciativa parte de um diagnóstico correto: o Brasil precisa construir uma infraestrutura que possibilite o desenvolvimento de serviços de armazenamento, processamento e gestão de dados — os ditos serviços de “nuvem”.

16.Atualmente, tanto o setor público como o setor privado são dependentes dos serviços das grandes plataformas e tecnologias digitais dos EUA, dependência que torna o país vulnerável a toda sorte de investidas e ameaças do imperialismo. Contudo, o Redata parece reificar essa condição de dependência, na medida em que visa atrair mais investimentos de big techs e submeter-se às suas tecnologias.

17.Ademais, em que pese a preocupação expressa com critérios de sustentabilidade — como o uso de energia considerada limpa ou renovável e padrões rigorosos de eficiência hídrica — o modelo de centros de dados das grandes empresas estrangeiras acarreta impactos sociais e ecológicos graves nos territórios em que se instalam. E embora possam ser direcionados para atender parte da demanda pública e privada de serviços, seu propósito central é explorar recursos hídricos e energéticos em gigantesca escala, para desenvolvimento de modelos privados de IA.

18.Diante disso, o Setorial Nacional de C&T e TI precisa promover um debate profundo sobre modos social e ecologicamente sustentáveis de construção e desenvolvimento de uma infraestrutura digital capaz de superar a atual condição de dependência sem atropelar direitos e sem ferir nossa soberania. Nesse sentido, a proposta de construção de centros de dados vinculados às instituições públicas de ensino superior atende ao propósito de instalar uma capacidade nacional de armazenamento, processamento e gestão de dados, ao mesmo tempo em que fortalece o desenvolvimento de pesquisa no país.

19.Ainda no dia 17/9, o governo federal apresentou uma importante proposta de regulação, o PL 4.675, que visa dar instrumentos ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para melhor atuar na defesa da concorrência na área de mercados digitais, e merece nossa atenção.

20.Também nesta data ocorreu a sanção da lei 15.211, o Estatuto da Criança e do Adolescente Digital (ECA Digital), primeira regulação dos serviços de redes digitais no país, trazendo importantes definições de responsabilidades e obrigações de transparência sobre como as empresas de plataformas operam seus sistemas de moderação de contas e conteúdos. Cabe ao Setorial Nacional de C&T e TI acompanhar de perto o debate e processo de regulamentação da lei, tomando posição quanto a aspectos sensíveis e necessários como, por exemplo, os métodos e técnicas de verificação etária que não reifiquem a lógica de extração e acumulação de ainda mais dados pessoais dos usuários de Internet no país.

21.Desde janeiro de 2025, reagindo à declaração da Meta de que abandonaria seus compromissos com o enfrentamento à incitação de ódio e violência nas suas plataformas, bem como enfrentaria qualquer tentativa de regulação, o governo federal anunciou corretamente que iria formular uma proposta de regulação de serviços e de mercados digitais. Porém, somente a proposta de regulação de mercados foi apresentada (via PL 4.675).

22.Apesar de o ECA Digital trazer avanços importantes, a legislação ainda não dá conta de tratar de outras questões que exigem responsabilização e transparência das grandes plataformas proprietárias das redes digitais, como os impactos dessas redes sobre a saúde física e mental das pessoas e sobre a monetização de contas e conteúdos. Regular as plataformas digitais é tornar públicas as tomadas de decisões humanas e algorítmicas que decidem quais vozes são ouvidas; e que afetam as condições de trabalho de milhões de pessoas.

23.Por outro lado, cabe ao Setorial Nacional de C&T e TI propor ao governo federal que busque quebrar o oligopólio da mídia tradicional (que continua operando contra o campo democrático e popular), bem como adote medidas de fortalecimento do sistema público de emissoras de TV e rádio, via expansão da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Inversamente, a lei 14.812/2024, sancionada pelo presidente Lula, ampliou a concentração do setor ao permitir que um mesmo grupo empresarial detenha até vinte outorgas de emissoras de TV ou rádio.

24.É fundamental que o Setorial Nacional de C&T e TI e os setoriais estaduais procurem acompanhar pari passu, se possível de modo articulado com o Setorial Nacional de Meio Ambiente, a evolução das discussões da COP 30, buscando acumular conhecimento referente à mudança climática e apontar alternativas na contramão das políticas do “capitalismo verde”, centradas no mercado de créditos de carbono. A defesa dos territórios e direitos dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos e a luta contra o “PL da Devastação”, acertadamente vetado pelo presidente Lula, merecem todos os nossos esforços.

25.Cabe ainda ao Setorial tomar enfática posição contra a “reforma administrativa” em curso na Câmara dos Deputados, que é apoiada pelo Ministério da Gestão e Inovação (MGI) e que, caso venha a ser aprovada, precarizará o funcionalismo e enfraquecerá o serviço público, com óbvio impacto deletério sobre as carreiras de docentes e pesquisadores(as) das universidades e institutos públicos de pesquisa.

26.Aliás, são as trabalhadoras e trabalhadores do setor de C&T e TI (e os conhecimentos que produziram e acumularam), bem como suas organizações, a nossa principal referência no processo de elaboração das nossas formulações contra-hegemônicas. Mas essa força de trabalho que atua na docência, na pesquisa, no desenvolvimento de projetos e em outras funções sofre, por um lado, pressões permanentes de cooptação, via adesão ao “empreendedorismo acadêmico”; e por outro lado, pressões de domesticação e controle, por meio de “avaliações” intermináveis e de outros constrangimentos legais e institucionais. Não deixa de ser sintomático, assim, que a “avaliação por desempenho” do conjunto do funcionalismo público tenha sido incorporada à atual “reforma administrativa”, com a concordância do MGI.

27.Questões conceituais: de que ciência estamos falando?

28.Nossos setoriais precisam discutir em profundidade o modelo de C&T vigente hoje no Brasil. As políticas que predominam em C&T têm uma clara matriz ideológica neoliberal, que se expressa tanto no conteúdo das normas enfeixadas no chamado “Marco Legal de CT&I” aprovado em 2016 (uma espécie de radicalização e legitimação de práticas que já vinham ocorrendo), como na hegemonia da visão mercantil e positivista da questão das inovações — que, por um lado, parece conceber a inovação como uma dimensão dotada de inteira autonomia em relação ao processo de produção de conhecimento (daí a suposta necessidade de criar aparatos institucionais especializados a ela dedicados); e, por outro lado, a apresenta como algo indissociável do “empreendedorismo”.

29.Dessa visão da inovação decorre o “inovacionismo”, movimento que “postula a produção de inovações como a função primordial da pesquisa científica, entendendo por ‘inovação’ as invenções rentáveis, que podem ser implementadas por empresas, contribuindo para a maximização de seus lucros a curto ou médio prazo”, conforme definição de Marcos Barbosa de Oliveira.[iii] Embora o inovacionismo tenha fracassado, ele continua a influenciar fortemente as políticas estatais de C&T no Brasil.

30.Quanto às expectativas decorrentes da criação do “Marco Legal” de CT&I, inclusive aquelas estreitamente relacionadas à pretendida expansão da produção de inovações, elas não se confirmaram em função dos seus problemas estruturais. Não é propriamente uma lei para estimular a inovação com claro alcance social, mas uma lei para a inovação empresarial e capitalista. Ela trata o conhecimento científico e tecnológico, majoritariamente produzido com recursos públicos, como uma mercadoria para ser transferida para o setor privado. Não há foco para a resolução de problemas sociais e nacionais estratégicos. As ICTs são incentivadas a se moldar as necessidades do mercado, além de permitir que elas criem Fundações  de Apoio que na prática desmontam por dentro o serviço público. Esses são somente alguns aspectos do que representa esse Marco, estritamente neoliberal, para a pesquisa em nosso país.

31.“O emprego dos mestres é relativamente mais importante na indústria de transformaçãodo que o de doutores. Em 2021, 4,4% dos mestres e somente 1,6% dos doutores encontravam-se empregados nessa seção [sic]. Entre 2010 e 2021, a participação da indústria de transformaçãono emprego de mestres perdeu 1 ponto percentual e a de doutores aumentou apenas um décimo de ponto percentual”, informa o Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE-MCTI, destaques no original). Em outras palavras, levando-se em conta que 215 mil doutores(as) estavam empregados(as) em 2021, o conjunto do setor industrial brasileiro empregava apenas 3.400 doutores e doutoras em 2021. Por outro lado, 83% da população de doutores(as) — 178 mil — estavam empregados em estabelecimentos classificados no grupo Educação superior da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE).[iv] Supõe-se que permaneciam sem emprego 104 mil, entre 319 mil doutores e doutoras formados(as) entre 1996 e 2021.

32.É também equivocada a percepção de que o complexo público de ensino superior e de pesquisa, “em função da maior proximidade com a empresa, irá formar pessoas e realizar pesquisas mais conducentes à competitividade do País”, segundo o Professor Renato Dagnino. Isso porque as universidades públicas, “cuja participação no complexo é quantitativamente mais importante, engendram profissionais e resultados de pesquisa muito semelhantes àqueles que nos países avançados são essenciais para a competitividade de suas empresas; o motivo deles aqui não serem contratados, como apontado anteriormente, não se deve à sua inadequação ao ambiente empresarial e não tem por que se alterar significativamente ‘por decreto’, dado que decorre de uma condição estrutural e recorrente típica dos países situados na periferia do sistema capitalista”.

33.Obstáculos estruturais associados à condição periférica reforçam “a legítima baixa propensão da empresa a realizar P&D, uma atividade em todo o mundo custosa, arriscada, com frutos de difícil apropriação, etc.” e seguirão “inibindo esta demanda, sobretudo dada a tendência à desindustrialização e reprimarização” e [dada] a “ameaça chinesa”. A Pesquisa de Inovação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pintec-IBGE) revelou que o comportamento inovativo das empresas locais se baseia na aquisição de máquinas, equipamentos e insumos (frequentemente no exterior) e que as atividades de P&D, “além de relativamente bem menos importantes, se concentram invariavelmente num pequeno grupo em que a participação das multinacionais vem crescendo significativamente”. O gráfico “Número de empresas que implementou inovações de produto e/ou processo, 2008-2017” revela que o número de empresas (indústrias de transformação) desse grupo “inovador” até cresceu modestamente de 37.808 em 2008 para 41.012 em 2011 (+8,47%), e daí para 41.850 em 2014 (+2%); porém, declinou para 34.396 em 2017 (–21,67%), regredindo a um patamar inferior ao de uma década antes.[v].

34.Por fim: É difícil aceitar a ideia de que o conhecimento requerido para estimular a inovação com claro alcance social, que seja o vetor do desenvolvimento que contemple as necessidades reais da classe trabalhadora e do povo, seja aquele que proporciona o sucesso empresarial. Contribuirá mais para isso a orientação do potencial de inovação técnico e científico dos ICTs públicos a formação de profissionais e a realização de pesquisas concernentes ao componente cognitivo associado às demandas materiais e culturais da maioria da população.

35.Quando de sua sanção pela presidenta Dilma Rousseff, com apenas alguns vetos, o “Marco Legal de CT&I” também recebeu dura crítica da Associação de Docentes da USP (Adusp) por “ceder infraestrutura e recursos humanos a empresas, organizações e projetos privados”; por permitir contrapartidas “financeiras e não financeiras” ao compartilhamento de laboratórios, equipamentos e outros bens públicos, abrindo, assim, “enorme campo para a apropriação pura e simples do patrimônio público por grupos privados”; e por autorizar o uso de “capital intelectual” das instituições públicas de C&T por organizações privadas, sendo que a expressão “capital intelectual” é definida na lei 13.243/2016 como “conhecimento acumulado pelo pessoal da organização [a ICT pública], passível de aplicação em projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação”.

36.Como agravante, a lei prevê que, uma vez celebrado o contrato entre a ICT pública e a empresa ou organização privada, “dirigentes, criadores ou quaisquer outros servidores, empregados ou prestadores de serviços são obrigados a repassar os conhecimentos e informações necessários à sua efetivação, sob pena de responsabilização administrativa, civil e penal […].” Portanto, prossegue, “por mais espantoso que possa parecer, se determinado pesquisador, como funcionário público exemplar […] vier por qualquer motivo a resistir à perversa apropriação de patrimônio público imaterial — na forma de processos, pesquisas, conhecimentos — por interesses privados nacionais ou estrangeiros, apropriação essa prevista, pretendida e legitimada no novo ‘Marco Legal de C&T’, correrá o risco de ser processado criminalmente”.

37.À luz dessas considerações, portanto, urge repensar o modelo no qual estamos imersos e como devemos agir em relação a ele, para que não sejamos meros caudatários.

38.Como integrantes deste modelo, há que registrar o enorme protagonismo das chamadas “fundações privadas de apoio”, presentes em quase todas as universidades federais, fortemente atuantes nas universidades estaduais paulistas (na USP, são 30!), no Instituto Butantan e também em instituições federais de pesquisa como a Fiocruz e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), por exemplo. As “fundações privadas de apoio” ligadas a faculdades públicas de medicina credenciaram-se como “organizações sociais de saúde” (OSS) e beneficiam-se de bilionários contratos de gestão com o setor público.

39.Tais fundações privadas proclamadas “de apoio” constituem um dos principais instrumentos do projeto neoliberal de universidade pública, na medida em que enfraquecem o caráter público e gratuito da universidade, mercantilizam a produção de conhecimento — por meio da comercialização de serviços privados e de cursos pagos — e cooptam parcela do corpo docente para que sirva ao mercado e não ao interesse público. Atualmente, estão cadastradas pelo MCTI e pelo MEC, conjuntamente, cerca de 500 “fundações de apoio”, o que sinaliza as proporções que esse segmento assumiu[vi].

40.Além disso, vale lembrar que algumas “organizações sociais” privadas administram diretamente grandes projetos científicos bancados pelo poder público. Os projetos Sirius e Orion estão a cargo do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), administrado pela “organização social” Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS), brindada com um contrato de gestão no governo FHC (1998) que lhe permitiu controlar o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), importantíssima unidade pública federal de pesquisa. Já a RNP-Infovias para Conexão Digital é uma rede nacional de pesquisa criada em 1989 pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e cuja gestão foi delegada por FHC, em 2002, à “organização social” Associação Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (AsRNP).

41.Tal cenário de hegemonia dos agentes do capital privado e formuladores neoliberais sobre os entes públicos e de intermináveis conflitos de interesses seja na elaboração e aprovação da legislação voltada ao setor de C&T e TI, seja na formulação e aplicação de políticas públicas, não pode mais ser tolerado como se não houvesse alternativa possível.

42.A necessária retomada do Programa Espacial sob controle civil

43.O PT deve propor ao governo federal uma completa revisão do Programa Espacial Brasileiro (PEB), a começar pela retomada do seu controle pela Agência Espacial Brasileira (AEB).

44.Ao longo dos quatro anos do governo Bolsonaro, a área espacial no Brasil voltou a perder relevância, com o agravamento dos cortes orçamentários do setor, perda de recursos humanos nos institutos de pesquisa por conta da falta de concursos públicos e perdas salariais importantes das carreiras de C&T após anos sem a reposição das perdas causadas pela inflação. As ações estratégicas do Plano Nacional de Atividades Espaciais (PNAE) foram deixadas em segundo plano pelo governo Bolsonaro, com a criação de programas improvisados, a cessão da base de Alcântara aos EUA para lançamentos comerciais por parte de empresas privadas nacionais ou estrangeiras, além da suspensão — nunca formalizada, mas na prática implementada — da cooperação espacial com a China, quase pondo fim a uma das mais duradouras e profícuas cooperações do país, que resultou no desenvolvimento, lançamento e operação conjunta de seis satélites de sensoriamento remoto desde o ano de 1988.

45.A partir de 2023, iniciado o governo Lula, a área de C&T, em geral, e a área espacial, em particular, voltam a receber mais atenção, tendo início a reposição das perdas salariais dos servidores da carreira e a retomada de concursos públicos que permitiram ao INPE recuperar um terço de toda a sua força de trabalho. Outra decisão digna de nota foi a retomada de relações efetivas com a China, mediante a assinatura da continuidade da cooperação entre os países na área espacial e o desenvolvimento de dois novos satélites da série CBERS (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres), em decisão já ratificada pela Câmara dos Deputados e Senado Federal.

46.Por outro lado, preocupa a sanção por parte do presidente Lula da chamada Lei Geral do Espaço (lei 14.946/2024), que regula as atividades espaciais no Brasil por parte do poder público e empresas privadas nacionais ou estrangeiras. Ela resultou do PL 1.006/2022, que vinha sendo discutido desde o governo Temer, quando foi publicada a Portaria 71 do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) que instituiu o GT-12 do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB), com atribuição de “elaborar a Lei Geral do Espaço”. Com a mudança de governo em 2019, e com o GT-12 não tendo concluído sua missão, o governo Bolsonaro o recriou com as mesmas atribuições, subsidiando o referido PL que deu origem à lei em 2024.

47.Sancionada pelo presidente Lula com apenas um veto de natureza ambiental, a lei 14.946/2024 regulamenta a forma de supervisão do Estado sobre as atividades espaciais no país; as condições e responsáveis por autorizar entes públicos ou privados, nacionais ou estrangeiros, a desenvolverem atividades espaciais; e a forma de registro dessas atividades, seguros, procedimentos a serem observados e sanções a serem aplicadas em caso de descumprimento de normas.

48.Porém, o principal a se destacar nesta lei é que, ao buscar distinguir entre as atividades espaciais civis (sob responsabilidade da AEB) e militares, sob responsabilidade da Força Aérea Brasileira (FAB), confere a esta última a prerrogativa da palavra final acerca da caracterização da natureza dessas atividades, da autorização para a instalação e operação e sensores de monitoramento e vigilância de artefatos e detritos espaciais, e da requisição de dados espaciais. A exigência de se consultar a Aeronáutica, supostamente para fins de análise dos impactos da atividade espacial civil na segurança ou defesa nacional, reforça a ideia de que haverá uma verdadeira tutela das autoridades de Defesa sobre um programa espacial que é eminentemente (e formalmente) de natureza civil, como se buscou demonstrar desde a criação da Agência Espacial Brasileira em 1994.

49.A governança do PEB continua dúbia e confusa, com atividades civis e militares se intercalando, mas sempre cabendo à área militar a palavra final sobre o que pode ou não ser feito, inclusive por parte de institutos de pesquisa públicos civis, como o INPE, prejudicando assim o avanço e o pleno desenvolvimento do país neste setor.

50.Apoio aos setoriais estaduais e defesa do setor público

51.O Setorial Nacional de C&T e TI deve apoiar os setoriais estaduais e o conjunto do partido nas lutas travadas em defesa do setor público e das empresas estatais. Particularmente importante é a luta para reverter a privatização das companhias públicas de água e saneamento, com destaque para os casos do Rio Grande do Sul (Corsan), Paraná (Sanepar) e São Paulo (Sabesp). Condenável e inaceitável, ainda, a decisão do governo do Piauí, que tem à frente um petista, de privatizar a estatal Agespisa (2024).

52. No Paraná, está em curso um gigantesco desmonte do patrimônio público, do qual podemos destacar mais recentemente a privatização da Copel Telecom, da Copel Energia, da Ferroeste e, neste exato momento, a ameaça de privatização da Celepar. A burguesia agroexportadora não tem projeto de desenvolvimento e se utiliza do Estado como meio para financiar seus investimentos, visando exclusivamente o incremento de suas margens de lucro privado e transferir ao povo os riscos e prejuízos.

53.No tocante a São Paulo, cabe apoiar o setorial estadual na defesa do parque científico e tecnológico paulista, alvo de um longo processo de sucateamento, desmonte e privatização iniciado nos governos do PSDB (cujo ápice foram as gestões Alckmin e Doria) e ampliado e agravado por Tarcísio de Freitas, o governador neofascista que vem destruindo a rede pública de ensino (imposição de aplicativos, privatização da gestão de escolas, militarização) e operando uma política de enfraquecimento dos institutos públicos estaduais de pesquisa e da carreira de pesquisador.

54.Quase oito mil cargos de pesquisadores e técnicos continuam vagos, sem reposição, nos 16 institutos públicos estaduais de pesquisa vinculados à saúde e à agricultura no estado de São Paulo. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), que atualmente é uma empresa pública, teve seu principal prédio cedido ao Google e descaracterizado apesar de sua importância arquitetônica e histórica.

55.Nossos setoriais devem se solidarizar com as trabalhadoras e trabalhadores desses institutos e com as suas entidades representativas, APqC e SINTPq, somando-se à agenda de luta em defesa do setor público.

56.Na presente conjuntura, de “tempos de guerra”, torna-se cada vez mais evidente que precisamos de um partido forte e combativo, para enfrentar as lutas atuais e as que se avizinham, contra o neoliberalismo gourmet e contra sua vertente neofascista. O que implica contar com militância aguerrida, organizada e devidamente informada. Os setoriais, como os de C&T e TI, podem cumprir um papel expressivo seja como espaço organizativo de lutas específicas, seja como instância capaz de analisar e formular políticas — e assim, no nosso caso, subsidiar o PT nos debates programáticos e na luta por “outra ciência”.

São Paulo, novembro de 2025

Militantes da Articulação de Esquerda inscritos no Setorial de C&T e TI do PT


[i]       “No país do ‘inovacionismo’, visão neoliberal continua a ditar rumos da ciência e tecnologia”. Esquerda Petista, p. 45.

[ii]     Os dados constam de apresentação da ministra Luciana Santos intitulada “40 anos de políticas de Ciência, Tecnologia e Inovação para o desenvolvimento e para a democracia” (2025).

[iii]    Vide a publicação mais recente de Oliveira, A mercantilização da ciência – funções, disfunções e alternativas

(Scientiae Studia, 2023).

[iv]       “Mestres e Doutores 2024”, Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE/MCTI). https://mestresdoutores2024.cgee.org.br/-/3.5-emprego-setor-atividade-economica

[v]      https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/ciencia-tecnologia-e-inovacao/9141-pesquisa-de-inovacao.html?=&t=series-historicas

[vi]     “No país do ‘inovacionismo’, visão neoliberal continua a ditar rumos da ciência e tecnologia”. Esquerda Petista, p. 48.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *