Corredores Bioceânicos e as Novas Rotas do Atlântico Negro 

Por  Fausto Antonio (*)

Epigrafia das Novas Rotas do Atlântico Negro.

O  comando da relação triangular  África, América e Europa virá  “dos  homens e mulheres lentos  que vivem nas  áreas opacas”. De  modo mais preciso, o  geógrafo Milton Santos diz que  “na cidade existem áreas luminosas e opacas e, nestas últimas, vivem os pobres, em seus “[…] espaços da lentidão e não da vertigem” (Santos, 2008, p.79).  

 

 A  China  transforma  veneno em remédio

A  China vencerá, nos próximos  anos,  os EUA no  plano comercial, industrial e da  diplomacia. A derrota será  extensiva às  colônias  estadunidenses na Europa.  A  dialética milenar  utilizada pela China,  erigida e  renovada  pelas Novas  Rotas  da  Seda,  parte da  base  material hegemônica  do momento, o capitalismo, e  do chamado  “livre  comércio”, no contexto internacional, para fortalecer o Estado Chinês  soberano e na  contramão dos Estados  nacionais rendidos ao domínio de  empresas e  empresários.

Assim a  China derrotará os  EUA com os  valores, notadamente no  contexto mundial, do próprio capitalismo. A China, que  é  desde  sempre  uma superpotência civilizatória, considerou  que os  EUA  podem ser  vencidos  com os  valores  do capitalismo e da circulação de capital e riquezas que eles, de  modo perverso e  criminoso, obstruem historicamente.

Os  EUA  são sobretudo  ou  exclusivamente  uma  potência  bélica e de intervenção direta  e indireta nas soberanias nacionais.  Quando impedidos, por  limites geopolíticos de atuarem em guerras diretas, os EUA atuam em guerras por procuração e pulverizam ações golpistas híbridas nos quatro cantos do planeta.  Sobram, nas  ações  dos EUA, sanções, bloqueios criminosos,  golpes e  intervenções armadas sanguinárias em profusão.

A  China, por  outro ângulo de  ação,  é  internacionalmente  uma potência  capitalista, que  faz investimentos e não interfere na  soberania  dos parceiros  comerciais. Não obstante a  intervenção  internacional  para derrotar os EUA, no contexto interno chinês,  quem comanda a  economia e a planificação alongada de tudo é o Estado soberano.

Na ótica chinesa, contrariando os  desígnios totalitários da OTAN e o seu verdugo central, os EUA, a sociedade é  central e a  economia  é residual. O processo econômico é para promover o desenvolvimento dos países e para a  elevação das  condições sociais do conjunto da humanidade. Ao atuar relativamente a partir dos valores capitalistas, a China  transforma o capitalismo; isto é, o veneno em remédio.

As Novas  Rotas da Seda são chaves horizontais, conceito e método geopolítico, para a  cooperação e  relação aberta e/ou de mão dupla com  os países pobres e emergentes.  Ao considerarmos as  Novas  Rotas da Seda como categoria de  análise, somos  imediatamente impelidos a  considerá-las  como artefato geopolítico para as intervenções anti-imperialismo. É  assim, cara leitora e  caro leitor, que  inserimos os  corredores bioceânicos em construção na  América do Sul e, no mesmo  comando contrário à OTAN, emergem dos lugares da América do Sul e da África, as  Novas Rotas do Atlântico Negro.

A referência enunciativa Atlântico Negro, a despeito da delimitação dada pelas Novas Rotas, não é tributária das sistematizações adjetivas de Gilroy (2001), fundamentalmente no que concerne à cultura negra, africana e diaspórica. Estamos em campos opostos, não comungamos com as noções flácidas e frouxas de “dupla consciência” e de “hibridismo” consagradas pela branquitude e, de forma alguma, defendemos os denominados “sincretismos”, que, no conjunto, revelam as posições “freyrianas” (Gilberto Freyre) do autor em pauta.

Atlântico Negro, que  é o  corpo  negro-africano, é um contínuo do Atlântico Negro nos territórios, que  são encruzilhadas epistemológicas e de processos de  luta.  Deriva dessa sistematização as Novas Rotas do Atlântico  Negro como  espaço  de  revanche, arma, ataque e defesa,  relevando a persistência de perspectivas  totalitárias,  eurocêntricas, racistas   e  imperialistas. Numa  retomada,  Atlântico  Negro é  artefato  de  força, de  imposição e, notadamente, de comando e poder político  dos  lugares africanos, negros  e  dos  deslocamentos.

Corredores Bioceânicos e as Novas Rotas do Atlântico Negro   

Os  corredores  bioceânicos  rodoviário e  ferroviário, na  América  do  Sul, que ligarão os portos do oceano Atlântico aos  portos do oceano Pacífico, encruzilham territórios, entendidos como quadro de vida,  e põem  em  conexão, numa  ponta, a Ásia ; e, na  outra, a  África e  a  Europa.

Os  territórios usados e  encruzilhados  pelos  corredores materializam  as escalas global e local, por isso os corredores bioceânicos, porto  de Santos, oceano  Atlântico, SP, Brasil, e Antofagasta, oceano Pacífico, Chile encurtam distâncias e mais ainda as relações e ações sociais entre os países  envolvidos.

No  sistema bioceânico, que tem nos  polos  Brasil e Chile, a malha de rodovias terá, no contínuo do território destacado, conexão com a  malha ferroviária, nos mesmos polos. Com objetivos  equivalentes e com alcance polar dado pelo Brasil, Atlântico, e Peru ,Pacífico, teremos a  ligação feita por ferrovia do porto do Açu, oceano  Atlântico, RJ, Brasil ao porto de Ilo,  oceano Pacífico,  Peru.

No conjunto, relevando que são sistemas integrados e  que  se integrarão com outros meios de transporte, os  corredores  terão cada  vez mais  importância local, regional, nacional  e global. Os  corredores  falarão não pelos  corredores  em si, mas pelo território, que  deve assegurar o uso e  o trânsito pelas pessoas e não tão-somente a circulação de mercadorias.

A  propósito de território e do seu uso e/ou  do território usado, negritado no parágrafo anterior, é  fundamental reler a obra de Milton Santos (2000, 2008).  Ao se discutir sobre a  noção de território e a relação entre o local e o global, é necessário, inicialmente, atentar para a questão da escala geográfica, pois essa categorização inclui arelação e a inseparabilidade entre o  território transitado e  encruzilhado  no  contínuo da América  do  Sul e  suas continuidades políticas, nos BRICS e nas  Novas  Rotas  da Seda, com os países asiáticos, via Pacífico,  e  com  os  países africanos, que historicizam, no  concerto de relações nacionais  soberanas e  libertárias,  as Novas Rotas do Atlântico Negro.

Numa síntese, as  Novas Rotas do Atlântico Negro pressupõem a relação  triangular  América  do Sul, Europa e África, mas o motor e o  comando virão dos  territórios praticados, vividos, vivenciados,  transitados e  encruzilhados   pelos  sulamaricanos, africanos  e dinamizados pelos projetos e  processos  humanos, econômicos, tecnológicos e científicos  pendularmente  extendidos  à  Ásia,  à África e à Europa.

Assim, os projetos  construídos  em escala global, como a conexão triangular África, Europa e  América  do Sul,  serão  percebidos, fertilizados  e renovados na escala local, a partir do desenvolvimento das relações  comerciais, da  circulação de  pessoas, de bens culturais, de mercadorias,  de intercâmbio  científico e de pesquisa, que geram mudanças no território usado e, portanto,  nas condições  objetivas e materiais locais.

Os  corredores exigem  uma  nova  noção  de transporte, que  é  parte do território como  sistema técnico  e, desse modo,  inseparável das relações sociais. Não é apenas a chave relativa ao encurtamento das distâncias que  é   central. Há a efetiva ação para superar as condições  sociais  de desigualdades alimentadas historicamente pela ausência de transporte concebido como meio de comunicação local, que possibilita a compreensão e  superação  das desigualdades locais no espaço circunscrito pelos  países entrelaçados pelos  corredores bioceânicos.

Além de  encurtar distâncias, os  corredores permitirão o acesso ao Atlântico e  ao  Pacífico de  países, antes do projeto, interditados e/ou  literalmente ilhados. É  o caso  do Paraguai e o é  também o da Bolívia. A  concretização  do corredor  equivale ao efetivo desbloqueio dos povos dessas nações e das suas relações com os  países vizinhos  e  com  o  mundo.   Não são poucos os problemas do subcontinente América  do  Sul.

A  propósito dos dilemas, há  desemprego, pobreza , fome e consequentes  impactos no  acesso  precário  aos  serviços de saúde, de educação e cultura. A  fragmentação da América do Sul , que  não se limita ao tópico delimitado  pelo  transporte,  tem  raiz profunda no racismo, na concentração de riqueza, no desemprego, na pobreza, na  fome e, sobretudo, na violência estrutural e sistêmica imposta pelo imperialismo. As  ações do  imperialismo  não devem ou  não podem ser minimizadas nos  processos de fragmentação e empobrecimento do continente e do mundo atual.

O  nexo político para  viabilizar  os  corredores biooceâncios, a   favor das  populações  negro-indígenas e trabalhadoras, na América  do  Sul,  passa pela centralidade do lugar, que  é , em concordância  com o  pensamento  de Milton Santos( 1993. p,20), que  enfatiza  que “é pelo lugar que o mundo é revisto e o homem ajusta a sua interpretação, é nele que opermanente e o real triunfam sobre o movimento, o passageiro e o que é imposto defora”.

Desta maneira, os  corredores, ao considerarmos que o  seu  uso se  confunde com  a  inseparabilidade, no  espaço, dos sistemas  técnicos e  das  relações sociais, expulsam as políticas verticais do imperialismo. Em outros  termos, os corredores bioceânicos  se  concretizam  pelos lugares, que são realidades sociais regadas por proximidades, aproximações, pactos e  solidariedade.

Na  encruzilhada do local e do global, cresce  a  relação dialética dessas escalas.  Nos corredores, o local, o  interior dos estados de São  Paulo e  Mato  Grosso  do  Sul, entre outros, e o global, representado pelo  conjunto  dos  países transitados,  empiricizam  cooperação, comunicação horizontal,  pactos  políticos, sociais ,conerciais e, o  que  é fundamental, relações  humanizadas e humanas interrdependentes.

(*) Fausto Antonio é escritor, poeta, dramaturgo, professor  da Unilab  -BA  e autor do festejado No Reino da Carapinha, editora Ciclo Contínuo, 2018.


GILROY, Paul . O Atlántico negro: modernidade e duplaconsciencia I ; traducéo de Cid KnipelMoreira. – Sao Paulo: Ed. 34; Rio de janeiro:Uníversidade Candido Mendes, Centro de EstudosAfro-Asiáticos, 2001.

SANTOS, M. A urbanização brasileira.São Paulo: Hucitec.1993.__ Por uma  outra  globaolização : do pensamento único  à  consciência  universal . Rio de Janeiro: Record, 2000. __Técnica, espaço e tempo: globalização e  meio  técnico- científico e informacional. 2.ed. São  Paulo: Hucitec,2008.

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