No ano em que a homologação da Lei Áurea completa 131 anos, os dados oficiais do governo brasileiro, apresentados pelas secretarias estaduais de segurança pública, apontam que, somente no primeiro semestre do ano de 2019, o Brasil conseguiu atingir a marca de aproximadamente 28 mil crimes contra a vida, dentre eles: homicídios dolosos, lesões corporais e latrocínios. E as vítimas, em sua maioria, são homens negros jovens. Segundo os mesmos dados, aproximadamente, 1 jovem morre a cada 23 minutos no país. A possibilidade de jovens negros serem assassinados no Brasil é 2,88 vezes maior do que a de jovens brancos, segundo a 5ª edição do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), divulgada no ano passado. Além disso, os adolescentes do sexo masculino apresentam um risco 11,92 vezes superior ao das meninas, sendo a arma de fogo o principal meio utilizado nos crimes. Assim, segundo o Atlas da Violência, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras.
Ao analisar este cenário fica perceptível que a Lei Áurea não passa de um texto morto e, como advogou Florestan Fernandes, há um genocídio do negro em curso no Brasil. Dos casos mais publicizados no país, pode-se resgatar a história da dona de casa Cláudia Silva Ferreira que em 2014 foi alvejado por policiais militares que supostamente se assustaram com o copo de café que ela trazia na mão e em seguida fora arrastada por mais de 300 metros pelo camburão da PM. Ou resgatarmos a história de Amarildo Dias de Souza que em 2013 fora sequestrado na porta de casa e torturado e morto por policiais militares, que foram posteriormente absolvidos do crime. Ou o caso dos cinco meninos de Costa Barros, alvejados por 111 tiros de fuzil pela PM do Rio de Janeiro em 2015 após descerem o morro para comemorar o primeiro salário de um deles. E o mais emblemático de todos, o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL/RJ), assassinada pela milícia, a qual é estranhamente ligada à família do Presidente da República.
Casos como estes desenham o rosto do genocídio enfrentado pela população negra periférica deste país e é nessa dinâmica que pretendemos compreender a operacionalidade do racismo brasileiro e como este tem moldado a vida das pessoas negras no país. O Professor Doutor Kabengele Munanga nos explica que a compreensão do conceito de raça deve ser analisada através de seu campo semântico e espacial (2004), isto é, à dinâmica do racismo brasileiro tem se moldado através dos séculos a fim de se perpetuar socialmente. O que num primeiro momento se dava de forma escancarada, pela expropriação das liberdades e enclausuramento nas senzalas, hoje se manifesta através do racismo institucional e do genocídio legitimado pelas narrativas constituídas cotidianamente.
Os negros/as, anteriormente desumanizados com o intuito de legitimação da escravidão, foram vistos como animais sem alma e civilidade, ou seja, que precisavam ser tutelados pela branquitude para alcançar a humanidade e a salvação cristã. Nesse sentido, a ação do Papa Nicolau V que, em 1454, autorizou o mercado escravo de africanos pela bula “Romanus Pontifex” apontava a concordância da Igreja com a exploração dos corpos negros. Ela, portanto, justificava o tráfico dizendo que o negro era pagão e que a escravidão era uma forma de salvar o negro, salvar sua alma, prometendo-lhe a vida eterna, depois da morte.
Ainda neste contexto, a diáspora do continente africano sequestrou seres humanos e os espalhou pelo mundo ocidental, tendo como base a utilização desses sujeitos enquanto mão de obra escrava, promovendo um dos maiores genocídios da história da humanidade. Diante do que pretendem os defensores da democracia racial, as narrativas imperativas constroem um processo de marginalização do povo negro, das suas culturas, da sua espiritualidade, das suas religiosidades e da sua contribuição histórica na construção do nosso país, evidenciando que a dicotomia entre branquitude e negritude moldam o rosto das relações sociais na sociedade brasileira. Apesar disso, foram os negros(as) escravizados que garantiram o desenvolvimento da prática mercantil no território brasileiro, desde a cana de açúcar às demais riquezas naturais. Estima-se que a população brasileira em 1798 era de 3.250.000 habitantes, dos quais 1.582.000 eram escravizados, (UNESCO, 2010, p. 116).
Mesmo após a homologação da Lei Áurea as pessoas negras não foram devidamente recompensadas pelos séculos de escravização que foram acometidas. Ainda no carro da história, as “elites” da época jamais aceitaram a liberdade dos/das negros/as brasileiro/as. As classes dominantes resistiram em aceitar o acesso destes/as ao mercado de trabalho assalariado. Sendo assim, o Estado brasileiro consolidou uma política de migração europeia com dois intuitos: assegurar que houvesse mão-de-obra para ocupar os postos de trabalho e embranquecer a população.
Ainda hoje a população negra sofre com os estereótipos construídos através do tempo. Tais construções dificultam o acesso aos postos de trabalhos dignos e nos coloca na ilegalidade. Bem como são esses estereótipos que definem onde acabam indo parar as balas perdidas da Polícia Militar, que legitima os abusos de poder e encarcera a população negra.
Diante o aprofundamento da crise econômica e do ultraneoliberalismo que vivemos na atual conjuntura; num cenário de (des)reforma trabalhista, (des)refoma da previdência e precarização dos posto de trabalhos e milhões de pessoas desempregadas, os dados revelam mais uma vez que os mais prejudicados neste país são os sujeitos pretos/as. Com aproximadamente 13 milhões de pessoas desempregadas no Brasil, 8,3 milhões são negras, ou seja, 63,7% dos desempregados, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continuada (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
É nesse cenário que vimos afirmar que não há nada que se comemorar nesse 13 de maio, sabemos que as amarras mudaram de cara, mas continuam existindo, já que um pai de família preto ainda é alvejado com mais de 200 tiros enquanto passeia com a família e que governantes sobrevoam as favelas operando o medo e a morte de pessoas inocentes. Essa data deve ser de reflexões, de voltarmos a história e de resgatarmos nossos ancestrais que construíram os quilombos e botaram fogo nas Casas Grandes. Lembrar daqueles que levantaram revoltas e guerras em prol de nossa liberdade. Precisamos fazer de nossa militância um instrumento de conscientização até que cada negro/a tenham consciência de que direito não é favor.
Precisamos tomar as ruas para que políticas públicas de enfrentamento ao racismo institucional, de combate a guerra às drogas sejam verdadeiramente implementadas. É tempos de guerra, logo precisamos saber fazer uma revolução anti-racista.
Negras e negros da Juventude da Articulação de Esquerda (JAE)