Página 13 divulga texto de Luís Felipe Miguel*, publicado originalmente em rede social, sobre o debate da “frente ampla”. O autor aponta riscos e equívocos que fazem parte de iniciativas como as “Direitos Já”, lançada na semana passada.
Frentes que são incapazes de lutar contra a agenda ultraliberal, os ataques aos direitos dos trabalhadores e a política entreguista. Não são capazes nem mesmo de uma defesa consequente das liberdades democráticas, como fica evidenciado ao longo do texto. Portanto, os seus limites precisam ser ressaltados. O texto de Luis Felipe oferece alguns elementos importantes neste sentido.
Boa leitura!
“Deve a esquerda participar da nova “frente ampla” contra o bolsonarismo, lançada faz uma semana na PUC paulistana?
Em artigo no Intercept Brasil, João Filho responde com um sonoro “sim” e critica PT e, secundariamente, PSOL pela ausência no ato.
O artigo é vibrante de indignação, mas raso de argumentos. Aplica à política uma moral de parquinho infantil: sejamos todos amiguinhos.
O título, aliás, é explícito: o PT “se recusa a dar as mãos na hora de defender o país”.
O PT seria fominha (“o cacoete da hegemonia”). Teria dificuldade de superar os “traumas decorrentes do impeachment”. E insistiria na bandeira #LulaLivre, que o articulista reconhece justa – mas fala mais alto o fato de “que muita gente no campo democrático […] discorda de que essa seja uma boa estratégia no combate ao bolsonarismo”.
Seria fundamental, portanto, esquecer o golpe e engavetar a bandeira da libertação de Lula, em nome do bem comum. Afinal, “não se trata mais de esquerda x direita, mas de civilização x barbárie”.
Mais pro final do texto, João Filho escancara: “As lições da última eleição foram ignoradas”. E a lição é, claro, que o PT devia ter apoiado Ciro Gomes.
O artigo é mais que uma coleção de equívocos. É uma demonstração de como muita gente do campo progressista ficou presa na armadilha que o golpe de 2016 e o bolsonarismo criaram.
A frente ampla, que reúne Kassab, FHC, Flávio Dino, Márcio França, Marta Suplicy, Ciro Gomes e até Noam Chomsky, aponta para uma “normalização” pós-bolsonariana que aceita o golpe como dado. Aceita uma recomposição muito parcial do pacto constitucional de 1988. Aceita a restrição dos direitos da classe trabalhadora, a desnacionalização da economia e o retrocesso nas políticas sociais. Aceita que o campo popular seja condenado à posição de coadjuvante do debate político.
É esse o mínimo denominador comum que garante sua frontal amplitude.
Em suma: vamos tirar o bode, Bolsonaro, da sala. E ficar contentes com o que nos sobra, que é o Brasil do projeto original do golpe de 2016.
A recusa à defesa da liberdade para Lula é um emblema disso tudo. Trata-se de uma questão simples de justiça: um homem, um septuagenário, está preso após um processo viciado (hoje, mais do que comprovado que foi viciado, conduzido por um juiz canalha, dentro de uma estrutura judiciária corrompida). Como deixar isso de lado?
Mas a bandeira “Lula Livre” não é só um imperativo moral, é também uma exigência da ação política. Abandoná-la – para evocar as palavras célebres atribuídas ao chefe da polícia de Napoleão, Joseph Fouché – “é pior que um crime: é um erro”.
A conspiração midiática e judicial que colocou Lula na cadeia é o fio que liga o golpe de 2016 à vitória do bolsonarismo em 2018. Defender a anulação do processo que o condenou, sua libertação imediata, a punição aos responsáveis é defender o retorno do ideal de império da lei e da livre competição política, sem criminalização de partidos ou tendências, no Brasil.
Quando João Filho diz que “corre-se o risco de não se ter nem democracia nem Lula livre”, ele está dizendo que devemos nos contentar com uma democracia que inclua perseguição judicial, criminalização de um lado do espectro político, repressão policial seletiva, suspensão das garantias constitucionais para os indesejados, tutela sobre o processo eleitoral… Opa, que democracia seria essa?
O oportunismo da “frente ampla”, portanto, é maroto para a direita que quer uma retomada contida e tutelada da democracia e do Estado de direito, para não ameaçar o projeto das contra-reformas que a une a Bolsonaro, e contraprodutivo para as forças progressistas, que precisariam perder identidade e inibir seu próprio discurso.
Há um ponto no texto de João Filho, porém, que merece atenção. Ele diz que “o PT calcula que o melhor a se fazer é deixar Bolsonaro sangrando até 2022, perdendo popularidade e, assim, derrotar a direita nas urnas”.
É errado singularizar o PT nessa posição – a ideia de que um mandato de Bolsonaro seria um bom “castigo” para o Brasil aprender presidiu, por exemplo, a neutralidade imperdoável de Ciro Gomes no segundo turno. E o que dizer de todos aqueles que embarcaram na campanha do “ele não” quando achavam que podiam tirar uma casquinha, mas na hora H preferiram a “neutralidade” ou mesmo o apoio ao Coiso, em nome do oportunismo de fôlego curto?
E é errado julgar que o equívoco da posição é “subestimar […] a força avassaladora do antipetismo”. Parece então que o problema estaria só no cálculo eleitoral errado. Se não houvesse o fantasma do “antipetismo”, então estaria tudo bem em esperar uma vitória certa em 2022?
O fato é que muitos dirigentes – do PT, mas não só dele, e incluindo o próprio Lula em muitas de suas falas – parecem não ser capazes de pensar a política para além do processo eleitoral. No entanto, o processo eleitoral, que sempre é insuficiente como forma de participação política, torna-se desprovido de qualquer sentido quando está submetido ao veto do judiciário, dos militares, dos ianques, do capital, da mídia. Com isso em mente, a proposta da “frente ampla” se torna ainda menos sedutora.
Ou, nas palavras imortais do caminhoneiro Pedro: é cilada, Bino!
Bolsonaro tem que ser retirado da presidência? Sem dúvida. Mas não basta. E, na tarefa mais ampla de retomada do caminho da democracia e da justiça, muitos dos amiguinhos da “frente ampla” estão do outro lado das trincheiras. Formalizar a união com eles, da forma com o articulista do Intercept exalta, significa uma rendição precipitada ao estreitamento do universo de possibilidades políticas que o golpe de 2016 promoveu.
Luis Felipe Miguel”
*Professor da UnB, coordenador do Demodê – Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.