Por Rayane Andrade (*)
O desafio imposto pelo cenário político, econômico e sanitário brasileiro torna incontornável a discussão sobre direitos humanos. Porém, convém reforçar que o entendimento sobre a categoria vai desde disputas teóricas à práticas e, com a proximidade dos encontros setoriais e definições eleitorais, é preciso concentrar nossos esforços para encaminhar qual debate sobre DH queremos ver no PT.
Para buscar elementos que respondam a essa questão é necessário perceber como o Partido tem se colocado no debate. Para ficar no período mais recente, é bom refrescar a memória para recordar que nas vésperas do Golpe de 2016, em nome de uma política equivocada de acenos aos nossos inimigos, um dos elementos que se sacrificou com maior rapidez foi justamente a política de direitos humanos que ensaiamos.
A reforma ministerial da presidenta Dilma em 2015 solapou de uma vez só as autônomas secretarias de mulheres, de igualdade racial e direitos humanos, unindo-as em um só lugar, cuja direção coube à companheira Nilma Lino. Importante notar que várias iniciativas foram descontinuadas com essa junção. São exemplos disso: a política das Conferências nacionais de Direitos Humanos, os Centros de Referência em Direitos Humanos e em Igualdade racial, entre outras ações que foram limadas com a mescla.
Ao vermos os debates recentes sobre a prisão política de Géssica, Galo e Pilha, o crescimento dos casos de LGBTQIfobia e de violência contra as mulheres, é necessário olhar no retrovisor e perceber que abrir mão dos instrumentos de disputa ideológica contribuiu para a escalada ideológica bolsonarista. Assim, com a sacralização do golpe, a direita sem luvas de pelica cresceu no nosso recuo, tendo como uma de suas frentes mais expressivas o ataque aos direitos humanos e sua própria ressignificação.
É sobre os escombros de um país que voltou ao mapa da fome, que acumula milhares de desempregados, que bate mais de meio milhão de mortos pela Covid-19 e que vê o bolsonarismo fascistizante sendo um dos pólos fortes do debate público que precisamos responder qual deve ser a política petista em direitos humanos. E, para contribuir com esse debate é importante entender o que eles são e para que servem.
Enquanto jurista marxista, meu entendimento sobre o direito é transparente. A estrutura jurídica é a interface pela qual nos relacionamos com o modo de produção vigente. É a norma que transforma em linguagem as ordens do capitalismo-patriarcado-racismo e que consagra a ficção da igualdade jurídica que possibilita a compra e venda de tudo que interesse.
Assim, retomando o debate de Marx no texto “Sobre a questão judaica”, é importante salientar que os direitos humanos, enquanto concessões arrancadas da ordem política capitalista-patriarcal-racista, são elementos de emancipação política, mas que não resultam em uma total libertação por estarem circunscritos a uma estrutura profundamente desumana. Dito de outra forma, os direitos humanos são trincheiras escavadas que amenizam as violências do modo de produção, mas que sozinhas não podem derrotá-lo.
Como as condições para pôr fim ao complexo capitalista-patriarcal-racista ainda não foram estabelecidas, a militância pelos direitos humanos se coloca na fronteira da barbárie. E, assim como toda fronteira, a luta pelas garantias fundamentais é permeável, confusa e contraditória.
Foi em nome da palavra-chave direitos humanos que o xerife do mundo – os Estados Unidos – levaram guerra a milhares de nações, apoiaram ditaduras empresariais, torturaram e prenderam sem qualquer tribunal para ver. Mas, é também em nome da defesa dos descamisados do mundo, que a militância em direitos humanos anima advogados populares no Brasil a defenderem os trabalhadores sem terra e sem teto da brutalização e do arbítrio.
A contradição é parte do processo, pois tudo que nos envolve assim o é. Então, ao defendermos uma política de direitos humanos para o PT em tempos de guerra é necessário abandonar as ilusões, mas saber que as armas disponíveis para enfrentar essa batalha estão postas dentro dessa gramática.
A investida contra as trabalhadoras não vai cessar e temos, enquanto representantes organizadas da classe, que dar respostas a isto. Assim, não podemos admitir que mais uma vez os cálculos curtos eleitorais se imponham diante da tarefa imensa de trazer as condições mínimas de dignidade de volta à maioria da população.
Se o lado de lá não tem nenhuma vergonha de radicalizar seu discurso, por que devemos nós, que defendemos as coisas mais belas, ter medo de nossas verdadeiras cores? Se queremos derrotar a herança cruel da colonização, da escravidão e do machismo não é falando fino e recuadas que conseguiremos romper com o que está posto.
É literalmente uma questão de vida ou morte que não abandonemos os debates espinhosos. Pois, é só na disputa das ideias que as coisas se transformam. A maioria do país é jovem e temos que aproveitar essa janela para não fazer com que os pensamentos dessa classe sejam capturados pelo bolsonarismo idiotizante.
Assim, a política de direitos humanos do PT deve ser radical. Deve permear todo programa de Governo onde quer que disputemos vagas ao Executivo, a começar pela campanha presidencial. Lula representa o Brasil que nega a dignidade aos que vêm de baixo e sua potência reside justamente aí. Temos que usar sua candidatura justamente para fazer esse contraponto.
Não podemos diminuir o tom das nossas defesas incondicionais às pautas feministas, anti racistas e em prol da diversidade sexual por achar que isso nos fará ser mais palatáveis aos inimigos e melhor sucedidos nas urnas. A história recente nos prova que eles não moderam em relação a nós e, quem sabe, a maioria que dirige o PT também se convença disso.
Temos que ter confiança no povo brasileiro, a classe trabalhadora não é burra. Ela pode e deve ser disputada para o processo de emancipação política, fora das armadilhas liberais. Não podemos vacilar em adotar como certas as narrativas sobre direitos humanos elaboradas a partir do olhar imperialista, nem defender uma visão de direitos humanos genérica.
A tarefa da militância em direitos humanos do PT é essencialmente fazer conexões entre questões que estão no dia a dia da classe trabalhadora. Como a relação que há entre a luta pela segurança alimentar e o combate a violência no campo, ou aquelas entre o extermínio da juventude negra, a segurança pública e a luta antiproibicionista.
Diante disso, penso que a formulação mais adequada aos tempos que vivemos é de pensar os direitos humanos como ferramenta na construção do socialismo. Que eles sejam essa cunha que vá expandindo as vitórias emancipacionista da classe trabalhadora, sobre o terreno da burguesia.
Para que assim seja, é necessário aliar a compreensão teórica com desfechos práticos. De forma que as tarefas que se impõe são objetivas e urgentes. Entre algumas delas estão a necessidade de:
a) Formular uma compreensão de direitos humanos petista nada tímida e que seja radicalmente comprometida com as questões que estão diretamente interligadas com a classe trabalhadora, como: a responsabilização dos militares por seus crimes no regime de exceção, a transformação completa da política de drogas, a discussão aberta sobre o aborto, a proposição de medidas eficazes contra o racismo e que promovam a igualdade na diversidade sexual etc.;
b) Implementar políticas de promoção e debate sobre direitos humanos através de medidas de solidariedade de classe e formação política a partir dos Setoriais em todo o país;
c) Garantir que o setorial nacional de direitos humanos no PT seja atuante no desenho dos planos de governo para as eleições de 2022, convertendo em propostas a compreensão petista radical sobre os direitos humanos; o mesmo se aplicando aos setoriais estaduais;
d) Reivindicar a retomada de uma política nacional de direitos humanos, com a reformulação e implementação dos centros de referência em direitos humanos (CRDH) e de promoção da igualdade racial e da diversidade sexual.
No que diz respeito à elaboração da tendência petista Articulação de Esquerda sobre o tema dos direitos humanos e disputa do setorial, o processo está em andamento e não há definição de encontro interno estabelecido até o momento. O que temos de certo é que parte significativa da militância petista da AE atua na pauta e que temos totais condições de empreender a partir dos setoriais nacionais e estaduais uma visão de direitos humanos densamente imbricada com o processo de construção do socialismo no Brasil.
(*) Rayane Andrade é advogada, professora e militante petista