Por Varlindo Nascimento (*)
A história recente do Brasil tem sido pródiga na construção de imagens representativas do que seria o povo e o Estado brasileiro a partir de uma série de “reflexões” históricas da nossa formação social que, em tese, visam explicar o nosso quadro de permanente crise política, social e econômica.
Dentro dessa perspectiva dois artigos podem nos servir de ponto de partida para uma análise crítica dessas formulações. O primeiro foi escrito pelo advogado e cientista político Christian Edward Cyril Lynch e publicado às vésperas da eleição presidencial de 2014 pelo jornal carioca O Globo. O segundo é assinado pelo banqueiro e ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles (que ainda não havia sido ministro da fazenda), sendo publicado pela Folha de São Paulo em março de 2015.
Contextualizando o cenário em que Lynch produz sua reflexão, estávamos a dias da realização do segundo turno da eleição presidencial que reconduziu Dilma Rousseff ao Palácio do Planalto, em uma disputa direta com o candidato Aécio Neves. Esse contexto consolidava a polarização eleitoral entre PSDB e PT, sendo o sexto pleito consecutivo decidido diretamente entre as duas agremiações partidárias.
O autor compara a plataforma dos dois partidos com a nomenclatura dada a grupos políticos originados desde antes da independência. Os Luzias, liberais “cosmopolitas”, teriam correspondência na conduta do PSDB, por enxergar no tamanho do Estado um problema ao avanço social que deveria ser conduzido pelo mercado. Enquanto os Saquaremas, que ansiavam por políticas nacional-desenvolvimentistas, estariam representados contemporaneamente pelo Partido dos Trabalhadores, porém, atribuindo especificamente ao PT a mácula da corrupção sistêmica.
O artigo de Henrique Meirelles condena o papel desempenhado pelo Estado brasileiro a partir da concepção de que o mesmo sempre interviu excessivamente nas relações socioeconômicas, desde o advento das Capitanias Hereditárias, construindo assim um paralelo com a conduta do Partido dos Trabalhadores no exercício do governo.
Convém situar a escrita do banqueiro no contexto político da época, que correspondia aos primeiros meses do segundo mandato de Dilma. Eleita por uma margem apertada de votos e ameaçada de sabotagem pelos adversários desde a confirmação da vitória nas urnas, a presidenta adotou a plataforma econômica derrotada como mecanismo de governabilidade, o que ficou claro na condução do banqueiro Joaquim Levy ao Ministério da Fazenda. Portanto, o artigo de Meirelles fazia parte de um conjunto de ações da direita e do mercado no sentido de aprofundar o direcionamento que estava sendo dado ao governo através do discurso de implantação de uma “nova matriz econômica”.
Os dois artigos reforçam estereótipos negativos sobre a função do Estado na sociedade, como o da corrupção enquanto condição sine qua non da atividade estatal, mesmo quando o conceito é utilizado de forma anacrônica. Ao mesmo tempo o liberalismo seria algo cosmopolita e virtuoso. Como se não bastasse, as perspectivas desconsideram elementos fundamentais da formação social do país, a exemplo do papel que o instituto da escravidão teve nesse processo, além de comparar recortes temporais completamente diversos, provocando uma descontinuidade temporal que compromete a veracidade da análise. Diante disso, é importante sermos críticos e firmes no exercício do contraponto, de maneira a não permitirmos que essas perspectivas se cristalizem como consensos sociais e determinem a visão da sociedade sobre ela mesma.
(*) Varlindo Nascimento é militante petista em Recife- PE.