Neoliberal, 100% fascista, aliado da Polícia Militar
Por Pedro Pomar (*)
Movimento Negro Unificado (MNU) se manifestou contra a violência policial em março de 2024 durante ato do Dia da Mulher | Foto: Daniel Arroyo / Ponte
Tarcísio de Freitas vem sendo apontado como uma possível alternativa das classes dominantes para a eleição presidencial de 2026, de modo a fazer frente a Lula. O governador de São Paulo seria um “fascista moderado”, um bolsonarista supostamente bem-comportado cuja imagem estaria sendo convenientemente trabalhada pelos setores da mídia que lhe são favoráveis. A hipótese é plausível, embora o figurino imaginado não combine com os traços rústicos do personagem.
Tarcísio busca agradar o grande empresariado fazendo-lhe concessões materiais e simbólicas. A face mais visível dessa política de alianças são as privatizações de empresas públicas estratégicas: Sabesp, Metrô, Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT).
Ao vender o controle acionário da gigante Sabesp, o governador deseja cacifar-se como uma espécie de herói do neoliberalismo, parecendo subestimar, contudo, a grande resistência de movimentos populares e partidos de oposição e o enorme potencial de conflitos com a população. Cedeu patrimônio do IPT à Google e celebrou com uma cerimônia oficial esse gesto de subserviência provinciana.
Também encontram-se sob ameaça de extinção ou de privatização a Fundação Padre Anchieta (TV Cultura), a Fundação para o Remédio Popular (FURP) e a Fundação Casa, “órgãos de relevância para o estado com pretensões de extinção fundadas muito mais em convicções político-ideológicas do que em evidências técnicas que mostrem que esse serviço pode ser extinto ou ter a sua prestação modificada sem afetar a sua qualidade”, como destacou nota da bancada da Federação PT/PCdoB/PV na Alesp, a propósito do plano “São Paulo na Direção Certa”, que Tarcísio lançou em maio último.
Outra linha forte de atuação governamental são as “operações urbanas especiais” destinadas a beneficiar o capital imobiliário. É o caso do projeto de migração da sede do governo para o centro da capital paulista, bem como do projeto “Nova Raposo”, que pretende destruir áreas florestais da região Oeste de São Paulo para abrir espaços a investimentos imobiliários, a pretexto de descongestionar a rodovia Raposo Tavares. O movimento popular resiste bravamente e o governo estadual foi impelido a recuar em parte de suas pretensões, mas não abriu mão da meta principal: derrubar enormes áreas de mata para favorecer construtoras.
Aqui, um parêntese: ao combinar a disposição de entregar patrimônio público com a vontade de facilitar a vida do capital imobiliário, o governo Tarcísio acabou se envolvendo numa enrascada. Colocou à venda, no site da Secretaria de Gestão e Governo Digital, diversos imóveis pertencentes ao poder público estadual, entre eles as sedes do Tribunal de Contas do Estado (TCE-SP), do Ministério Público Estadual (MP-SP), da Assembleia Legislativa (Alesp), do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe), e mais: Pinacoteca, Hospital das Clínicas, Horto Florestal, Jardim Botânico, Estação Ecológica da Juréia e até escolas da rede estadual. A repercussão negativa foi enorme e o governo foi obrigado a desconversar e “tirar do ar” as páginas digitais em questão.
Além das benesses já citadas, Tarcísio manteve na Lei Orçamentária Anual (LOA-2025) um altíssimo nível de desonerações fiscais, prevendo “aumento de cerca de 12% no montante de benefícios fiscais concedidos, que será de R$ 71,5 bilhões em 2025, ante o montante de R$ 63,9 bilhões em 2024”, segundo a Federação liderada pelo PT na Alesp. Essas renúncias fiscais, receitas das quais o Estado abre mão voluntariamente, beneficiam certos grupos econômicos, em detrimento dos gastos sociais com educação, saúde, saneamento e outros.
Até agora, tanto no plano institucional como nas medidas de governo destinadas à sociedade, Tarcísio vem seguindo a picada aberta pelos governos neoliberais que o antecederam, especialmente os de Geraldo Alckmin e de João Doria-Rodrigo Garcia. Sua candidatura foi apoiada por Garcia, e alguns tucanos fazem parte da gestão. Mas ele tem procurado se mostrar como alguém capaz de realizar as “tarefas” neoliberais não cumpridas pelas gestões anteriores, como a venda da Sabesp ou a completa destruição da rede pública de ensino ― imposição de aplicativos, digitalização de conteúdos, aniquilação da carreira docente, vigilância sobre docentes, criação de escolas cívico-militares.
Na verdade, o que parece distinguir o atual governador de seus predecessores do PSDB, e particularmente de Doria, é a centralidade que ele confere à sua relação com a Polícia Militar. O flerte entre Tarcísio e a PM remonta à época de sua candidatura e ao episódio mal explicado de assassinato de um “suspeito” em Paraisópolis em 17 de outubro de 2022. Mas em que ele se distingue dos anteriores, que, tal como ele, sempre predicaram que “bandido bom é bandido morto”?
A PM sob Tarcísio
Na maior parte dos 25 anos em que o PSDB e seus aliados governaram São Paulo, a PM esteve livre para praticar o Terrorismo de Estado contra a população pobre, negra e periférica, bem como contra os movimentos sociais. Nos sucessivos governos de Alckmin, o número de pessoas assassinadas pela PM paulista sempre bateu recordes, igualando-se em ferocidade e letalidade à PM do Rio de Janeiro.
Em maio de 2006, apenas um mês depois que Alckmin se afastou do cargo de governador para disputar a Presidência da República, a PM paulista cometeu, aleatoriamente, em poucos dias, cerca de 400 execuções em retaliação ao assassinato de mais de 40 policiais militares pela facção PCC. Os necrotérios do Instituto Médico Legal ficaram lotados de corpos. Esse episódio, conhecido como “Crimes de Maio”, é o pior e mais grave da história da PM paulista, suplantando as 111 execuções ocorridas no massacre do Carandiru, em 1992.
Apesar desse retrospecto de crimes de Estado, a relação desses governantes com a PM foi pautada por uma certa distância. Doria, especialmente, nomeou para comandar a Secretaria de Segurança Pública um general de quatro estrelas, o qual, por sua vez, implantou um programa de câmeras de vídeo corporais que reduziu substancialmente a matança de supostos “suspeitos”.
Tarcísio, porém, de certa forma, trouxe a PM para o governo ao nomear como secretário de Segurança Pública um capitão reformado que foi afastado das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA) por conduta inadequada. Eleito deputado federal em 2022, Guilherme Derrite foi guindado à posição de secretário de Estado, passando a chefiar, indiretamente, os coronéis da PM dos quais recebia ordens quando na ativa. Além disso, desde a campanha eleitoral, Tarcísio tratou de ganhar a simpatia da tropa, abrindo uma verdadeira cruzada contra as câmeras de vídeo corporais.
Uma vez empossado no governo, Tarcísio passou a sabotar abertamente o programa de câmeras corporais, além de estimular a violência da PM. Chegou a destituir de postos de comando mais de 30 coronéis que apoiavam o uso desse equipamento, substituindo-os por outros presumivelmente contrários ao uso. Tentou adquirir câmeras corporais que seriam ligadas e desligadas pelos próprios policiais militares, mas foi obrigado a desistir depois de enfáticas manifestações contrárias da Defensoria Pública, da Procuradoria Geral da República e do Supremo Tribunal Federal, sem falar nas críticas da oposição e de movimentos sociais.
O resultado de toda a movimentação de Tarcísio no governo foi um aumento da letalidade policial. Em janeiro de 2023, primeiro mês do novo governador, a letalidade da PM cresceu 44% relativamente a janeiro de 2022. Ao final desse primeiro ano de governo, o número de mortes pela PM havia subido 34%. O próprio comandante da PM exortou os policiais a não inibirem o uso da força na presença das câmeras corporais.
Os episódios mais marcantes de Terrorismo de Estado sob Tarcísio ocorreram em comunidades periféricas do Guarujá e de outras localidades da Baixada Santista: foram a “Operação Escudo”, em agosto e setembro de 2023, com 27 moradores assassinados pela PM, e a “Operação Verão”, em fevereiro e março de 2024, com 56 pessoas executadas. Em ambos os casos, o estopim da violência policial foi o assassinato de um PM. A vingança produziu os assassinatos, com requintes de crueldade, de 83 populares.
A mídia demonstrou que a maioria das vítimas da PM, se não todas, eram simples trabalhadores, e documentou vários casos de tortura a céu aberto ou dentro dos barracos, antes das execuções. Os apelos para que a matança fosse suspensa foram recebidos com cinismo por Derrite e Tarcísio. Quando a Comissão Arns e a ONG Conectas denunciaram o caso à 55ª sessão da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, no dia 8 de março último, o “fascista moderado” Tarcísio reagiu com um coice alegórico: “Pode ir na ONU, na Liga da Justiça, no raio que o parta, que não tô nem aí”.
Agindo dessa forma, o governador bolsonarista procura granjear apoio no eleitorado mais conservador e, simultaneamente, cativar suas próprias bases sociais de extrema-direita dentro e fora da PM, em especial na tropa. Concedeu aos policiais militares e civis, em junho de 2023, um generoso reajuste salarial médio de 20%, negado à maioria dos servidores civis do Estado. Em abril de 2024, no rescaldo da “Operação Verão”, anunciou o pagamento de um “bônus” aos policiais militares, no montante de R$ 500 milhões.
Diante desse ambiente político de estímulo à violência policial e ao Terrorismo de Estado, não surpreende que um vídeo gravado no dia 28 de junho registre um comportamento macabro de cerca de 20 policiais militares. Trata-se de uma cerimônia de formatura de novos soldados da PM realizada no Regimento de Cavalaria 9 de Julho, na capital paulista. Um deles “puxa” a seguinte letra, que celebra o Massacre do Carandiru:
“Cavalaria Brasil […] Hoje eu te apresento o 1º Batalhão/ Aquele que acalmou/ a Casa de Detenção/ 1992, logo pela manhã, o clima já era tenso/ A caveira já estava/ sorrindo para o detento/ Lá só tinha lixo, a escória, na moral/ Foi dada ‘pista quente’ para derrubar geral/ Bomba, facada, tiro e granada/ Corpos mutilados e cabeças arrancadas/ O cenário é de guerra, tipo Vietnã/ A minha continência, coronel Ubiratan/ Vibra, ladrão, sua hora vai chegar/ Escola de Choque/ tá saindo pra caçar”.
A Secretaria de Segurança Pública diz que está “investigando” o fato. Mas não é preciso investigar para saber que havia oficiais no local e que os soldados estavam completamente à vontade, não tendo sofrido nenhuma repreensão. O coronel Ubiratan Guimarães, comandante do massacre, elegeu-se deputado estadual e gostava de usar o número 111, em alusão ao número de mortos no episódio. Ele chegou a ser condenado a 632 anos de prisão, em 2001, mas depois teve a pena anulada pelo Tribunal de Justiça.
Escolas cívico-militares
Os acenos do governo estadual ao “exército” da PM paulista, formado por mais de 82 mil soldados e oficiais da ativa, continuaram por intermédio do programa de “escolas cívico-militares” (aprovado pela Alesp a toque de caixa e à base de “porrada e bomba” no dia 21 de maio último), que prevê a contratação de policiais militares reformados.
Eles receberão um generoso adicional, superior ao salário pago ao professorado, para trabalhar como “monitores” nas unidades de ensino e poderão, ainda, lecionar a estranha disciplina denominada “Projeto Valores”, que lembra a antiga “Organização Social e Política do Brasil” (OSPB), criada pela Ditadura Militar.
A ingerência da PM de Tarcísio sobre o denominado “Programa Escola Cívico-Militar no Estado de São Paulo” é tão intensa que sua regulamentação, no dia 20 de junho, foi efetivada por meio de uma “resolução conjunta” da Secretaria de Educação e da Secretaria de Segurança Pública. Há indícios de que diretoras e diretores das escolas públicas estaduais sofreram pressão para aderir ao programa.
No governo Doria, iniciativa semelhante, que partiu de um deputado estadual e contou com apoio relativamente modesto do governo, recebeu pequena adesão. Mas o governo Tarcísio, que vinha falando em converter 100 escolas, conseguiu a adesão de nada menos que 302 escolas, cuja relação foi publicada na edição do Diário Oficial do Estado de 18 de julho.
As evidências de que Tarcísio de Freitas é um fascista “completo”, por assim dizer, ou um bolsonarismo “de quatro costados”, estão dadas. Mas, para que não restem dúvidas, vale relembrar dois momentos bastante ilustrativos da trajetória do governador de São Paulo que atestam sua natureza político-ideológica de extrema-direita e sua profunda aversão aos direitos humanos.
O primeiro foi sua visita ao primeiro-ministro de Israel, o criminoso de guerra e alvo de três processos judiciais por corrupção Benjamin Netanyahu, tendo como parceiro na iniciativa o governador Ronaldo Caiado, de Goiás. Ambos viajaram a convite do próprio Netanyahu, que pretendia, assim, reduzir o impacto das declarações de Lula contra o genocídio em Gaza. A imagem fotográfica que imortalizou esse encontro abjeto, realizado em 19 de março, servirá como exemplo indelével de torpeza e indignidade.
Outro momento memorável, não por qualquer qualidade, mas pelo contrário, por tudo que conteve de absolutamente desprezível, foi sua participação, ao lado do secretário Derrite, no evento CPAC, de extrema-direita, realizado em Balneário Camboriú no início de julho. Na ocasião, Tarcísio encontrou-se com Jair Bolsonaro e com o presidente argentino Javier Milei, ambos líderes de movimentos neofascistas. “Dize-me com quem andas e te direi quem és”, avisa a Bíblia.
(*) Pedro Pomar é diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo.
Terrorismo de Estado sob Tarcísio
“Após 2 anos de queda, PMs voltam a matar mais no 1º mês de Tarcísio”. Mortes causadas por PMs no estado aumentaram 44% em janeiro, 1º mês do governo Tarcísio, em relação ao mesmo mês do ano passado (Metrópoles, 2 de março de 2023).
“Morto pela PM em Guarujá tinha unhas arrancadas e alicate ao lado do corpo, dizem moradores” (Folha de S. Paulo, 27 de agosto de 2023).
“Operação Escudo: 27 morreram em ação policial na Baixada Santista” (UOL, 4 de setembro de 2023).
“PM de São Paulo matou 34% a mais no primeiro ano do governo Tarcísio de Freitas”. Em 2022, até 20 de dezembro, policiais militares em serviço mataram 248 pessoas. No ano passado, no mesmo período, foram 333. Somadas as mortes cometidas por policiais em folga, o número sobe para 434 óbitos em 2023 e 375 em 2022 (Brasil de Fato, 3 de janeiro de 2024).
“Tarcísio defende operação da PM na Baixada Santista com 38 mortes: ‘A gente não quer o confronto, mas quem confrontar, vai se dar mal’”. Documento entregue ao procurador-geral de Justiça de SP apresentou, a partir de relatos de familiares e testemunhas, “assassinatos, tortura, socorro dificultado, mudança de cena do crime”, nas cidades de Santos e São Vicente (G1, 29 de fevereiro de 2024).
“Tarcísio será denunciado à ONU por aumento de letalidade policial” (Metrópoles, 8 de março de 2024).
“Tarcísio sobre denúncia à ONU por mortes em ações da PM: ‘Tô nem aí’” (Metrópoles, 8 de março de 2024).
Ato público exigiu fim de massacre na Baixada, lembrou Paraisópolis e crimes de maio de 2006, e pediu desmilitarização da PM e ‘fora, Tarcísio!’” (Informativo Adusp Online, 28 de março de 2024).
“Sobe para 56 o número de mortos durante a Operação Verão no litoral de SP” (CNN, 30 de março de 2024).
“Mortes cometidas por PMs sobem 86% no 1º trimestre de 2024, 2º ano do governo Tarcísio em São Paulo”. Total de “suspeitos” mortos pela Polícia Militar saltou de 106 para 197 do 1º trimestre de 2023 para 2024, segundo o Ministério Público (G1, 1º de abril de 2024).
“Número de pessoas mortas pela PM paulista cresceu 138% no 1º trimestre” (Agência Brasil, 30 de abril de 2024).
“Tarcísio muda sistema e câmeras vão ser acionadas por PMs ou de maneira remota em SP” (Folha de S. Paulo, 23 de maio de 2024).
“Tarcísio se reúne com Barroso para justificar edital de câmeras corporais da PM” (Carta Capital, 4 de junho de 2024).
“Governo Tarcísio congela número de câmeras corporais em uniformes da PM em SP” (G1, 21 de junho de 2024).
“Defensoria pede ao STF revisão de edital de câmeras corporais da PM” (Metrópoles, 27 de junho de 2024).