Eleições 2020: novidades e permanências

Por Milton Pomar (*)

Exceto pelo período 1989-2016, a Direita sempre governou todos os municípios no Brasil como bem quis, mandando no judiciário, legislativo, executivo, polícias e mídia, e se elegendo com e sem compra de votos. Até 1985 não havia eleições diretas para prefeito em 201 cidades, entre capitais, cidades de fronteira, portuárias e estâncias hidrominerais, consideradas pela ditadura militar “Segurança Nacional”. Naquele ano, o PT venceu as eleições somente em Fortaleza (CE).

As vitórias do PT em 1988 em São Paulo, Porto Alegre, Vitória, Santos, etc., foram um susto – para a Esquerda e a Direita – e as sucessivas reeleições e novas vitórias, em 1992, 1996, 2000, 2004, 2008 e 2012, criaram um incômodo inaceitável para os donos do Brasil, por quebrarem a lógica corrupta de funcionamento do sistema político, desorganizando as bases municipais da Direita a nível nacional. O “modo petista de governar” foi praticado, de 1989 a 2020, em mais de mil municípios – capitais e grandes e pequenas cidades em todo o País. Em 2012, pela primeira vez o PT obteve mais votos em eleições municipais do que o PMDB, até então considerado “o partido municipalista” por excelência, condição à qual ele (agora MDB) volta em 2020…

A ofensiva midiática, militar, policial, jurídica e parlamentar contra o PT no governo federal, a partir de 2013, visou também acabar com as vitórias do Partido nas eleições municipais. A campanha de propaganda contra o PT em todo o País teve efeito crescente, intimidando candidatos e candidatas com a mensagem primária que o partido não presta (“se estivesse em outro partido…”), apesar das pesquisas sempre mostrarem que a preferência partidária pelo PT continua maior do que a soma da preferência partidária pelos demais partidos e que a grande maioria do eleitorado não vota no partido, vota “na pessoa”…

Praticamente dobrou o tamanho do eleitorado no Brasil, de 1988 para 2020, passando de 75,8 milhões para 147,9 milhões. E de 1989 até agora foram criados 1.370 novos municípios. Outra mudança importante foi a remuneração de vereadores, antes restrita a municípios com mais de 100 mil habitantes, e liberada para todos a partir da Constituição de 1988.

Novidades importantes

Todos esses fatores ajudam a explicar o que ocorreu nas campanhas eleitorais em 2020, mas não são suficientes para entender os resultados. É preciso acrescentar outros aspectos à análise, para melhor compreensão do que vivenciamos nesse ano tão anormal, a começar pelo maior impacto no processo eleitoral que foi e ainda está sendo a pandemia, transformada em pesadelo nacional pelo desgoverno federal, com o agravante do presidente da República divulgar que está pouco se lixando para os seis milhões de doentes e 170 mil mortos pela Covid (números oficiais).

Avaliar a disputa pelas 58.208 vagas para vereador(a) e 5.567 para prefeito(a) e para vice, exige ir muito além dos resultados de eleitos e eleitas e das comparações dos totais de votos em 2020 e 2016. Tem que incluir as novidades importantes: fim das coligações para proporcionais; alteração no cálculo do quociente para vereador(a); aumento das restrições legais e da burocracia; campanha com máscaras, álcool gel e distanciamento; utilização obrigatória e intensiva da Internet; recursos do Fundo Eleitoral; e recursos à parte para candidatas mulheres e negros.

Dessas novidades, a que mais impactou negativamente as candidaturas do PT, em todo o País, foi o fim da coligação para proporcionais. A mudança para “chapa pura” para vereadores(as), criada pelos partidos de direita, por óbvio que não os prejudicaria. Admitamos: as coligações ajudaram a “mascarar” problemas nossos, adiando a sua solução até agora. Com os resultados eleitorais de 2020 para quem quer ver, pode-se começar tratando da inapetência eleitoral generalizada – simpatizantes, militantes e dirigentes do PT, mais ou menos atuantes, com fobia a se candidatar, que não querem nem ouvir falar do assunto. Participam de um partido político, mas recusam-se terminantemente a disputar eleições municipais ou nacionais.

Mas a maior responsável pelos resultados eleitorais, que desanimaram milhares de candidatos e candidatas do PT Brasil afora, foi a velha prática corrupta do crime eleitoral da compra de votos. Desde que entramos nas disputas eleitorais pela primeira vez, em 1982, o que nos impede de ganhar eleições municipais em grande escala é a prática permanente da compra de votos, base de funcionamento do sistema, responsável total ou parcial pela eleição de mais de 80% dos vereadores e vereadoras.

A corrupção eleitoral é a base de funcionamento do sistema político brasileiro. Começa na compra (e venda) de votos para a eleição de vereadores(as), e segue na venda dos votos dos vereadores para empresários interessados em alterações nos planos diretores, precatórios, etc., e para prefeitos que precisam aprovar orçamentos e escapar da rejeição das suas prestações de contas pelo tribunal de contas. Nas eleições seguintes, deputados se elegem graças à compra de votos através dos esquemas desses vereadores e prefeitos, e agem de maneira semelhante depois na venda dos seus votos para empresários e governadores. E segue em Brasília…

Apesar do enorme prejuízo recorrente, o PT e demais partidos de esquerda até hoje não se deram ao trabalho de encarar essa questão decisiva de frente. Há até quem considere tal prática “a maneira tradicional de fazer campanha”! Parece que aceitamos que é assim mesmo e acabou. Costumamos ganhar eleições para prefeito com 40% a 50% dos votos, e fazer 5% dos votos para vereador, e seguimos como se essa conta que não fecha fosse algo normal. Para um partido político com quase 20% de preferência do eleitorado, como explicar obter menos de 5% de votos para vereador(a)? E como explicar partidos com baixíssima preferência conseguirem eleger o dobro de vereadores(as)?

Corrupção nas Câmaras: quem fiscaliza os fiscais?

Pesquisando o assunto, descobrimos que há um aspecto pouco divulgado a respeito do comércio de votos para a eleição de vereadores e vereadoras: o enorme volume de recursos repassados obrigatoriamente pelos executivos para as câmaras municipais, calculados a partir de percentual fixo (4,5%), que resulta com frequência em valores muito acima do necessário. A de Manaus, por exemplo, em 2020, receberá R$169 milhões, para 41 vereadores, resultando R$4,1 milhões por vereador. Com 43 vereadores, e orçamento de R$197 milhões, a de Fortaleza recebeu em 2020 o equivalente a R$4,58 milhões por vereador. Na próxima legislatura, a Câmara da capital cearense deverá consumir a fantástica soma de R$800 milhões, e a de Manaus R$680 milhões. Seguidas denúncias de superfaturamento e outras práticas danosas não foram suficientes até hoje para uma “Lava Câmaras” no Brasil que se diz na TV tão indignado com a corrupção.

Com 17 mil eleitores e eleitoras, a Câmara da pequena Capivari de Baixo (SC), consome R$4 milhões anuais, para 11 vereadores. A de Iranduba (AM), com 34 mil eleitoras e eleitores, gasta pouco mais da metade (R$2,6 milhões), apesar de ter mais (13) vereadores.

Tanto dinheiro público sobrante nas câmaras municipais permite todo tipo de criatividade em benefício próprio. Em Capivari de Baixo, por exemplo, a Polícia Civil descobriu algumas dessas ações, prendendo cinco vereadores em dezembro de 2016, em investigação denominada “Casa da Mãe Joana”, com repercussão na mídia nacional. Nos municípios onde há investigações desse tipo, constata-se fraudes em diárias, viagens para destinos turísticos e nomeação de muitos “assessores”, com a prática famosa de apropriação de parte dos salários. Aparentemente, nenhum vereador se arrisca a mexer nesse vespeiro. Em Manaus, o vereador Praciano (PT) denunciou corrupção na Câmara, em 1992. Teve a casa metralhada e o carro incendiado, por criminosos nunca identificados pela polícia.

Novidades na permanência

Em 2020, o comércio de votos agregou o uso do celular (eleitores-vendedores foram obrigados a fotografar a urna com o celular, para “provar” que votaram no comprador) e de drogas em locais onde o tráfico pretendia eleger representantes. Houve algumas prisões em flagrante de “cabos eleitorais” em uma ou outra cidade, com a apreensão de dinheiro e material de propaganda dos compradores, mas não se tem notícia de que algum “grande” tenha sido pego.

A manutenção do comércio de votos tem a ver com as outras permanências: o “caixa dois”, as pesquisas fraudulentas, e a conivência e cumplicidade do judiciário, mídia e polícias com candidatos do “sistema”, ou seja, das classes dominantes, do poder econômico real. Por isso, esse funcionamento é essencial para validar o sistema político dos ricos, elegendo-os e aos seus representantes, nas prefeituras e câmaras. Corruptos famosos, históricos, são eleitos e reeleitos, em grandes cidades, valendo-se do popular “rouba, mas faz”. Quando ficam muito desgastados, fazem seus sucessores sem grandes dificuldades, porque o esquema funciona à base de dinheiro, muito dinheiro. Não tem nada a ver com propaganda, “marqueteiros”, propostas, etc. – o que manda é o dinheiro. Aos céticos, sugiro-lhes pesquisarem sobre a história política dos últimos 40 anos das capitais e das cinco maiores cidades de cada estado.

Propaganda subliminar

Parte importante do “modus operandi” eleitoral dos ricos, as pesquisas continuam impunes como dantes, apesar dos muitos casos nos quais as votações foram muito superiores em relação às intenções de votos. Para situações assim, inventaram que o PT é um partido “de chegada”. Com isso, explicam-se todas as diferenças às vésperas das eleições… Com 504 entrevistas em todas as cidades nas quais fez pesquisas em 2020, o Ibope trabalhou com oito pontos de margem de erro, quatro para mais e para menos, em cidades como Manaus, Fortaleza e muitas outras. Tanta “margem de erro” permite uma inaceitável variação de posições entre os competidores. Como as pesquisas do Ibope são feitas para a Rede Globo em todo o país, e divulgadas repetidamente em seus noticiários e chamadas, os números que apresenta transformam-se em verdade para parte expressiva do eleitorado, inclusive para quem não acredita em pesquisas. Resulta dessa prática uma formidável propaganda subliminar, induzindo o voto, inclusive no segundo turno.

Análises convenientemente cegas

Doutores especialistas em eleições analisam o que ocorreu nas eleições, tendências e cenários para 2021/2022, e simplesmente omitem tudo isso. Admitem de maneira tácita que o sistema é assim, funciona assim, e isso não está em discussão. Não falam do dinheiro, nem da compra de votos. Vaticinam que o MDB será o nº1 novamente, mas não explicam o real porquê desse retorno ao topo. Enfeitam as vitórias da direita tradicional (DEM, PSD, PP, PTB), do PSDB e da nova direita (Avante, NOVO, Patriota, Republicano etc.) sem tocar nos esquemas de compra de votos, “caixa dois”, pesquisas fraudulentas, muito dinheiro para impulsionamento na Internet, e tudo o mais que sempre lhes permitiu ganharem tantas prefeituras e elegerem a maioria absoluta dos vereadores e vereadoras em todo o País. E nenhum desses doutos analistas, ou jornalistas e comentaristas de tevês, sequer cita a inação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e dos tribunais e ministério público eleitoral nos estados, no combate à compra de votos, pesquisas fraudulentas, e ao generalizado abuso de poder econômico.

Ressaca eleitoral e as velhas propostas

Depois de tanto tempo (38 anos…) sendo derrotados em campanhas municipais, petistas nem se chateiam mais. Só sofrem mesmo os marinheiros e marinheiras de primeira viagem, com justa indignação pela avassaladora e descarada compra de votos. Revoltam-se com o cinismo de parcela do povo, que deixa para “resolver” no último dia, à espera da melhor oferta. É dolorido, porque sabemos que é esse mesmo povo que continuará sofrendo a falta de quase tudo, graças àqueles a quem vendeu o seu precioso voto (e, em geral, também os de sua família).

Desculpem a franqueza do veterano: não será apenas com formação política, organização partidária e filiação de jovens no ano que vem, que superaremos em 2022 os resultados eleitorais pífios desse 2020 tenebroso. No popular, “o buraco é mais embaixo”. Precisamos pesquisar os efeitos da intensa propaganda contrária ao PT no eleitorado. Qual é o “recall” que a população tem dos feitos dos governos e parlamentares municipais, estaduais e federais do PT? Qual é a nossa imagem entre diferentes segmentos do eleitorado? Como reverter o péssimo conceito que se formou sobre o PT na maioria do eleitorado? Quais argumentos devemos utilizar e como argumentar com quem não quer ouvir argumentos diferentes do que pensa? Como lidar com negacionistas? Como conseguir renovar argumentos e argumentação de dirigentes e militantes veteranos, que ainda não se deram conta que os seus discursos não funcionam mais?

Motivação política e ideológica depende de leitura, filmes, músicas, debates, vivências, e muita sensibilidade para se indignar e tomar coragem de mudar hábitos e enfrentar demônios… Não é fácil, e não é rápido. Mas precisamos de muita motivação para enfrentar o “sistema” político, que não é nosso, nem é para nós. Temos que combater a compra de votos e as demais fraudes nas eleições para sobrevivermos politicamente. Nossos prefeitos, prefeitas, vices, vereadores e vereadoras fazem a diferença, mesmo sendo tão poucos. Imagine-se então sendo muitos(as)!

(*) Milton Pomar é profissional de marketing, geógrafo e mestre em políticas públicas. Trabalha em campanhas petistas desde 1986. Ministra cursos eleitorais a nível nacional desde 1997.


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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