Por Valter Pomar (*)
Faz tempo que não lia nada do Jessé.
A bem da verdade, parei no A tolice da inteligência brasileira.
Quem quiser ler a respeito, pode buscar aqui:
https://pagina13.org.br/pensando-a-longo-prazo-reune-artigos-de-wladimir-pomar/
Quando Jessé esteva empregado na mesma Universidade que eu, nunca tive a sorte de cruzar com ele.
Depois, um militante de um núcleo do PT na Europa comentou que ele estaria morando por lá, para fugir de perseguições.
Tudo isso para dizer que vale a pena ler a entrevista que Jessé deu ao Globo, acerca do resultado das eleições.
Como a entrevista é no Globo, o viés não podia ser muito diferente do que foi: uma crítica à esquerda, ao PT, ao governo Lula e a Boulos, embrulhada numa análise acerca da força que a direita e a extrema-direita tem entre os pobres.
Este combo não é exclusividade de Jessé.
Muito mais gente da esquerda tem publicado, nas suas redes, as mais variadas autocríticas.
É verdade que algumas são ao estilo Homer Simpson: “a culpa é minha, logo eu coloco onde eu quero”.
Fazer o quê: debate é assim mesmo. E, gostemos ou não, ele acontece ao mesmo tempo que o segundo turno.
Mas, também por isso, não podemos nunca perder de vista que nosso objetivo é derrotar o lado de lá.
E para derrotar o lado de lá, é preciso conhecer e criticar as armas que ele utiliza. Pois a eficácia ou ineficácia de nossas armas dever ser medidas no confronto com as armas do inimigo.
Por exemplo: a compra de votos.
Numa certa capital do Nordeste, está óbvio que a candidatura da direita que foi ao segundo turno usou e abusou deste expediente. O pagamento era feito via pix nas seções eleitorais.
Outro exemplo: o financiamento empresarial ilegal.
Em todo o país, os ricos continuaram financiando suas campanhas preferidas, não apenas através de doações pessoais (vide Ometto, o maior doador privado do primeiro turno de 2024), mas também através de contribuições ilegais.
Detalhe: o recém-retornado-petista Randolfe, aquele que saiu do PT supostamente pela meia esquerda, no meio de um surto udenista, agora quer a volta do financiamento empresarial privado.
Um terceiro exemplo: o uso eleitoral das bilionárias emendas parlamentares impositivas.
Claro, parlamentares de esquerda também receberam emendas. Mas além do fato destas emendas serem em si mesmas um desvio, o fato objetivo é que as direitas são as maiores beneficiárias.
Um quarto exemplo: o uso da máquina pública nas campanhas eleitorais.
Um quinto exemplo: o uso das fake news.
Um sexto exemplo: a influência dos meios de comunicação privados.
Um sétimo exemplo: a operação ilegal de corporações e instituições, tais como certas igrejas, a “família militar” etc.
Um oitavo exemplo: a total desproporção nos recursos do fundo eleitoral.
Poderíamos continuar a lista, mas acho que o que foi dito já basta para demonstrar como é ridículo debitar o resultado eleitoral de 2024 apenas ou principalmente na conta de um único fator, de uma única variável.
Erram, também por isso, os que estão obcecados com o “identitarismo”.
Podemos e devemos discutir e criticar o “identitarismo”, mas se não colocarmos as coisas no grau, vamos acabar adotando o mesmo “modus sin pensantis” que leva certa direita a atribuir todos os problemas da humanidade à “ideologia de gênero”.
Ou fazemos um balanço de conjunto, que pondere de maneira correta as variáveis em jogo, ou vamos seguir errando.
Feitas estas preliminares, vejamos a entrevista concedida por Jessé ao Globo.
A entrevista publicada pode ser lida aqui:
Jessé diz que o voto obtido por Nunes e Marçal em áreas periféricas nas zonas Sul, Norte e Leste de São Paulo capital teria sido, “sem dúvida”, o voto do “pobre de direita”.
Segundo ele, faz tempo que a situação já estaria “dominada” pela Teologia da Prosperidade, neoliberal e reacionária.
E vaticina: “Passamos por um processo de idiotização das pessoas e de inação dos que deveriam fazer um trabalho de base de qualidade”.
De fato, faz tempo que pobres votam na direita.
Isso acontece desde que passamos a ter eleições, no Brasil e no mundo inteiro.
Pobres votarem na esquerda é, na maior parte dos países e na maior parte da história, uma exceção: a “democracia burguesa” não é chamada de burguesa por birra.
Apesar disso, em São Paulo capital o PT já conquistou por três vezes a prefeitura, com Erundina, Marta e Haddad.
Além disso, nas eleições de 2022, Lula presidente e Haddad governador foram os mais votados por um eleitorado que, no primeiro turno de 2024 escolheu outras candidaturas.
Portanto, embora possa existir idiotice (no sentido grego da palavra) e embora exista um déficit do chamado “trabalho de base”, isto não basta para explicar o que ocorreu no primeiro turno, nem serve para orientar o que deveria ser feito no segundo turno.
E, no terreno da explicação, é preciso examinar melhor a natureza social do voto: a população das áreas periféricas de São Paulo capital não são homogêneas.
Dito de outra forma, a categoria “pobre de direita” é um tipo ideal bastante enganoso.
Ainda no terreno da explicação, Jessé diz que Marçal seria um “Coringa”: seus eleitores “identificaram nele a raiva e o ressentimento, mesmo sem que lhes fosse dada explicação alguma sobre as razões dessa injustiça social”.
Não acho que essa crítica seja totalmente procedente. Afinal, uma das razões do êxito parcial do boçal e de outros expoentes da direita e da extrema-direita reside, exatamente, no fato deles apresentarem uma “explicação” acerca das “razões” da “injustiça social”.
Não só isso: as direitas oferecem, também, uma visão acerca do futuro e uma “ética de sobrevivência” para os tempos de guerra em que vivemos.
Parte de nossas dificuldades no enfrentamento das direitas têm origem na subestimação: quantas vezes ouvimos gente nossa falando que a “direita não tem projeto”?
Outra parte das dificuldades têm origem no rebaixamento programático: se não apresentarmos uma visão de futuro, perderemos a disputa por WO.
Portanto, é totalmente insuficiente – para derrotar a extrema-direita – tomar medidas “para garantir o cumprimento das regras democráticas”.
Obviamente, tanto o boçal quanto o cavernícola precisam ser tornados inelegíveis.
Mas, como o próprio Jessé afirma, “isso não evitará que outros candidatos sigam sua cartilha”. E nada garante que eles “precisarão serem mais cuidadosos, menos ameaçadores”, nem que terão “menos domínio do público”.
A repressão legal e institucional não são suficientes para derrotar a direita e a extrema-direita. E se não for feito um trabalho prévio e permanente, será cada vez mais difícil utilizar proveitosamente as eleições em favor da esquerda.
Também por isso, é preciso tomar cum grano salis a afirmação de Jessé, segundo a qual a esquerda teria sido incapaz de conversar com o “pobre de direita”.
Por um lado, ela parece óbvia, afinal a maior parte do eleitorado votou em partidos de direita e extrema-direita.
Mas descrição não é explicação.
A explicação que Jessé oferece, obviamente nos limites de uma entrevista, é a seguinte: “a esquerda errou, e muito. Não procurou, com louváveis exceções, conquistar os corações e as mentes dos mais pobres. Se você não apresenta nada minimamente organizado e sequer tenta ir às periferias urbanas e rurais, o trabalho das igrejas evangélicas, marcado pelo anti-esquerdismo, ganha sentido político ainda mais explícito. No vazio que foi criado pela falta de mobilização e disputa de narrativas, a esquerda perdeu campo. Não estou otimista, creio que isso se aprofundará mais”.
Como se pode ler, os problemas citados acima não são propriamente “eleitorais”. As debilidades ideológicas e programáticas da esquerda são anteriores ao processo eleitoral. O mesmo vale para as debilidades de nossa presença organizada junto a classe trabalhadora. E, apesar disso, ganhamos em 2022 em muitos locais onde perdemos no primeiro turno de 2024. Sem falar que não fomos derrotados em todas as eleições.
Portanto, mesmo nos marcos de uma situação estruturalmente negativa, é possível ter resultados melhores. Assim como é possível vencer no segundo turno, a começar por São Paulo capital.
Feita estas ressalvas, vejamos o que Jessé diz acerca dos “corações e as mentes dos mais pobres”.
Transcrevo abaixo trechos da entrevista (alerto que fiz isso com base no copiar-e-colar, portanto pode ter ocorrido algum erro. Recomendo conferir a versão publicada da entrevista):
“(…) a chave, para a direita, é a de fazer com que o pobre se acredite valorizado, respeitado, quando antes era permanentemente humilhado, vinte e quatro horas por dia. Muitas vezes, literalmente, sem nem o nome do pai na certidão de nascimento. Ele aceita assim como possibilidade de salvação ser celebrado e reconhecido por ser honesto, “de bem”, poder vencer por conta própria. No balanço, é uma reação muito mais moral do que econômica, ainda que passe pelo material. As igrejas evangélicas ofereceram a doutrina, montaram a solidariedade interna e a base social para se enfrentar a injustiça social. Porém, e aí está a chave para a esquerda, repito: jamais é objeto de discussão os porquês da injustiça. Em nenhum estrato sócio-econômico a meritocracia é tão entranhada quanto entre os mais pobres. A aposta na direita passa pela aceitação da culpabilidade da vítima. Esquece-se a falta de acesso à Educação e à Saúde, e, tão ou mais importante, a herança da escravização. O pobre de direita de São Paulo ao Rio Grande do Sul vê no ex-presidente Jair Bolsonaro um semelhante. Nestes estados, a maioria das pessoas se identifica como branca. Já no restante do país, com maioria de pobres mestiços e pretos, a identificação não é tão direta. Bolsonaro consegue expressar o sentimento social do branco que trabalha duro e crê estar bancando o outro pobre, o do norte, o menos branco, com assistencialismo, com o Bolsa Família. No caso dos pobres de direita negros e evangélicos do Sudeste e do Sul, há o imenso desejo de embranquecer. Sem exceção, nas entrevistas com os pobres de direita, me deparei com o racismo entranhado. Eu, que sou potiguar, ouvi seguidamente que “nordestino é preguiçoso. O racismo reprimido seguirá guiando este voto para o bolsonarismo, com sua arminha voltada para o jovem preto, a partir da pauta da segurança, tão cara a esses eleitores. Os pobres são os que mais sofrem com os preconceitos que a elite criou para oprimi-los. Ele acredita que é um incapaz. E aí ou ele usa essa “faca envenenada” nele mesmo ou no “outro pobre”. Esse “outro pobre” é o maconheiro, o macumbeiro, o LGBTQUIA+, o nordestino, o que vota no PT, o bandido, cabe tudo naquele que é percebido como transgressor. O lulismo ainda consegue tocar o eleitorado pobre acima de São Paulo, mais mestiço, que foi crucial para derrotar Bolsonaro em 2022. Mas esse voto passa por um processo de criminalização. Esse eleitor sofre, desde a Lava-Jato, com a pecha de ser cúmplice da corrupção. E o pobre prefere morrer a ser corrupto. O voto na esquerda teria sido uma burrice, mais uma prova da incapacidade do andar de baixo. Isso está entranhado em muitos pobres de direita hoje”.
Há muita coisa interessante, assim como há lacunas e insuficiências nas especulações acima. Uma destas insuficiências, na minha opinião, é explicar por quais motivos a direita e a extrema-direita assumiram, desde pelo menos 2013, um caráter tão militante, “para tempos de guerra”. Quais que sejam os motivos, o fato é que operamos – há pelo menos uma década – num ambiente que não será enfrentado adequadamente por uma esquerda padrão Woodstock.
Especificamente sobre as eleições de São Paulo capital, Jessé diz que o “identitarismo” teria sido “um erro completo. E Boulos está pagando o preço desse equívoco agora em São Paulo. Não basta essa esquerda “legal”, que discute gênero e raça. Ainda importa contar ao eleitor por que um cidadão ganha R$ 100 mil enquanto outro R$ 100, por que há pessoas tão diferentemente aparelhadas para a competição social, para além das diferenças de gênero e raça. Se não perceber isso logo, a esquerda deixar este pobre na direita”.
Admitamos, para facilitar a conversa, que o “identitarismo” fosse “um erro completo”. Alguém acha mesmo que nossa situação nas eleições em São Paulo capital decorreria disto? Quem quer que tenha acompanhado a eleição paulistana sabe que, na lista de erros que possam ou tenham sido efetivamente cometidos, o “identitarismo” (seja lá o que for) não seria o maior deles.
O mais grave, entretanto, é a alternativa defendida por Jessé: “um encontro do PT com o varguismo”.
Copio e colo (repetindo o alerta que já fiz antes): “O identitarismo ecoa na classe média e na elite, não no pobre, jogado na lata de lixo pelo preconceito racial e agora vítima de racismo cultural. Não se ganha eleição no Brasil sem o voto da maioria pobre e a esquerda precisa pelo menos tentar voltar a disputar este voto. Sei que vou levar cacetada, mas está na hora de o PT aprender com Getúlio Vargas. Validar esse pobre é importante. É o que Getúlio fez, inclusive do ponto de vista racial. Para redimir o humilhado, é preciso celebrar suas virtudes, afirmar que eles não são lixo, o que a direita faz hoje, ainda que de modo enviesado. O PT nasceu dando de ombros para a herança getulista, opondo o sindicato livre ao peleguismo trabalhista. Tudo bem. Mas, sendo simplista, PT e PSDB são mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje. A não ser que volte a conversar com os pobres. E não só pela ótica econômica. É ilusão o governo Lula achar que as pessoas irão espontaneamente, em 2024, identificar no aumento real do salário mínimo um projeto do PT. Não é assim que funciona a cabeça humana na sociedade contemporânea, e muito menos a transmissão de ideias e de informação. A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar. O Bolsa Família foi importantíssimo, mas a esquerda não ofereceu o escape da humilhação que é estar na posição de delinquente no mundo de hoje. O pobre que ganha R$ 4 mil criminaliza o “nordestino miserável que mama no Bolsa Família” e crê de fato que o sustenta. Friso, só há um jeito de se sair da armadilha do pobre de direita e disputar de verdade seu voto: explicar a ele as razões das injustiças sociais e de sua escolha momentânea equivocada por um moralismo repressor”.
Repito, novamente, que há especulações interessantes, insuficiências e lacunas no combo acima.
Isto posto, destaco como revelador o seguinte trecho: “A esquerda precisa fazer o que fiz ao escrever este livro: ir à periferia e se desesperar”.
Confesso que “desesperador” é ler alguém dedicado profissionalmente ao estudo, afirmar que PT e PSDB “seriam mais parecidos do que imaginamos, nascidos de braços diversos da mesma elite paulista com pendores social-democratas. Quem ofereceu a face popular ao PT foi o Lula. Depois dele, o PT pode estar destinado à mesma — pouca — relevância do PSDB hoje”.
Sobre as falsas afinidades entre PT e PSDB, sugiro ler:
https://elahp.com.br/download/historia-do-petismo-volume-i/
Isto posto, não tenho dúvida que o PT corre risco. Mas o que Jessé sugere como solução é veneno puro. Nada contra “aprender”, mas transformar o petismo em trabalhismo não resolverá nada.
O trabalhismo histórico é uma das criações da era Vargas e expressava a politica populista de colaboração de classes, entre um setor da classe dominante e um setor da classe trabalhadora. O peleguismo é um desdobramento disto. Quando, especialmente em 1954 e 1964, o trabalhismo de esquerda tentou dar passos mais radicais, veio o golpe.
O populismo, tanto de direita quanto de esquerda, não foi capaz no passado, não é capaz no presente e não será capaz no futuro de oferecer uma alternativa para o Brasil.
Que há aspectos do populismo de esquerda que devem ser compreendidos e customizados por nós, não tenho dúvida. Até porque funcionariam como antídoto para práticas populistas de direita que muita gente boa anda adotando, sem pudor e vergonha.
Mas o principal é que não existe bala de prata para as dificuldades programáticas, estratégicas, táticas e organizativas enfrentadas pelo PT.
Nem tampouco será a cloroquina – varguista, populista ou quetais – que vai fazer o PT se manter de esquerda, socialista e recuperar maioria na classe trabalhadora.
Claro que nada disso caberia numa entrevista ao Globo.