Por Valter Pomar
No dia 4 de março de 2019, Brasil 247 publicou um artigo de Aldo Fornazieri, intitulado “Nova chance do PT de se redimir com Lula”.
O artigo pode ser lido aqui:
O artigo trata de três temas: o balanço do governo Bolsonaro, a análise do papel de Lula e a crítica à postura do PT.
Segundo Fornazieri, o governo Bolsonaro “começou de forma desastrosa” e se “autodecompõe” com “rapidez”.
De fato, o governo Bolsonaro é um show de variedades bizarras e macabras: crime organizado, fundamentalismo, medievalismo, misoginia, racismo, lgbtfobia, intolerância, despreparo, entreguismo, saudosismo da ditadura militar e extremismo neoliberal. Além disso, é um governo atravessado por importantes disputas internas e públicas.
Mas isto não quer dizer que o governo esteja se “autodecompondo”.
Não devemos nos iludir: enquanto rola o show, aprofundam-se os ataques do governo Bolsonaro à soberania nacional, aos direitos sociais e às liberdades democráticas.
Os exemplos mais recentes destes ataques são: o apoio e engajamento direto do governo na agressão dos Estados Unidos contra a Venezuela; a proposta de reforma da Previdência Social; o embrulho supostamente anticrime proposto pelo Ministério da (in)Justiça e (in)Segurança; a prometida “Lava Jato da Educação”; a “atitude” frente ao crime de Brumadinho; o ataque contra o direito dos sindicatos arrecadarem contribuições dos trabalhadores; e a perseguição contra o ex-presidente Lula.
A estes ataques do governo federal e de seus apoiadores no Congresso Nacional, acrescentam-se as agressões cometidas pelos governadores e prefeitos, deputados estaduais e vereadores de direita, que em todo o país atuam para piorar as condições de vida do povo.
Os exemplos que Fornazieri dá não sustentam a tese da “autodecomposição”. Um problema é que Fornazieri analisa o governo Bolsonaro usando parâmetros que talvez fossem adequados para um governo de direita normal. Mas este não é um governo normal. Como o próprio Fornazieri lembra, “os nazistas já mostraram o que a psicopatia política é capaz de fazer”. E apesar disso, o governo Hitler não caiu por “autodecomposição”.
Em resumo: a análise que Fornazieri faz sobre o governo Bolsonaro é pura manifestação de desejo, pouca ciência e nenhuma política. Até porque o destino do governo não depende do que ocorra com o presidente pessoa física e seu clã; afinal, lá estão Mourão & os milicos para garantir a devida continuidade do que é essencial. Uma crise profunda poderá ocorrer, por exemplo, se a reforma da previdência for derrotada.
Passemos ao segundo tema: a análise do papel de Lula.
Fornazieri é para lá de pródigo nos elogios que faz a Lula: “papel demiúrgico na política, capaz de criar o novo, de colocar no mundo da atividade política algo que não existia, de gerar uma esperança de sentido universalizante”, “símbolo da luta pela igualdade e justiça”, “esperança de redenção dos pobres e dos humilhados”.
Não recordo que fosse esta a opinião de Fornazieri sobre Lula no passado recente. Mas relevemos: é carnaval e todo mundo têm direito a dar suas piruetas. Mas diz o ditado que o excesso de velas põe fogo na igreja. É isso que Fornazieri faz, ao dizer que “Lula sempre foi maior do que o PT”, “dificilmente o PT existiria sem Lula” e “no mínimo, sem Lula, não teria a importância que veio a ter”. Ao cometer este tipo de raciocínio, Fornazieri faz má história e péssima política.
Do ponto de vista histórico, o mais lulista dos lulistas sabe que o Lula dos anos 1980 não tinha a popularidade, nem interna, nem externa, do Lula de hoje. Graças ao PT, inclusive nas campanhas presidenciais de 1989, 1994, 1998 e 2002, Lula ganhou maior autonomia política. Que foi reforçada pelo exercício da presidência, que lhe deu uma base autônoma para reforçar e multiplicar esta popularidade. Portanto, a frase correta, historicamente falando, seria: “sem o PT, Lula não teria a importância que veio a ter”.
Do ponto de vista político, o que Fornazieri faz é mais grave: enaltece Lula, para desqualificar o PT. Ou seja, por um caminho torto, agrega seu tempero à operação executada por 9 em cada 10 intelectuais de centro e de direita.
Passo agora ao terceiro tema: a crítica de Fornazieri ao PT.
Fornazieri não critica a direção do partido, não critica um setor do Partido, ele critica todo o Partido. Salvo engano, todas as frases do seu artigo referem-se ao “PT”, genericamente.
Acontece que o PT é um partido com centenas de milhares de filiados, e outro tanto de simpatizantes e militantes. Pessoas que estão intensamente mobilizadas pelo Lula Livre. Sendo assim, é uma mentira e uma ofensa desmerecer o que o conjunto do PT está fazendo em favor da liberdade de Lula.
Fornazieri escreve que “Lula permanece vivo na alma de parte importante da sociedade que o tem como paradigma de bom governante; a morte do menino Arthur, neto do ex-presidente, desencadeou uma onda de solidariedade pelo seu sofrimento e pelo caráter trágico dos acontecimentos que o envolvem; no carnaval, vozes espontâneas da multidão, em vários pontos do país, protestaram contra Bolsonaro e pediram Lula Livre”.
Apesar de escrever isso, Fornazieri não consegue perceber que aquelas centenas de milhares de pessoas que compõem o PT estiveram e seguem envolvidas em toda e cada uma destas ações e fatos que ele citou elogiosamente.
Talvez ele acredite que nas “vozes espontâneas da multidão” só havia pessoas de outros partidos ou sem partido. Ou talvez — boa vontade carnavalesca — Fornazieri tenha cometido um erro de redação: quando fala do PT, ele na verdade quer referir-se à direção do Partido.
Diz ele que de novembro de 2018 até hoje, “o PT pouco fez de significativo em prol da liberdade de Lula. Tudo o que fez foi mais no plano simbólico, no plano declaratório, das intenções e das resoluções partidárias. Não que isto não seja importante. Mas é absolutamente insuficiente para que a campanha adquira uma dimensão social, para que a liberdade de Lula se torne uma exigência majoritária da sociedade e para que ela adquira uma dimensão de mobilização de rua. Somente quando isto se tornar realidade Lula terá chance de ser solto. Agora mesmo, Lula sofreu uma segunda condenação e o que se viu foi uma tíbia reação do PT”.
Imaginemos que todas as frases acima são destinadas não ao PT, mas à direção do PT. Neste caso, cabe reconhecer que muita gente, dentro e fora do PT, concorda que precisamos fazer muito mais em prol da liberdade de Lula e que isso depende, em boa medida, do que faça a direção do PT.
Mas mesmo neste caso, para que a “campanha adquira uma dimensão social, para que a liberdade de Lula se torne uma exigência majoritária da sociedade e para que ela adquira uma dimensão de mobilização de rua”, não basta vontade, nem publicar textos dizendo aquilo que os outros devem fazer. É preciso que se tomem determinadas decisões políticas, se viabilize determinadas condições materiais, se solucione um conjunto de problemas práticos. É isto que vem sendo feito, mesmo que com atraso, por um Comitê integrado por dirigentes indicados pelos partidos de esquerda, centrais sindicais, movimentos sociais, entidades estudantis etc. Pois é bom lembrar que a campanha Lula Livre não é apenas do PT, nem pode ser dirigida apenas pelo PT. A liberdade de Lula é uma demanda democrática que interessa ao conjunto da classe trabalhadora.
Aliás, seria importante que o Comitê Lula Livre da Escola de Sociologia e Política (onde Fornazieri é professor) participasse do Encontro Nacional da campanha, que será no próximo dia 16 de março. Ou, caso ainda não exista o referido Comitê, que ele seja criado e se engaje formalmente.
Claro, tudo isto deve soar como desculpa esfarrapada para alguém que acha que nosso problema é a falta de “lideranças virtuosas e corajosas e capacidade de direção e comando”. Não acho que a atual direção do PT esteja à altura dos desafios históricos. Mas nosso problema principal não está onde Fornazieri indica.
Nosso problema principal é de estratégia: passamos muitos anos dominados por uma orientação política segundo a qual o que está ocorrendo, não deveria estar ocorrendo. O golpe “não poderia” ter ocorrido, a condenação e prisão de Lula “não poderia” ter ocorrido, a vitória de Bolsonaro “não poderia” ter ocorrido. Mas como sabemos, tudo isto ocorreu, demonstrando que a orientação política predominante era equivocada, entre outros motivos porque se iludia acerca dos compromissos democráticos da classe dominante.
Apesar disso, como a campanha presidencial de 2018 deixou claro, uma parcela importante do Partido e de sua direção ainda não fez o “ajuste de contas” com aquela estratégia conciliatória e republicana. Estratégia equivocada para a qual Fornazieri deu certa contribuição, é bom que se diga. Estratégia da qual ele ainda não se desvencilhou, como se depreende da análise superficial que ele faz (no artigo citado) do governo Bolsonaro, análise que simplesmente desconsidera o papel do grande capital e dos militares na sustentação não da pessoa Bolsonaro, mas da operação de Estado que visa destruir a esquerda brasileira.
Fornazieri escreve que “quanto mais se decompõe o governo Bolsonaro, quanto mais agride direitos, quanto mais desumano e retrógrado se mostra, quando mais se degrada moralmente, mais a figura de Lula torna-se uma falta terrível para a recomposição e união do Brasil”. Cá entre nós: alguém que a essa altura do campeonato acredita que a saída esteja na “recomposição e união”, não entendeu nada do que a classe dominante deseja e de como se pode evitar que ela tenha êxito.
Em tempo: concordo com diversas frases do texto de Fornazieri. Mas acho que o conjunto do seu artigo é organizado por uma visão equivocada, que aponta o dedo para o lugar errado. Sem falar no tom. Mas isso se explica: tem gente que sai do Partido, mas o Partido não sai dele. Até porque certos hábitos são difíceis de mudar. Entre os quais a cobrança do redimir alheio.
Valter Pomar