Página 13 entrevistou Valter Pomar, membro do diretório nacional, sobre o tema das Forças Armadas, que foi objeto de debate no âmbito da direção do PT envolvendo a elaboração do “Plano de reconstrução e transformação do Brasil: Outro mundo é preciso; outro Brasil é necessário”. A pauta é estratégica para a esquerda, visto que não é realmente possível fazermos transformações profundas em nosso país sem enfrentar essa questão. Seja porque as Forças Armadas tem cumprido historicamente um papel de braço armada das classes dominantes; recentemente deram amparo ao golpe de 2016 e ainda vertebram o governo Bolsonaro. Seja porque a transformação do Brasil exigirá enfrentar os Estados Unidos e isso não se faz sem uma adequada política de Defesa.
Boa leitura!
Rio de Janeiro – Fuzileiros Navais participam de operação na favela Kelson’s, zona norte da cidade (Fernando Frazão/Agência Brasil)
Página 13: Valter, você pode nos contextualizar como como ocorreu a discussão sobre o tema das Forças Armadas no bojo da elaboração do Plano?
Valter Pomar: No texto original do Plano não existia quase nada sobre o tema. Então nós, da Articulação de Esquerda, fizemos as nossas emendas. Elas não foram incorporadas ao texto pela comissão de sistematização e foram remetidas ao DN, misturadas às emendas da Segurança Pública. Do conjunto das emendas encaminhadas propriamente sobre as Forças Armadas, uma trata do Artigo 142, uma da Comissão da Verdade e outra das operações GLO. As duas primeiras inclusive já foram objeto de resolução partidária. A que necessariamente precisava ser analisada era a que versava sobre a GLO, até porque os nossos governos fizeram uso dela. Mas no caso do Artigo 142 e da Comissão da Verdade, a comissão redatora do texto, em minha opinião, exorbitou e na prática vetou as emendas, ao não incluir no texto, ato que depois recebeu uma anuência parcial da maioria do DN. Por que eu digo que exorbitaram? Porque estas emendas já eram deliberações congressuais, e portanto, a Comissão deveria ter incluído, sem prejuízo de que também sugerisse a retirada. Por que eu digo anuência parcial? Porque o debate de mérito ainda não foi feito, foi remetido para outro momento.
Página 13: Mas, afinal, o que aconteceu com essas emendas?
Valter Pomar: Formou-se uma frente curiosa no Diretório, entre pessoas que eu suponho contrárias ao mérito das emendas, com pessoas favoráveis, mas temerosas de que o debate as vetasse. Essa frente optou por mandar essas emendas para um debate prévio numa outra comissão, para só depois voltarem ao Diretório.
Página 13: Mas sob qual justificativa o Diretório não podia discuti-las na última reunião?
Valter Pomar: O Aloízio Mercadante fez uma explicação no relato inicial, sobre quais emendas haviam sido remetidas para o debate do Diretório, e explicou que no caso da Segurança Pública havia um NAPP (Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas), que apreciou as respectivas emendas, mas não existia um NAPP da Defesa Nacional, apesar de termos no Partido ex-ministros da Defesa como Jaques Wagner, dois ex-presidentes da República, além de vários quadros com muita experiência no tema. Portanto a proposta do Mercadante era, antes de qualquer coisa, montar uma comissão com essas pessoas e deixar ela decidir o que iria incorporar ao Programa. Eu me insurgi, porque a autoridade para incorporar ou não é do Diretório; em segundo lugar, porque as emendas defendiam posições que já fazem parte do acúmulo do Partido; portanto, o que estava sendo proposto era que uma comissão de notáveis poderia tirar do programa emendas, sem prévio debate, emendas que, reitero, cujo conteúdo foram aprovadas em instâncias do Partido, inclusive Congressos do Partido. E isso seria um absurdo. Pois no limite o Diretório até pode decidir que uma resolução congressual esteja ultrapassada, mas uma comissão? Reitero: o certo teria sido a comissão de sistematização ter incluído as emendas no texto-base do Programa e, se achasse que era o caso, ter chamado a atenção do DN para excluir. Mas o autoritarismo é uma praga. E além do erro inicial, ainda apareceu esta proposta de comissão deliberativa de notáveis.
Página 13: Esse encaminhamento foi aceito na reunião?
Valter Pomar: Não. O despropósito foi barrado pela presidenta Gleisi, que polidamente e sem entrar em confronto com o proponente, disse que remeter para uma nova comissão estava fora de questão. O próprio Aloisio Mercadante deu o dito por não dito. Foi a debate, então, se deveríamos decidir ali ou num próximo Diretório, sem prejuízo em ambos casos de se constituir um NAPP da Defesa ou algo similar. Como já expliquei antes, alguns dirigentes, mesmo concordando com o mérito das emendas, defenderam e votaram que o tema fosse transferido para um próximo DN. Foi a voto e perdemos, acho que por algo como 40 a 20, e a decisão a respeito foi remetida para um próximo DN. Depois do intervalo do almoço, José Genoíno pediu a palavra para fazer um “pedido de questão de ordem”. Explicou que o tema do Artigo 142 já era um tema pacificado dentro do Partido. E perguntou por que não incorporar desde já, sugeriu inclusive que o Mercadante fizesse uma nova redação, pois seria muito ruim sair um documento do PT sem que essa questão aparecesse. O Aloísio reagiu dizendo que era complicado, citando que nossos governos tinham usado a GLO, usando este pretexto para recusar incorporar as demais emendas sobre o assunto. Sobre as quais, supostamente, não há divergência…
Página 13 – Mas qual é o pano de fundo das divergências, se o conteúdo da maior parte das emendas já são deliberações congressuais?
Valter Pomar – Na verdade, de uma parte do Partido, na minha opinião, há uma expectativa de aproximação com os militares. Uma matéria publicada no Globo dessa semana [“Para reagir a Bolsonaro, PT planeja aproximação com militares”, O Globo], com declarações de Washington Quaquá, Enio Verri e Paulo Teixeira, está dentro desse contexto.
Página 13 – De que forma se daria isso?
Valter Pomar – Se entendi direito, insistem na tecla de que os governos Lula e Dilma investiram muito nas Forças Armadas, na sua modernização, na melhoria dos soldos, de que elaboraram um Plano de Defesa em que as Forças cumpririam um papel importante, além de apresentar políticas públicas voltadas para o segmento. Tudo isto é verdade, mas é o equivalente de achar que garantindo a Bolsa Família, se transformaria, por razões econômicas, a posição política dos beneficiários. Tem que ter luta política, luta ideológica, mudança de estruturas. O que inclui mudar o artigo 142 e cumprir as determinações da Comissão Nacional da Verdade.
Página 13 – Washington Quaquá afirmou, segundo a reportagem que “nós, do PT, nunca fomos inimigos dos militares. Pelo contrário. Entendemos que eles são essenciais para o desenvolvimento nacional. Bolsonaro começou na política com o apoio da base militar, mas a realidade é que, quando chegou à Presidência, largou os praças e se colou nos generais. Ele cortou gratificações e benefícios de militares de baixa patente“. Qual o papel que os militares cumprem hoje em nosso país?
Valter Pomar – Vamos por partes. Em primeiro lugar, é necessário entender que a doutrina vigente, na prática, entre os militares, continua sendo a da “Segurança Nacional” da ditadura, caracterizada, entre outras coisas, por identificar e eliminar “inimigos internos”; que são na maior parte das vezes movimentos e organizações populares, partidos de esquerda, intelectuais e lideranças ligadas às classes trabalhadoras. Basta lembrarmos que ainda se comemora o golpe de 1964 nos quartéis ou mesmo da infiltração recente de agentes do Exército em mobilizações populares com fins de vigilância, provocação e prisão de militantes. Portanto, é a lógica doutrinária presente entre os militares que vê o povo organizado e em luta por direitos sociais, trabalhistas, por ampliação das liberdades e por reformas estruturais como uma ameaça, como um inimigo. Em segundo lugar, a defesa de que os nossos governos implementaram importantes programas de reaparelhamento e fortalecimento das Forças, de recomposição de soldos e dos orçamentos ligados à área, sem um processo de disputa política sobre o que são as Forças Armadas, revela uma ilusão de que isso seria o suficiente para que as Forças Armadas cumprissem um papel “profissional” e interessado na soberania nacional. Isso é insuficiente. Em outras palavras, não basta impulsionarmos ganhos materiais, precisamos ter uma linha política capaz de incidir e disputar seus rumos. As FA realmente existentes são autoritárias, antinacionais, sintonizadas com os interesses das classes dominantes e sob hegemonia dos EUA. Portanto, a nossa linha não pode ser uma aproximação nos termos propostos. Uma aproximação em que a gente abre mão de mudar. A nossa linha deve ser a de alterar e modificar profundamente o caráter das Forças Armadas.
Página 13: E as emendas que não foram incorporadas estão dentro dessa linha que você propõe?
Valter Pomar: Sim, vou ler para você ter uma ideia. A primeira emenda dizia assim: “Para que as Forças Armadas passem a cumprir seu estrito papel de defesa da soberania nacional, há que revogar o artigo 142 da Constituição Federal, frequentemente utilizado para alegações de teor intervencionista e antidemocrático. Ainda que o STF já tenha se pronunciado a respeito, vetando corretamente a interpretação desse dispositivo como capaz de validar um suposto “poder moderador” das Forças Armadas, sua existência serve apenas a setores golpistas interessados em atacar a democracia.
A segunda emenda dizia assim: “Da mesma forma, está provado que as chamadas operações de “Garantia da Lei e da Ordem” (GLO) prestam-se na maior parte das vezes a cumprir um papel deletério do ponto de vista da democracia. Esse mecanismo, portanto, deve ser extinto.”
A terceira emenda dizia assim: “Revogação de normas inconstitucionais que garantam julgamento pela Justiça Militar de militares que cometerem crimes contra civis em operações como as de GLO e similares, como a Lei 13.491/2017, sancionada pelo golpista Michel Temer”.
A quarta emenda dizia assim: “Cumprimento integral das recomendações do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, em especial: I) reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar; II) revisão da Lei da Anistia de modo a garantir a punição dos agentes da Ditadura Militar que cometeram crimes de tortura, assassinato e outros; III) abertura dos arquivos militares; IV) revogação da Lei de Segurança Nacional; V) desmilitarização das Polícias Militares; VI) “Reformulação dos concursos de ingresso e dos processos de avaliação contínua nas Forças Armadas e na área de segurança pública, de modo a valorizar o conhecimento sobre os preceitos inerentes à democracia e aos direitos humanos”; VII) “Modificação do conteúdo curricular das academias militares e policiais, para promoção da democracia e dos direitos humanos” (Capítulo 18, p. 964-967 e 971).”
Vejam, com a exceção já citada, as emendas contém posições e propostas sobre as quais há muito tempo o Partido já tem opinião e acordo. No caso do artigo 142, desde a Constituinte, quando a nossa bancada afirmava categoricamente que não estava de acordo com a sua redação. Enfim, se queremos que as Forças Armadas realmente cumpram um papel positivo no desenvolvimento nacional, soberano e democrático, elas precisam ser reformadas. As de hoje, como estão, continuam a respaldar golpes, tutelam um governo neofascista, sustentam um programa neoliberal e entreguista, colocam em risco a integração regional com a projeção de conflitos militares com países vizinhos, ameaçam liberdades democráticas e terminantemente negam-se a reconhecer o seu passado autoritário e a modificarem seu papel “moderador” do sistema político. Há quem diga não ser “defensor também de ficar olhando pelo retrovisor, de ficar lambendo as feridas. Não adianta olhar no passado quem fez isso ou fez aquilo”. Foi este tipo de atitude que permitiu a existência de bolsonaros. Aliás, o cidadão que pensa o que falei antes, ou é candidato a Phil Connors, ou candidato a Noske.