Eu, Angoleiro radical?

Por  Fausto  Antonio (*)

Epigrafia do  Eu, Angoleiro radical?

A  frase feita  pode  se alojar no  inconsciente coletivo; as  aparências são desfeitas pelas  rugas e pela  consciência.  O  sangue  das  frases  feitas  está  no  verbo e  na  criação. As  aparências,  além da  frágil temporalidade, não criam  Cheguei  à  conclusão indo ao  fundo  do  acontecido.   

Passava  pelo centro  de  Campinas e parei, enquanto  definia o  que  fazer no final da  tarde, no  Largo  do Rosário. O tempo estava instável e enunciava, pelas  nuvens  escuras  e pesadas, chuva. Enquanto  ela  se  ajeitava para  cair, vivi um instante de  aprendizado e humor.  O  humor, se  é  que  há realmente, fica para quem fizer  a  leitura  do texto fixado ou  fisgado por esta regalia. Ademais, o humor depende dos  humores.   No tocante  ao  aprendizado, constatei que  as  aparências  são  frágeis; as  frases  feitas são  enfeitiçadas e, sobretudo, enfeitiçadoras.  Quem  vive  das  aparências, cedo  ou  tarde, descobre  o  engano. Quem  vive  de  frases  feitas não  tem, é  o  que  reza  a  lenda, a  mesma sorte.  A  frase feita  pode  se alojar no  inconsciente  coletivo; as  aparências são desfeitas pelas  rugas e pela  consciência.

O  sangue  das  frases  feitas  está  no  verbo e  na  criação. As  aparências,  além da  frágil temporalidade, não criam. Cheguei  à  conclusão indo ao  fundo  do  acontecido. Só  o que via  e a sua  apreensão não teriam  eficácia. Mas  vamos  aos  fatos e  ao encanto da frase feita, que agora é  lenda. Ela  criou uma  vida e  circula no  imaginário, notei. Tudo se  deu, na  origem,  no  ano  de  2003 , em Campinas, num  encontro do  movimento  capoeira  na  escola. Longe e muito perto, no  coração,  de  ser efetivamente capoeirista, fui  reconhecido  com tal. No  entanto, não foi um simples reconhecimento, ele  veio com o véu  do  encanto oral  e selado por  uma adjetivação especial, particularmente casada com a plástica mutante  do inconsciente coletivo.

Ri, com os  amigos  próximos, do  ocorrido e  em tom de  galhofa, notadamente, do  adjetivo.   Contei também para  os  amigos distantes e  com destaque para  a  frase  feita e  de  efeito.    A  frase feita, como tudo que circula pela  oralidade,   nasceu, era uma  criação,     a  partir  da  aparência do que  eu  era  ou do que  eu não  era, tanto faz.  A  frase  feita  se  alimenta, a contrapelo,  de duas deliciosas  porções e medidas.  A  transitoriedade  da  aparência, que  poderia  ser desfeita  pelo  tempo e por um olhar mais cuidadoso, foi  subvertida  e  abstraída  pela  frase feita. Ela  ganhou  aura e  vida própria. Era a  criação alojada no  verbo.

O  tempo  passou;  a  “criação” faz, em  2024,  21 anos.  No mês de  maio  de  2024, no  mesmo  Largo  do  Rosário, espaço no  qual a  frase foi  dita seminalmente, encontrei dois  capoeiristas que  resenhavam, de  modo saudoso, a respeito  das conquistas  do  movimento  capoeira  na  escola. Eles  tinham  em torno de  70  anos e  eram  negros. Não me  lembro deles nos  atos  do movimento e  de outras ações culturais. O  mundo  é  pequeno, mas  nem tudo e  todos ocupam nossas memórias.   Ao  lado  deles, certamente eles não me reconheciam; o  que  era bom, notei que  eles  se referiram, nas  conversas, ao  angoleiro do movimento capoeira  na  escola.

O  negro, de  camisa  vermelha  e  chapéu preto, abriu  o corpo de memórias.  Tinha, era uma  das  lideranças, aquele  angoleiro, você  lembra?  O  capoeirista  de camisa branca deu um riso e seguiu.  Palavras dele. A última  vez que eu o vi  foi  aqui, no Largo  do Rosário. Ao  lado  e  atento, estiquei os  ouvidos. O capoeirista, de camisa  vermelha, completou a frase: foi aqui que o vi  também pela  última vez , de boas lembranças, o angoleiro  radical. Bem  próximo ainda e  com os  ouvidos  atentos, não deixei de  rir internamente. Fora chamado de  angoleiro  radical; era a delícia  do feitiço e  do enfeitiçamento. No mais do sim e  do não, eis a força da  frase feita e  multiplicada pela imprecisão da origem. Sim, quando  ela, a  frase  feita,   se  descola das  aparências é um ser linguagem e, na dupla  margem e  imagem, tem vida própria.  O  Interlocutor  de  camisa  branca repetiu, respeitosamente, pois é, era mesmo angoleiro e radical.

A  chuva,  que  se enunciava horas  antes, veio  mansa e fria. Os  dois  capoeiristas  seguiram caminhos apostos; eu segui o meu e com a  frase feita , a  contragosto  da  realidade, no  contra  jogo das aparências,  quase  convencido de que era realmente o  angoleiro radical.

(*) Fausto  Antonio é  professor  da Unilab, escritor, poeta  e  dramaturgo.

 

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