Por Yuri Soares (*)
[CONTÉM REVELAÇÕES SOBRE OS ENREDOS – SPOILERS]
Um filme sobre uma Revolução Francesa no século XVIII e outro sobre a Igreja Católica dos dias atuais. O primeiro é focado nos personagens subalternos que alimentam com seu sangue o rio da História, o outro sobre líderes contemporâneos de uma instituição que remonta à Idade Antiga. O que podem ter em comum?
Ambos são filmes que defendem determinadas posições durante processos conturbados de disputa institucional. Isso não é um problema, afinal toda posição relativa a determinado acontecimento ou situação é eminentemente política.
O filme A Revolução em Paris (Un Peuple et Son Roi no título original) possui justamente o mérito de apresentar positivamente as posições mais radicais da Revolução Francesa, defendidas e colocadas em prática pelas classes subalternas. Uma Revolução vilipendiada pelos autoproclamados “filósofos” da extrema-direita a serviço dos poderosos que ainda se sentem ameaçados por ela. O filme demonstra como o radicalismo francês não surgiu do nada e era, antes de tudo, uma reação popular às constantes violências físicas e morais dos tiranos que governavam.
São muitas as qualidades do fime: bom roteiro, excelentes atores e uma fotografia irretocável que contrasta a beleza suntuosa dos palácios com a miséria das vielas onde vivia e trabalhava o povo de Paris. O cotidiano desta população é o grande fio condutor de uma narrativa envolvente sobre pessoas simples que tomam em suas mãos o destino de sua nação. O único pecado, quem diria, é o excesso de zelo com os fatos históricos. Não creio que o filme tenha ganhado muito com as excessivas menções a datas, nomes e votos específicos no nascente parlamento republicano, cenas que seriam mais propícias para apresentações numa TV Câmara ou em debates entre historiadores. Em cinema o tempo é precioso, e este poderia ter sido melhor utilizado para aprofundar outras questões da época, como as estruturas econômicas daquela sociedade, aspecto pouco abordado no filme.
Outro grande mérito foi devolver às mulheres o protagonismo que tiveram naquele processo, o que pode ser óbvio para pesquisadores, mas não o é para boa parte do grande público. Protagonismo feminino que ainda falta ser resgatado por algum(a) cineasta em relação à Revolução Russa, cujos filmes e séries recentes, em sua maioria, apresentam uma visão excessivamente masculina.
Já o filme Dois Papas, dirigido pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles, trata do recente processo de transição na cúpula da Igreja Católica. Uma mudança não apenas de seu líder, mas do estilo e rumo que isso significaria.
Muito se fala na crise que vive a Igreja, com perda de fiéis, casos de corrupção, escândalos de abuso sexual de crianças e relacionamento com ditaduras, temas abordados nos fictícios debates duros entre o então Papa Bento XVI e o cardeal arcebispo Jorge Bergoglio.
O que muitas vezes se esquece é que a história da Igreja Católica Apostólica Romana é permeada de crises e polêmicas desde seu início, como ocorre em qualquer instituição humana. A flexibilidade e a política foram as formas como ela conseguiu primeiro resistir aos ataques do Império Romano do Ocidente, depois se tornar a religião oficial deste e sobreviver à sua queda. No longa-metragem, os dois papas debatem permeando suas conversas com exemplos de 700 ou 900 anos atrás, não para manter, mas para mudar. O fato de estarmos hoje em 2019 discutindo as crises dessa instituição por si só é a grande demonstração de sua capacidade de sobrevivência.
Dois Papas também possui aspectos técnicos de excelência. Ajuda o fato da arte sacra e arquitetura romana serem ímpares no mundo. O centro do cristianismo católico foi pensado e executado para impressionar com maestria, e Fernando Meirelles soube captar isso muito bem. As atuações de Anthony Hopkins e Jonathan Price são primorosas, assim como sua trilha sonora inusitada e diálogos que misturam bem o drama e a comédia.
Vivemos em um período de polarização política em todo o mundo (qual tempo não foi?). Enquanto A Revolução em Paris não teme e enfrenta essa polarização tomando lado, Dois Papas, embora também tome lado, apresentando a divisão que ocorria na Igreja durante o papado de Bento XVI, Meirelles tenta encerrar com uma suposta e inexistente unidade em torno do novo Papa Francisco e seu projeto e reforma, a partir da reconciliação pelo alto entre os pontífices.
Qualquer pesquisador sério, seja ele historiador, jornalista ou mesmo um católico praticante, sabe que essa não é nem de longe a realidade interna da Igreja Católica. A Cúria Romana, espécie de “burocracia superior” da Igreja, é apenas citada de forma crítica, mas segue invisível, como se o Papa governasse sozinho a estrutura da Igreja apenas com sua força de vontade. São apresentadas as divergências dos setores progressistas ao pontificado de Bento XVI, mas não as ruidosas críticas dos setores conservadores contra Francisco.
Além dos oposicionistas declarados, na Igreja Católica as resistências às mudanças também ocorrem por meio de silenciosas inércias de setores que se calam e fazem ouvidos surdos aos apelos reformistas do Sumo Pontífice. Ignoram as orientações superiores enquanto seguem fazendo tudo como antes apenas aguardando ansiosamente o fim de seu pontificado. A reconciliação geral pretendida por Fernando Meirelles é apenas um desejo.
Talvez essas sejam críticas muito duras e devêssemos assistir tanto A Revolução em Paris quanto os Dois Papas e a grande maioria dos filmes que passam pelas salas de cinema apenas como obras de entretenimento e parte da indústria cultural comentada por Adorno (1903-1969). Uma indústria que não pode distanciar-se demais dos pressupostos técnicos dela própria com as quais seu público está acostumado, assim como das mentalidades das sociedades sobre as quais se assentam. Romper certos paradigmas na indústria cinematográfica é correr sérios riscos de críticas negativas dos pares e de prejuízos financeiros. Para isso, a maioria dos filmes são feitos para que o público saia da sala com mais certezas do que dúvidas, e essas certezas normalmente são as mesmas que tinham antes de iniciar a sessão.
Ambos os filmes são ótimos em vários aspectos já citados. O que precisamos ter sempre em mente é que o cinema histórico, seja ele mais ou menos ficcional, não prescinde da problematização profissional a respeito dos acontecimentos e processos ali representados. Não que seja esta uma defesa de campo profissional deste que vos escreve, mas como mera lembrança de evitarmos aquelas afirmações de que determinado filme “vale por uma aula de história”, o que em geral não é o caso.
(*) Yuri Soares é professor de História da SEEDF e mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da UnB
(texto publicado originalmente no Blog do Yuri)