Por Valter Pomar (*)
O professor José Luís Fiori escreveu um interessante texto intitulado “Sete potências e um destino: conviver com o sucesso da civilização chinesa”.
O texto pode ser lido aqui: https://sul21.com.br/opiniao/2021/06/sete-potencias-e-um-destino-conviver-com-o-sucesso-da-civilizacao-chinesa-por-jose-luis-fiori/
A primeira parte do texto sumaria as reuniões que o presidente dos EUA, Joe Biden, fez em junho de 2021 com i/Boris Johnson, ii/ os demais membros do G7 e seus quatro convidados, iii/a cúpula da OTAN, iv/os 27 membros da União Europeia e v/Vladimir Putin.
Em seguida, Fiori argumenta que o enredo e a coreografia desse tour de force estariam “ultrapassados”, principalmente porque “a nova política externa americana e a estratégia que propôs aos seus principais aliados ocidentais estão ultrapassadas e são inadequadas para enfrentar” o “desafio sistêmico chinês”.
Segundo Fiori, “a elite política e militar americana e europeia segue prisioneira do seu sucesso e de sua vitória na Guerra Fria, e não consegue perceber as diferenças essenciais que distinguem a China da antiga União Soviética”.
Que estas diferenças existem, não há dúvida.
Mas acho que Fiori as descreve de modo inadequado; e por este motivo subestima as possibilidades de êxito da estratégia estadounidense.
Segundo Fiori, a China é hoje “um sucesso econômico indispensável para a economia capitalista internacional” e “já foi a economia mais dinâmica do mundo ao longo dos últimos vinte séculos”.
Nesta definição sintética, falta um pequeno detalhe: a “civilização milenar” chinesa quase colapsou entre 1839 e 1949. Foi a revolução dirigida pelos comunistas que salvou a China da destruição causada pelo choque entre o imperialismo capitalista e o feudalismo chinês. E foi a política adotada pelos comunistas desde 1978 que salvou a China do destino sofrido pela URSS em dezembro de 1991.
Podemos discutir em que medida estes dois processos (simbolizados nas datas 1949, 1978) se vinculam com a “natureza milenar” da sociedade chinesa; mas é simplesmente impossível não enfatizar na equação o papel dos comunistas.
Fiori faz isto?
Vejamos o seguinte trecho: “Além do sucesso econômico, o que realmente distingue a China da antiga URSS, e a situação atual da antiga Guerra Fria, é o fato de a China ser uma ‘civilização milenar’ muito mais do que um Estado nacional. E uma civilização que nasceu e se desenvolveu de forma inteiramente independente da civilização ocidental, com seus próprios valores e objetivos que não foram alterados por seu novo sucesso econômico”.
Os “valores e objetivos” de uma “civilização milenar” são muitos e contraditórios. Mas os valores e objetivos predominantes naquela civilização conduziram a China a ser ultrapassada pelo capitalismo e quase destruída pelo imperialismo. Foi necessário que outros valores e objetivos se tornassem predominantes, para que a China mantivesse a unidade nacional e atingisse o atual sucesso econômico. E estes outros valores e objetivos não se desenvolveram de forma “inteiramente independente da civilização ocidental”. Para simplificar, sem Marx e Engels, não haveria Mao e Deng.
Fiori afirma que o que “realmente distingue” a China da antiga URSS é a “civilização milenar”. Certamente esta é uma das distinções. Mas para que esta distinção possa ser citada, foi preciso que ela sobrevivesse. E o que impediu que aquela “civilização milenar” desaparecesse, no período 1839-1949, não foram valores e objetivos “inteiramente independentes” da “civilização ocidental”. O que impediu que a China se fragmentasse foi um longo processo revolucionário em que se combinaram valores e objetivos de vários tipos, alguns dos quais “milenares” e outros desenvolvidos primeiramente no “Ocidente”.
E o que permitiu que a China não sofresse a mesma debacle da URSS não foi a “civilização milenar”, mas a política adotada a partir de 1978, política que não foi inspirada em valores e objetivos “inteiramente independentes” da “civilização ocidental”; novamente, houve um combinado em que valores e objetivos “milenares” e “ocidentais” jogaram grande papel.
Por qual motivo é relevante levar isto em conta?
Entre outros motivos porque, hoje como no passado, não será a “civilização milenar” que vai garantir a vitória da China no atual embate com os Estados Unidos. Claro que os últimos 100 ou 70 anos da história chinesa não se explicam sem o passado milenar; mas o passado milenar pré-1921 não foi suficiente para superar a situação semifeudal e semicolonial, não bastou para derrotar o capitalismo e o imperialismo, não bastará para derrotar a atual ofensiva dos Estados Unidos, nem muito menos para enfrentar as contradições derivadas do próprio sucesso chinês.
Pois cabe lembrar que a China – com todo seu “sucesso econômico indispensável para a economia capitalista internacional” – é uma nação… socialista. Motivo pelo qual existe uma contradição entre a dinâmica interna da sociedade chinesa e sua projeção externa, entre o sucesso contínuo da China e a economia capitalista internacional.
Fiori afirma que “soa absurdo aos ouvidos chineses quando os governantes ocidentais falam de uma luta que os separa da China, entre a democracia e o autoritarismo, sem que os ocidentais consigam se dar conta de que esta polaridade é inteiramente ocidental. E que, na verdade, trata-se de uma disputa que está sendo travada neste momento dentro das próprias sociedades ocidentais, sobretudo nos Estados Unidos, mas também em alguns países europeus, onde a democracia vem sendo ameaçada pelo avanço de forças autoritárias e fascistas. A civilização chinesa não tem nada a ver com isso, nem pretende se envolver com essa briga interna do Ocidente. Sua história e seus princípios éticos e políticos nasceram e se consolidaram há três mil anos, muito antes das civilizações greco-romana e cristã do Ocidente”.
Na minha opinião, Fiori está completamente equivocado. Para começo de conversa, a luta entre democracia e ditadura não é um fenômeno “ocidental”. Na própria China, esta luta foi um dos componentes das várias guerras civis travadas entre 1911 e 1949. Em segundo lugar, não é verdade que a “civilização chinesa” não tenha “nada a ver com isso”, nem pretenda “se envolver com essa briga interna do Ocidente”. Alguém acredita mesmo que a luta contra o neofascismo e contra o imperialismo podem ser vistas como uma “briga interna” de terceiros?? Fiori confunde a política externa de não intervenção nos assuntos internos de outros países, com a bizarra concepção acerca de uma “briga interna do Ocidente”.
Finalmente e mais importante, historicamente falando, Fiori erra quando fala que a história e os princípios éticos e políticos da China moderna “nasceram e se consolidaram há três mil anos, muito antes das civilizações greco-romana e cristã do Ocidente”. Se ele tivesse dito “parte” ou até mesmo “parte importante”, eu poderia concordar. Mas a China moderna é incompreensível sem o Partido Comunista e os “princípios” deste partido não “nasceram e se consolidaram há três mil anos”.
Claro que há uma tradição política e historiográfica que pretende apresentar o PC chinês como uma espécie de mandarinato moderno. Mas mesmo esta tradição não pode omitir que exista algo de moderno, com menos de três mil anos, no comunismo chinês. Tampouco pode omitir que houve uma revolução no meio do caminho.
Se o que Fiori fala fosse verdade, a revolução de 1949 não teria sido necessária. Refiro-me à frase: “Durante suas sucessivas dinastias, o império chinês foi governado por um mandarinato meritocrático que pautou sua conduta pelos princípios da filosofia moral confuciana, laica e extremamente hierárquica e conservadora, que foi adotada como doutrina oficial pelo Império Han (206 a.C.-221 d.C.), e depois se manteve como a bussola ética do povo e da elite governante chinesa até os dias de hoje”.
Dizer que a “bussola ética do povo e da elite governante é a mesma” desde 206 a.C. até os dias de hoje é dizer, por tabela, que os motivos que tornaram necessária a revolução foram todos externos à sociedade chinesa, que não havia uma classe dominante que explorava brutalmente a imensa maioria do povo chinês. Fiori reduz tudo ao “assédio e humilhação por parte das potências ocidentais”, como se não houvesse contradições internas brutais que inclusive ajudam a entender a penetração imperialista.
Óbvio que há elementos de continuidade na história chinesa; mas há também elementos de ruptura. Fiori some com estes últimos e deixa só os primeiros. Por exemplo: depois de dinastias sucessivas, a “China foi derrotada pela Grã-Bretanha e pela França, nas duas Guerras do Ópio, em 1839-1842 e 1856-1860, e foi submetida a um século de assédio e humilhação por parte das potências ocidentais, até os chineses reassumirem seu próprio comando após a sua revolução republicana de 1911, e a vitoriosa revolução comunista de 1949”.
Por qual motivo as dinastias tão supostamente exitosas do passado fracassaram frente às potências ocidentais? E por qual motivo falar que os chineses “reassumiram seu próprio comando” em 1911 e 1949, como se houvesse uma volta dos que nunca foram? E por que apresentar as revoluções de 1911 e 1949 apenas como continuidade? Todas estas perguntas remetem ao seguinte: a “civilização milenar” chinesa era um poço de contradições de classe brutais. Esquecer destas contradições e apresentar o PC chinês como uma continuidade do mandarinato meritocrático imperial é errado historicamente e politicamente desastroso, pois na prática contribui para o discurso segundo o qual a “democracia” capitalista ocidental seria expressão da modernidade, enquanto a China seria expressão do passado.
O texto de Fiori conclui com um sumário dos triunfos recentes da China e com a seguinte síntese de sua estratégia: “Assim, apesar de todo o estrondoso sucesso social, econômico e tecnológico, a China não está se propondo ao mundo como um modelo de validade universal, nem está se propondo substituir os Estados Unidos” como centro articulador do “poder global”.
Isto é verdade? Sim.
Mas isto resolve a contradição? Não.
O problema é que Fiori vê a contradição assim: “o que mais aflige os governantes ocidentais é o sucesso de uma civilização diferente da sua e que não mostra o menor interesse em disputar ou substituir a tábua de valores da Cornuália. O que parece que as potências ocidentais não conseguem perceber inteiramente é que está instalada no mundo uma nova espécie de “equipotência civilizatória” que já rompeu com o monopólio ético do Ocidente (….)”.
Que isso faz parte do problema, não tenho dúvida. Mas discordo que isto seja a parte principal do problema. O problema principal é riqueza e poder, não o “conflito de civilizações”. A China está superando os EUA no quesito economia e por isso constitui uma ameaça mais perigosa – para os Estados Unidos – do que a URSS da época da Guerra Fria.
Fiori afirma, com a mesma confiança exibida por muitos soviéticos no passado, que “hoje parece rigorosamente impossível reverter a expansão social, econômica e tecnológica chinesa”. E também afirma, com uma verdadeiramente deliciosa fé no bom senso alheio, que seria uma “temeridade global” tentar bloquear a China “através da guerra convencional”. Mas com a cautela devida, reconhece que a “onipotência e a insensatez” podem prevalecer e acha que neste caso o “acerto de contas” já “está agendado e tem lugar e hora marcados: será na Ilha de Taiwan”.
Admitamos o argumento: ele basta para demonstrar que não é “rigorosamente impossível” causar imensos problemas para a China, com consequências que só podemos especular. E registre-se que são problemas de natureza “defensiva”, ou seja, um triunfo chinês na luta por Taiwan não “resolve” a contradição entre o socialismo chinês e o mundo capitalista liderado pelos EUA. Aliás, a solução desta contradição não depende dos chineses, motivo pelo qual eles adotam uma estratégia de longo prazo, na expectativa de que fatos novos ocorram noutras regiões do mundo, fatos que enfraqueçam o poder dos EUA. Mas para que estes fatos novos ocorram, é preciso que haja quem se disponha a lutar por eles.
Fiori termina seu texto afirmando não ser “impossível imaginar um futuro em que o hiperpoder econômico e militar dessas grandes civilizações que dominarão o mundo no século XXI impeça uma guerra frontal” e possibilite um longo período de “armistício imperial” em que se “possa testar a proposta chinesa de um mundo em que todos ganhem, como vem defendendo o presidente chinês Xi Jinping” (…) “O problema” é que um “armistício imperial” desse tipo requer que as “sete potências da Cornuália” abram mão de sua “compulsão catequética” e do seu “desejo de converter o resto do mundo aos seus próprios valores civilizatórios”.
Da minha parte, considero que o principal “problema” deste cenário – que de resto eu considero totalmente improvável, para não dizer outra coisa – é que o lugar da América Latina e do Brasil nesta solução será similar ao do cinturão de asteróides na ficção científica The Expanse. Entre outros motivos porque não é possível um mundo capitalista em que “todos ganhem”.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT