Focus sem foco

Por Valter Pomar (*)

A edição 99 da revista Focus dedicou sua capa aos dez anos das chamadas “jornadas de junho de 2013”.

A revista pode ser lida aqui: https://fpabramo.org.br/

Segundo esta capa, “o ovo da serpente do fascismo começou a ser chocado em junho de 2013, quando manifestações de estudantes por redução das passagens de ônibus foram sequestradas pela direita. Abria-se o caminho para o impeachment, a República de Curitiba, a ascensão de extremistas e a prisão de Lula”.

Esta tese – junho de 2013, o ovo da serpente – é verdadeira?

Na minha opinião, não.

O que poderia ser dito é que, a partir de 2013, a direita passou a disputar as ruas contra nós.

A esse respeito, pode-se ler o seguinte texto, escrito em 2013:

https://valterpomar.blogspot.com/2013/06/a-direita-tambem-disputa-ruas-e-urnas.html

Se a capa está errada, o editorial da Focus está mais errado ainda.

O editorial intitula-se “Jornadas de junho: o canto da sereia”.

Nele está dito o seguinte: “o golpe malogrado de 08 de janeiro de 2023 é o corolário, com ares de tragédia, das malfadadas Jornadas de Junho de 2013”.

Notem o detalhe: nesta frase inicial, a acusação é feita contra as “malfadadas jornadas de junho”, não apenas contra o momento em que elas foram “sequestradas” pela direita.

Noutra passagem, o editorialista corrige o ato falho e volta à tese do “sequestro”.

A busca de um mordomo, o editorial diz que as jornadas de junho foram a “antesala” da “derrubada do governo da presidenta Dilma Rousseff”, o “ovo da serpente” de onde brotaram “a operação Lava Jato, a deposição de Dilma, a criminalização do PT e da política, a prisão de Lula e a vitória de Bolsonaro em 2018”.

Como historiografia, esta tese é simplesmente um lixo.

Afinal, não é sério responsabilizar as tais “jornadas” pelo 8 de janeiro de 2023, pela prisão de Lula e pela vitória de Bolsonaro em 2018, pela deposição de Dilma em 2016 e pela Operação Lava Jato iniciada em 2014.

Não é sério, mas é conveniente para quem não quer discutir os erros cometidos por nosso Partido, por nosso governo e por nossas lideranças, assim como por certas lideranças de partidos de esquerda hoje aliados a nós, mas que na época diziam que o PT não era de esquerda.

Mais conveniente, para alguns, é arrumar um bode expiatório (as jornadas) e assim está tudo (aparentemente) resolvido.

Aliás, o que poderia ter sido dito, se o editorialista tivesse um pouco mais de apego aos fatos, é que os erros cometidos pelo PT frente às manifestações de 2013 ajudam a compreender erros posteriores, que por sua vez contribuíram para nossa incapacidade de enfrentar a operação Lava Jato, o golpe contra a presidenta Dilma, a prisão de Lula e a campanha de Bolsonaro.

Quem tiver interesse em saber, não a opinião do autor do editorial, mas a opinião do Congresso do PT acerca daquele período histórico, pode ler aqui:

https://militanteblog.wordpress.com/2017/07/17/6o-congresso-do-pt-o-caminho-da-luta-esta-aberto/

Obviamente, o debate sobre 2013 não é apenas um debate historiográfico.

O debate sobre 2013 tem relação com a linha política que o Partido deve adotar em 2023.

Isto fica claro quando, no citado editorial, se afirma o seguinte: “Lembrar e deplorar os acontecimentos de junho de 2013 ser virá de alerta para que as forças populares não voltem a cair no “canto da sereia” de aprendizes de feiticeiro da política que para posarem de modernos venham atrapalhar a caminhada vitoriosa do governo de Lula em sua luta diária pela união e reconstrução do Brasil”.

Traduzindo: nada de convocar mobilizações, nada de ocupar as ruas para apoiar o governo.

Se prevalecer esta linha, defendida pelo autor do editorial de Focus, entregaremos as ruas para a direita.

E, agindo assim, não teremos instrumentos para contrapor a chantagem de Lira.

A revista Focus publica, também, um texto assinado por Olímpio Cruz Neto, intitulado “A jornada do abismo”.

O texto de Olímpio é mais equilibrado do que o editorial.

Criticando merecidamente Marcos Nobre, Olímpio afirma que “o equívoco da esquerda, talvez, tenha sido não perceber de imediato que aquele ensaio de protesto social, embora legítimo, poderia ser sequestrado pela nova direita”.

Curiosamente, o texto não cita a proposta feita pela executiva nacional do PT ao então prefeito de São Paulo – revogar o aumento das tarifas – proposta recusada, o que deixou ao governador Alckmin a iniciativa política.

O texto também não cita os “pactos” propostos pela presidenta Dilma – entre eles a Constituinte – proposta torpedeada, entre outros, por Michel Temer e pelo então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Também curiosamente, especialmente em se tratando de um texto publicado pela revista da Fundação Perseu Abramo, o texto de Olímpio cita uma pesquisa da Folha, mas não cita uma pesquisa da própria Fundação, pesquisa feita na época das manifestações e que ajuda a entender o que alguns enxergam como um mistério ou uma conspiração.

A referida pesquisa detectou, em determinadas camadas da população, um mal-estar com determinados aspectos da situação do país; e detectou, também, uma percepção distorcida acerca dos responsáveis pelos aspectos positivos da situação.

Em resumo: nada aconteceu “de repente”, exceto é claro para os áulicos, os puxa-sacos e os chapa branca.

Além do texto de Olímpio, Focus também publica um texto de Fernando Rosa. Tirante o preâmbulo, o o texto recorta fatos ocorridos de junho de 2013 até o segundo turno de 2014.

Logo, a conclusão deveria ser: se entre 2013 e o golpe de 2016 aconteceram as eleições de 2014, então nossa derrota em 2016 não foi causada por 2013.

Observando a cronologia, colocar a culpa nas jornadas de 2013 é, até do ponto de vista lógico, uma estultice sem tamanho.

Afinal, se fomos capazes de vencer em 2014, porque não fomos capazes de derrotar o golpe em 2016?

Mas, claro, para alguns é melhor por a culpa nas jornadas, do que falar de Levy, das ilusões de setores do PT com a Lava Jato, do republicanismo etc.

(Prefiro não fazer referência ao governador que dirigia a PM e ao líder de esquerda que encabeçava o movimento Não vai ter copa. Fernando Rosa fala dos milagres, mas não fala dos santos.)

Por fim: da mesma forma que discordo da interpretação dada pelo editor de Focus, também me oponho à turma que (na época e agora) endeusa junho de 2013. A rigor, as jornadas foram muitas, tiveram vários protagonistas, vários momentos e – no final das contas – nós de esquerda perdemos o controle das ruas para a direita.

Isso não era inevitável. Podíamos ter vencido a disputa pelas ruas, tanto em 2013 quanto em outros momentos. Para nós do PT, especialmente nesta conjuntura em que o governo está sob chantagem, é muito importante explicar por quais motivos aquilo ocorreu.

A edição 99 de Focus, ao invés de contribuir nisto, é totalmente desequilibrada, silenciando outros pontos de vista que existem no Partido. A tradição do PT e da Fundação é de debate, não de lacração.

(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT

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