Forças Armadas: um debate inadiável

Por Marcos Jakoby (*)

A decidida política externa do governo Bolsonaro de subordinar o Brasil aos EUA, a política de destruição da Amazônia e dos recursos naturais, a entrega do pré-sal, a privatização de empresas públicas – entre outras questões – têm suscitado em parte da esquerda e de algumas  lideranças públicas um interessante questionamento: “onde está a ala nacionalista das Forças Armadas?”.

Em entrevista concedida recentemente ao canal Tutaméia, Dilma Rousseff afirmou estar “perplexa” com a falta de reação das Forças Armadas à destruição do país. E disse que a corrente militar nacionalista “é forte e tem tradição no Brasil. Acho que essa parte está adormecida, que ela ressurge”. Também, em entrevista dada ao jornalista Bob Fernandes, na TVE Bahia, Lula comentou sobre o papel das Forças Armadas no atual processo histórico brasileiro: “onde estão os militares nacionalistas?”. Em discurso no lançamento da campanha #MoroMente, Fernando Haddad criticou a postura antinacional das Forças Armadas brasileiras: “não podemos chamar de Forças Armadas uma meia dúzia de generais entreguistas. Não podemos chamar de Forças Armadas quem desonra a farda e desonra o Brasil“.

Detalhe: Lula e Dilma nas respectivas entrevistas parecem incomodados com o fato de que nossos governos estão entre aqueles que mais investiram nas Forças Armadas e que agora estas “cospem no prato que comeram”.  Lula afirma que o general Villas-Boas – ex-comandante do Exército e atualmente assessor especial de Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto – “deveria ler os anais das forças armadas” e dizer se encontra um presidente “que teve o respeito e cuidou das forças armadas como eu cuidei”. Segundo Lula, as Forças Armadas deveriam ter “um papel importante em cuidar da nossa soberania, não contra o nosso povo”.  Muitas outras lideranças e militantes guardam uma esperança de que exista uma “ala nacionalista” entre os militares. E ela, a qualquer hora, “acordará” – se não for para questionar o governo Bolsonaro de conjunto – ao menos para se colocar contra a “política entreguista”. Em minha opinião, trata-se uma posição equivocada e de uma ilusão que não podemos alimentar, sob pena de criarmos expectativas de encontrarmos aliados onde não existem e de subestimarmos o papel das Forças Armadas na atual ofensiva das classes dominantes.

O que explica o atual comportamento das Forças Armadas, que causa a “perplexidade” em parte da esquerda e em setores progressistas? Numa resposta curta: seu caráter de classe.  O Estado e suas instituições são ao mesmo tempo uma relação e uma estrutura. O Estado vai sendo forjado pelas classes dominantes, no contexto das lutas (relação) entre as diferentes classes, e se condensando em estruturas e instituições que – aparentemente – correspondem aos “interesses gerais da nação”, mas que estão a seu serviço. Não foi diferente com as Forças Armadas brasileiras, em especial com o Exército, que possuem um histórico de participação na cena política, de tutela dos regimes políticos e de coerção sobre as classes populares. E isso não é somente parte da história recente. Para ilustrar, façamos uma rápida digressão histórica.

Os militares no Brasil Império foram uma força importante de repressão às rebeliões populares; aliás, o patrono do Exército, Duque de Caxias, é famoso por comandar massacres às revoltas populares e regionais do período, como a Balaiada, no Maranhão. No plano externo, a Guerra do Paraguai, em que o Brasil fora a principal força militar da Tríplice Aliança, dilacerou com o país vizinho e com seu povo, cujos resultados se fazem sentir até hoje. Guerra que também atendia aos interesses do imperialismo inglês.  Posteriormente, a República brasileira é proclamada por meio de um golpe militar. Os seus dois primeiros presidentes são militares, o que visava dar estabilidade ao novo regime político das oligarquias. E no decorrer da República Velha, o Exército cumpriu papel chave na destruição de novas revoltas populares, com destaque para Canudos e Contestado, o que atendia, como todos sabem, aos interesses dos latifundiários e do capital, inclusive estrangeiro (no caso de Contestado).

Neste período, surgiu uma das principais correntes democráticas entre os militares, o Tenentismo dos anos 1920, que representava, sobretudo, os interesses dos setores médios críticos à política oligárquica. O fato marcante deste processo foi a Coluna Prestes, mesmo assim, tratava-se de uma corrente democrática com limites, como restrições e dificuldades em admitir alianças populares e o seu engajamento nas lutas contra as oligarquias. De qualquer forma, a grande maioria do Exército e a alta oficialidade continuava atrelada aos interesses oligárquicos. Ao fim, essa corrente democrática foi sufocada e derrotada e acabou se dividindo nos anos 1930: uma parte se dirigindo ao PCB, exemplo maior disso é o próprio Luís Carlos Prestes, e outra parte ficando mais ao centro ou mesmo fazendo uma inflexão à direita.

Mais tarde, o Exército brasileiro dará apoio à ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e, após a II Guerra Mundial, começará a aprofundar a sua vinculação de seus generais com o alto comando dos EUA, integrando-se, inclusive, à doutrina da Guerra Fria. Nesse contexto, lembremos do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), que foi ministro de Guerra e um militar reacionário, que colocou o PCB na ilegalidade, após curto período fora da clandestinidade, que rompeu relações com a União Soviética e que estabeleceu centenas de intervenções em sindicatos. De qualquer modo, neste período (1945-1964), existia uma ala, embora conservadora, nacionalista e legalista. Um exemplo, que comprova a existência dessa ala, é a atuação do general Teixeira Lott, cuja ações garantiriam a posse de Juscelino Kubitschek e João Goulart, na presidência e vice-presidência, respectivamente, vitoriosos na eleição de 3 de outubro de 1955. Outro exemplo ocorreu em 1961, por ocasião da tentativa de golpe para impedir a posse de João Goulart, onde general José Machado Lopes, comandante do III Exército, e outros oficiais aderem à Campanha da Legalidade no Rio Grande do Sul e acabam por se tornarem um fator importante para impor a derrota ao movimento golpista.

Em 1964, ficará claro o papel dos militares como braço armado das classes dominantes e o modo subordinado com que operavam em relação aos EUA. O que existia de ala nacionalista nas Forças Armadas é liquidada, há uma verdadeira “depuração” após o golpe. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, entre 6.500 e 7.500 membros das Forças Armadas e das polícias militares foram perseguidos, presos, torturados ou cassados pelos golpistas. A ditadura militar demonstrou de modo escancarado o papel de suporte dos militares ao grande capital nacional e estrangeiro, agindo de forma violenta, não só contra os militares legalistas e nacionalistas, mas contra toda a classe trabalhadora e as camadas populares.

Com a redemocratização, embora os militares tenham sido obrigados a recolherem-se, não foi imposta nenhuma reforma às Forças Armadas. Passaram de maneira incólume pelo período.  Não se estabeleceu nenhuma punição aos militares responsáveis por assassinatos e torturas durante a ditadura. Lembremos da Lei de Anistia, que completou 40 anos em agosto, sem nunca ser modificada para julgar e punir os agentes do Estado envolvidos naqueles crimes. Não se mudou os currículos das escolas militares. Tampouco se reformou a organização das Forças Armadas. Na Constituição de 1988 não foi realizado nenhum movimento significativo no sentido de sua democratização. E mesmo durante os governos petistas nada de substancial foi feito nessa direção.

Portanto, o seu caráter de classe, construído historicamente pelas classes dominantes, não foi alterado. As Forças Armadas se beneficiaram materialmente de nossos governos, mas isso não mudou o seu profundo vínculo, a sua tradição e a sua cultura organizativa ligadas às classes dominantes. Nem mesmo no sentido de assegurar uma postura sua de respeito à legalidade democrática.  As declarações de Lula e Dilma revelam uma esperança de que, uma vez que nossos governos tenham implementados importantes programas de reaparelhamento e fortalecimento das Forças, de recomposição de soldos e dos orçamentos ligados à área, isso seria o suficiente para que o Exército e as outras Forças cumprissem um papel “profissional” e interessado na soberania nacional. Trata-se de uma visão com viés economicista, similar àquela relacionada à classe trabalhadora no período de nossos governos. Em outras palavras, não basta impulsionarmos ganhos materiais, precisamos ter uma linha política capaz de incidir e disputar seus rumos.

Acontece que, neste mesmo período, a doutrina vigente, na prática, entre os militares, continuava sendo a da “Segurança Nacional” da ditadura, caracterizada por identificar e eliminar “inimigos internos”; que os militares articularam para sabotar a Comissão Nacional da Verdade; que jamais admitiram a hipótese de punir os responsáveis por crimes na ditadura; que durante boa parte de nossos governos, nos quarteis, continuava-se a comemorar o golpe de 1964 etc.

Para ilustrar com fatos: enquanto Dilma concorria e vencia às eleições presidenciais de 2010, com toda a sua trajetória de luta contra a ditadura, sendo inclusive torturada,  a turma de cadetes formandos de 2010 na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), escola responsável pela formação dos oficiais do Exército brasileiro, homenageava o general Emílio Médici, presidente do período 1969-1974, considerado o de maior violência da ditadura.  Sinal evidente de que nada, ou muito pouco, tinha mudado na formação e nos posicionamentos políticos do Exército. Pode-se dizer ainda mais: era uma mensagem de que, assim como em 1964, os militares poderiam entrar em ação novamente para quebrar a legalidade democrática, caso entendessem que fosse necessário a contenção das forças democráticas e populares.

Já no plano internacional, não podemos esquecer que coube ao Brasil o comando da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, ou MINUSTAH, que foi acusada de agir com violência desproporcional e cometer sérios abusos contra a população civil no período em que esteve no país, entre 2004 e 2017. Entre os comandantes, que estiveram à frente da MINUSTACH, podemos destacar os generais Augusto Heleno e Carlos Alberto Santa Cruz, ambos ministros do governo Bolsonaro. Há outros oficiais que estiveram no país caribenho e que igualmente ocupam altos postos no atual governo. Outro aspecto das operações naquele país, é que a “turma do Haiti” estabeleceu maiores contatos com militares norte-americanos no âmbito da missão. Coincidência ou não, mas é este grupo de oficiais que detêm maior presença e influência no governo.

Voltando à cena nacional, desde o golpe que depôs Dilma em 2016, os militares vêm intensificando sua participação na cena política, respaldando e sendo agentes do golpismo e ocupando um papel crescente no Estado brasileiro. Bolsonaro, seu-vice, Mourão, e mais de uma centena de militares ocupam postos do alto comando do Executivo. Eles têm implementado medidas que ferem a soberania nacional e não se mostram incomodados com isso, pelo contrário, estão totalmente sintonizados com a agenda ultraliberal, com os interesses do capital monopolista e estão de acordo com a subordinação brasileira ao imperialismo.

Por outro lado, não existe nenhum indício da existência, ou do surgimento, de uma corrente “nacionalista” entre os militares. Como dissemos, o que ainda existia foi aniquilada pela ditadura militar. Isso não quer dizer que não possam existir militares com esse perfil, mas não existe, e não parece haver condições, na atual configuração da estrutura, organização e doutrina das Forças Armadas, espaço para uma articulação de tal tipo. Por isso, esperar algo dos militares, ou de alguma ala sua, que possa romper com a ofensiva da classe dominante e perfilar ao lado das forças democráticas e populares é uma ilusão perigosa.

Aliás, essas ilusões podem levar há lugares e posições distantes das defendidas pelas forças democráticas e populares. Um bom exemplo é Aldo Rebelo. Que hoje minimiza a participação dos militares no golpe de 1964, onde estes teriam entrado “de última hora”.  Que acha correto o discurso cínico de Bolsonaro e dos militares em defesa da Amazônia contra a interferência estrangeira (ignorando que os mesmos estão totalmente subordinados aos EUA e que os militares  aprofundaram a interferência estrangeira na Amazônia durante a ditadura), sem mencionar o fato de a política do governo é totalmente alinhada aos interesses do agronegócio, das mineradoras e dos garimpos, responsáveis pela destruição de reservas ambientais e de territórios indígenas.

Aldo, que foi ministro da Defesa no governo Dilma, declarava ontem como correta a decisão do STF em não rever a Lei da Anistia, por isso não surpreende que hoje defenda ampliar a presença militar na Amazônia e que não enxerga problemas na grande participação de militares no governo. Afinal de contas, as forças militares, atualmente, são patrióticas, profissionais e legalistas. Que mal haveria?

Na verdade, precisamos encarar que as Forças Armadas realmente existentes no Brasil são antidemocráticas, antipopulares e reacionárias. O que nos cabe então é fazermos um balanço acerca do que fizemos e deixamos de fazer sobre o tema, enquanto estivemos no governo, e colocarmos o assunto como uma questão fundamental da nossa política e do debate público, tendo em seu horizonte de que precisamos ter outra postura para voltarmos a ter uma ala nacionalista e legalista no futuro, o que é imprescindível para  construirmos mudanças profundas na sociedade e no Estado brasileiro.

(*) Marcos Jakoby é professor e militante petista.

 

 

 

 

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