GLO, uma péssima ideia

Por Manuel Domingos Neto (*) e Luiz Eduardo Soares (**)

Mais uma vez, o Estado brasileiro faz o militar agir como policial. Alimenta a permanente crise de identidade das Forças Armadas e das corporações policiais.

Agora, o Exército não está nos espaços reservados aos sobreviventes da escravidão, da matança dos povos originários e da “vadiagem”. Mas a Marinha e a Aeronáutica atuam em portos e aeroportos, desperdiçando recursos públicos em atividades distantes de sua destinação precípua.

Em um mundo assombrado pela possibilidade de guerra generalizada, os governantes parecem despreocupados com a proteção do Brasil ante eventuais ameaças de forças estrangeiras hostis.

Essas duas obrigações do Estado, Defesa e Segurança Pública, são rigorosamente distintas: exigem equipamentos, organização, preparo e culturas diferentes. Enfrentar agressor estrangeiro nada tem a ver com tarefas envolvidas no controle das violações às leis.

Confundindo funções diferentes, o governo fragiliza a Defesa do Brasil e desprotege a cidadania. Alimenta a dependência externa e faz do cidadão que transgrida a lei um inimigo a ser abatido. Reafirma o conceito de “inimigo interno” propalado pelo Pentágono e assimilado pelas elites dirigentes brasileiras. Com “inimigo” não se conversa, se anula de qualquer forma.

Já o cidadão transgressor continua a ser cidadão e precisa ser levado ao tribunal. A ideia de que deva ser abatido é traduzida pela consigna “bandido bom é bandido morto”. A permanência dessa concepção (presente no recurso às Forças Armadas para lidar com segurança pública) mostra que a direita raivosa foi derrotada eleitoralmente, não politicamente. Sobrevive entranhada na sociedade, na representação política e, sobretudo, nas engrenagens do Estado.

Operações de GLO são de grande utilidade simbólica e política. São peças teatrais dispendiosas que servem para fingir que os problemas de ordem e segurança pública estão sendo encarados. Passam a falsa noção de que o governo reprime a criminalidade. Permitem ao militar “exibir serviço”, quando, na realidade, diante do anúncio de conflagração mundial, descuida da proteção do Brasil. Camuflam o fato de as Forças Armadas estarem despreparadas para negar a terra, o mar, o ar e os espaços cibernético e sideral ao estrangeiro ganancioso. Iludem a sociedade, disseminando a ideia de que o militar é o derradeiro recurso diante de problema doméstico crônico. Dissimulam o fato de as corporações não encerrarem as atividades de seus dispendiosos escritórios em Washington. Reafirmam a crença de que o militar é salvador da pátria e credenciado condutor da sociedade.

O Constituinte escreveu os artigos 142 e 144 da Carta com o sabre na garganta. Obedeceu a corporações estruturadas para combater “inimigos internos”. Governos eleitos democraticamente, mostrando subserviência aos comandantes, endossam essas aberrações constitucionais.

Ao autorizar operações de garantia da lei e da ordem, executivos públicos, em um só lance, mostram descaso diante da necessidade de garantir voz altiva no cenário internacional e, internamente, desleixo com a cidadania. Dobram-se às corporações armadas para perpetuar a subordinação ao estrangeiro poderoso e às estruturas sociais que contrariam as aspirações democráticas e de soberania.

A bandidagem ganha com a GLO, na medida em que, mais uma vez, as dinâmicas perversas que a fortalecem são mantidas. As facções criminosas se alimentam do encarceramento em massa de jovens varejistas do comércio de drogas, absurdo endossado pelo MP e abençoado pela Justiça.

Dos 832 mil presos brasileiros, os acusados ou condenados por tráfico já são mais de 30% (62% entre as mulheres). A maioria tem sido presa em flagrante, porque a corporação que mais prende (a PM) está constitucionalmente proibida de investigar. Resta-lhe responder à pressão da sociedade encarcerando a arraia-miúda, que atua ostensivamente, não interage com os grandes protagonistas das redes criminosas nem se beneficia dos negócios bilionários.

Uma vez no cárcere, ao jovem pobre, em geral negro, morador de territórios vulneráveis, resta comprar sua sobrevivência de quem a pode garantir: a facção que manda no presídio, posto que o Estado não cumpre a Lei de Execuções Penais, não exerce autoridade nem afirma a legalidade no interior das prisões.

O preço da sobrevivência do preso será o envolvimento futuro com a facção. Em outras palavras: encarcerando em massa e abandonando o sistema penitenciário às facções, o Estado contrata violência futura, reproduzindo geometricamente a criminalidade organizada e destruindo a vida de gerações e suas famílias. Além disso, aprofunda o racismo estrutural e as iniquidades sociais. Não há exagero retórico quando se diz que a guerra às drogas é a guerra aos pobres, uma guerra racista e destinada ao fracasso.

Há um ponto decisivo, que nos remete aos artigos 142 e 144 da Constituição e ao fato de que, na prática, por imposição dos militares, não houve transição democrática na Defesa e na Segurança Pública: qualquer avanço consistente e sustentável exigirá o enfrentamento do crime no interior das polícias, o qual será impossível enquanto essas instituições permanecerem refratárias ao comando da autoridade política civil. Sem a afirmação dessa autoridade sobre as instituições que mobilizam a força do Estado, a democracia, a vontade popular e a soberania nacional permanecerão chantageadas.

Ao postergar reformas na Defesa Nacional e na Segurança Pública, os governos federal e estaduais prosseguem em marcha batida para o desastre, alimentando as fogueiras do medo, do ódio e do ressentimento, que preparam os espíritos para o fascismo.

Os governantes estão perdidos, temerosos de uma opinião pública envenenada pela confusão entre justiça e vingança, ludibriada pela ideia de que a única solução é fazer mais do mesmo, com mais intensidade (mais prisões, mais proibicionismo, mais violência policial, penas mais longas, cárceres mais cruéis).

É preciso coragem para trocar os jogos de cena pelo diálogo franco com a sociedade. Até quando será negada a necessidade de uma reforma militar e de uma profunda revisão do sistema de segurança pública?

Quando Lula começará a “cuidar do povo”, como prometeu? O povo não precisa apenas de comida, diversão e arte. Sem segurança pública, persistirá no inferno, que é como vive quem mora nas periferias das cidades brasileiras. Sem Defesa Nacional, persistirá submetido à vontade emanada do estrangeiro poderoso.

(*) Manuel Domingos Neto é historiador, professor, pesquisador, escritor e político brasileiro que foi deputado federal pelo Piauí. Entre outras obras, é autor do livro ‘O que fazer com o militar?’

(**) Luiz Eduardo Soares é antropólogo, cientista político e escritor. É autor de livros que discutem segurança pública, entre os quais ‘Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos’.


Este é um texto de opinião e não, necessariamente, expressa a linha editorial do Página 13

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