Golpismo quatro-estrelas

Por Pedro Estevam da Rocha Pomar (*)

No seu livro, recém publicado pela Fundação Getúlio Vargas, o general Villas Bôas deixa entrever como o Exército, que ele comandou de 2015 a 2018,  vem atuando de modo a interferir nos rumos políticos do país, por exemplo quando agiu ilegalmente contra o Supremo Tribunal Federal — buscando bloquear a candidatura de Lula à Presidência da República e apoiar a de Bolsonaro. Pródiga na confissão de ilegalidades e na ostentação de inverdades históricas, a obra é um registro do profundo antagonismo entre o Exército e o povo brasileiro.

Publicado originalmente no Manifesto Petista

O livro General Villas Bôas: conversa com o Comandante (Rio de Janeiro, FGV Editora, 2021, 224 páginas), que provoca comentários da mídia desde que foi lançado, oferece muitos motivos para impressionar o leitor ou leitora atentos. Nenhum deles, porém, por qualquer qualidade de natureza literária. Na forma de entrevista, a biografia desse oficial-general de quatro estrelas só tem interesse como documento autoincriminador da alta hierarquia do Exército brasileiro.

Causam espanto no livro a confissão despudorada da prática sistemática de ilegalidades pelo Exército brasileiro, a quantidade de inverdades históricas e disparates lógicos que pontilham dezenas de páginas, a empáfia e a pompa como são manifestadas opiniões do general e de seus pares que apenas refletem mediocridade, quando não indigência intelectual. Por exemplo: as considerações de Eduardo Villas Bôas sobre aquilo que chama de “politicamente correto” — um espantalho retórico por ele escolhido para supostamente tomar, na sua narrativa, o lugar do comunismo e das esquerdas como inimigo declarado dos militares — são no máximo rudimentares.

O ex-comandante do Exército contou com dois parceiros principais na sua aventura literária. Ainda que não formalmente, ambos devem ser considerados coautores da obra. O primeiro deles é, obviamente, o historiador Celso de Castro, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), autor da entrevista com Villas Bôas e organizador declarado da obra. O outro é menos evidente, mas basta ler o livro para compreender sua influência: trata-se do também general-de-quatro-estrelas reformado Sérgio Etchegoyen, que durante o governo de Michel Temer — o vice-presidente golpista que atuou pela derrubada da presidenta Dilma Rousseff (PT) — exerceu o cargo de ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), cuja principal estrutura vinculada é a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), sucessora do Serviço Nacional de Informação, o temido SNI da Ditadura Militar. Etchegoyen foi o principal revisor do texto original. Desses coautores falaremos mais adiante.

Em geral, a mídia debruçou-se apenas sobre as declarações mais novidadeiras de Villas Bôas no livro, aquelas referentes aos tuítes ameaçadores desfechados pelo general contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) em 3 de abril de 2018, por ocasião do julgamento do habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. E elas são realmente reveladoras, porque consistem numa confissão de culpa que — num país capitalista minimamente organizado e numa democracia liberal dotada de alguma seriedade — mereceriam ao menos a instauração de um processo judicial célere. Não sendo o Brasil nem uma coisa nem outra, resta demonstrar a conduta ilegal do então comandante do Exército e do seu entorno, que não foi um crime menor, mas uma conspiração militar.

Graças ao sentimento de impunidade do general, sabe-se agora que as mensagens criminosas lançadas na rede social Twitter não resultaram de um ato individual, nem de atitude impensada e passional. “O texto teve um ‘rascunho’ elaborado pelo meu staff e pelos integrantes do Alto-Comando residentes em Brasília”, revelou, impávido, Villas Bôas ao seu entrevistador (p. 189). “No dia seguinte — dia da expedição —, remetemos para os comandantes militares de área. Recebidas as sugestões, elaboramos o texto final, o que nos tomou todo o expediente, até por volta das 20 horas, momento em que liberei o CComSEx [Centro de Comunicação Social do Exército] para a expedição”.

Foram dois tuítes. O primeiro, embora mais genérico, embutia um recado sobre a idoneidade dos ministros do STF: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”. O segundo tinha contornos mais definidos. Dava a entender que o Exército, falando em nome dos “cidadãos de bem”, não aceitaria um resultado favorável à “impunidade”, a saber, a libertação de Lula: “Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”.

Assim, uma ação totalmente ilegal orquestrada por agentes públicos —generais-de-quatro-estrelas — foi desencadeada com a finalidade de intimidar a mais alta corte judicial do país, o STF, e com isso garantir que o candidato à Presidência da República que liderava as pesquisas de opinião, o ex-presidente Lula, tivesse seu pedido de habeas corpus negado e fosse impedido de disputar a eleição presidencial — o que terminou ocorrendo, pela apertada margem de 6 x 5. Tal “operação” foi levada à frente pela cúpula do Exército brasileiro com a utilização de instâncias e instrumentos oficiais do poder executivo, por meio do perfil oficial do comandante dessa força no Twitter, manejado pelo CComSEx.

Se há algo que a Ditadura Militar ensinou é que generais mentem. Mentiram sobre as causas do golpe de 1964, mentiram sobre o governo que derrubaram à época, mentiram sobre as torturas e execuções que ordenaram. Mais recentemente, mentiram sobre a missão no Haiti, mentiram à Comissão Nacional da Verdade (CNV) (1), mentiram sobre as mortes de civis em ações de “garantia da lei e da ordem” (GLO). É impossível não pensar nisso ao ler as explicações que Villas Bôas oferece ao entrevistador Celso de Castro à medida que este vai apresentando sucessivas perguntas sobre o episódio das ameaças ao STF. Certas declarações são tão inconsistentes que chegam a ser constrangedoras. Por outro lado, outras são constrangedoras porque, se verdadeiro o seu teor, revelam o estado de miséria da assim chamada democracia liberal brasileira.

O diálogo a seguir merece exame atento.

— “Sua mensagem foi logo divulgada no Jornal Nacional. Isso foi surpresa? Os senhores não queriam divulgar imediatamente?”, indagou Castro.

— “A nota [sic] foi expedida às 20 horas e 20 minutos. Logicamente, desejávamos que a repercussão fosse imediata, mas fomos surpreendidos, sim, por ter sido veiculada logo em seguida, pelo Jornal Nacional”, respondeu Villas Bôas (p. 186/187).

Trata-se de uma explicação nada crível. Mais provável é que a divulgação dos tuítes tenha sido coordenada com a TV Globo, nos moldes da “relação de trabalho” criada entre a emissora do clã Marinho e os responsáveis pela Operação Lava Jato. Aliás, a linguagem cifrada empregada nos tuítes só poderia ser exitosa se contasse com o apoio da mídia para traduzir os recados subliminares neles contidos.

— “E o senhor pensou que poderia ser demitido no dia seguinte? Ou tinha certeza de que não seria?”, prosseguiu o entrevistador. “Porque o senhor não consultou o ministro da Defesa antes, muito menos o presidente”.

A resposta do general a tais questionamentos espanta. Lendo-a novamente, o resenhador é levado a pensar se não se trata de um dos tantos trechos enxertados a posteriori na entrevista[i], a indicar uma cuidadosa elaboração defensiva, repleta de detalhes interligados, de explicações que remetem umas às outras. E, no entanto, todas escassamente plausíveis, a par de inacreditavelmente cínicas:

— “O ministro da Defesa era o Raul Jungmann, com quem compartilhava relações de confiança e amizade. Se o informasse, ele se tornaria corresponsável, e, por exercer cargo político, estaria muito mais suscetível a uma tempestade de críticas”, responde Villas Bôas. “Pelas mesmas razões, não antecipei ao Etchegoyen” (p. 187).

Seria hilariante, não fosse tão grave. O general teria deixado de dar ciência de sua ação audaciosa contra o STF ao ministro da Defesa — de quem era subordinado e a quem devia obediência — para que esse mesmo ministro não se tornasse “corresponsável” por essa ação. Por exercer “cargo político”, alega Villas Bôas complementarmente, Jungmann estaria muito mais suscetível a críticas. Formidável. Ocorre que o cargo político de Jungmann era precisamente o de ministro da Defesa, a quem cabe dirigir as Forças Armadas, as quais devem prestar-lhe obediência. Portanto, não se tratava sequer de “informar” ao ministro, mas de pedir-lhe permissão para o ato pretendido. Se de fato não consultou o ministro e nem mesmo lhe avisou, o então comandante do Exército cometeu um óbvio ato de insubordinação.

A arrogância olímpica do raciocínio do general é uma vertente da sua visão do Exército como instituição acima da lei e resultante de uma ação entre amigos. Dadas as suas “relações de confiança e amizade” com o civil e ex-comunista Jungmann, teria preferido não avisá-lo da postagem no Twitter, de modo a poupá-lo de dissabores! O ordenamento legal é preterido em nome das relações pessoais. Em que proporções misturam-se, nessa imaginativa explicação, racionalização política e puro cinismo é uma questão a ser elucidada.

A continuação do diálogo traz novos elementos de interesse para o leitor.

— “O senhor falou com o ministro da Defesa depois? E o que ele disse?”, questionou Castro.

— “Brincou comigo que eu estava tomando seu lugar. Falei também com o Etchegoyen que já havia conversado com o presidente Temer, o qual se limitou a dizer ‘está bem’, aparentemente sem dar maior importância”.

— “O senhor falou com o general Etchegoyen antes da nota?”

— “Não, até porque estaria sobrepassando o ministro Jungmann, meu chefe imediato” (p. 190).

A narrativa ganha um tom intimista, entremeado com algum humor. Boa-praça, Jungmann teria levado a coisa na esportiva. O general subverteu a relação entre poder militar e poder civil, entre subordinado e chefe? O general usou de sua posição para atacar um outro poder da República? Tudo bem, estamos entre amigos! Assim, o ministro nada mais fez do que brincar com o general, ao dizer que “eu estava tomando o seu lugar”. E não estava? O relato beira o surreal, na medida em que uma crise política entre instituições da República, com enorme repercussão sobre o processo eleitoral então em curso, é tratada com inesperada leveza, como algo quase trivial. Não nos deixemos enganar: Jeferson Miola já apontou, com propriedade, os crimes cometidos nesse episódio.(2)

Que Temer tenha dito “está bem” ao crime cometido não surpreende, pode ter ocorrido, afinal de contas ele sempre foi um fantoche sem maior peso político específico, sendo o ministro Meirelles, da Fazenda, o presidente de facto. Que Jungmann tenha feito algo parecido, abdicando de sua autoridade ministerial, igualmente não choca ninguém. Mas que Villas Bôas não tenha discutido com Etchegoyen o teor dos posts contra o STF simplesmente não é plausível. Parece uma versão destinada a preservar o então ministro-chefe do GSI de acusações e eventuais processos judiciais. Afinal de contas, o livro demonstrou haver marcante proximidade e afinidade pessoal e política entre um e outro, sendo pouco provável que numa ação tão importante Etchegoyen não tenha sido ouvido.

À parte essas considerações, reveste-se de irresistível comicidade a justificativa apresentada por Villas Bôas para supostamente não haver conversado com Etchegoyen: “Não, até porque estaria sobrepassando o ministro Jungmann, meu chefe imediato”. A frase sugere que os civis são idiotas incorrigíveis. Vejamos: para não “sobrepassar” seu “chefe imediato”, o ministro da Defesa, o então comandante do Exército preferiu não inteirar do fato o ministro Etchegoyen, do GSI. Ocorre que Jungmann, não obstante ser “chefe imediato”, já havia sido “sobrepassado” quando Villas Bôas decidiu não avisá-lo das mensagens intimidatórias que pretendia enviar!

São admiráveis os esforços do general para demonstrar ao entrevistador que sua atitude (e do Alto Comando) naquele momento não representou uma intervenção militar na política, até porque não teria envolvido qualquer ameaça aos juízes da suprema corte. “O país, desde algum tempo, vive uma maturidade institucional não suscetível a possíveis rupturas da normalidade. Ademais, eu estaria sendo incoerente em relação ao pilar da ‘legalidade’. Tratava-se de um alerta, muito antes que uma ameaça”, sustenta ele no livro (p. 186). “O limite a que me referi”, diz fazendo referência a uma declaração anterior à Folha de S. Paulo, “é que tínhamos a consciência de estarmos realmente tangenciando o limite da responsabilidade institucional do Exército” (como não lembrar da célebre frase do então presidente do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio, durante o escandaloso processo de privatização das telefônicas, em 1998: “Estamos no limite da nossa irresponsabilidade”?). “Quanto ao tuíte, insisto que expressou um alerta em lugar de uma ameaça. Não teceu críticas de qualquer natureza a nenhuma instituição e tampouco citou pessoas” (p. 188/189). No mesmo diapasão, defende tudo que fez em abril de 2018.

“A mensagem contida naquele tuíte só pode ser interpretada com propriedade dentro das condicionantes em que ocorreu. No texto, a palavra-chave é ‘impunidade’”, diz Villas Bôas, parecendo não dar-se conta de sua própria impunidade como autor de um crime de Estado (p. 185). “Relembrando aquele episódio, continuo avaliando-o como oportuno. Desencadeou uma enxurrada de demonstrações de apoio que me surpreenderam”. Ao mesmo tempo, refere-se a “uma quantidade ponderável de críticas, esperadas e compreensíveis”, que partiram de articulistas: “Houve um colunista que disse que a anarquia militar havia voltado”. Após a publicação, o general ironizou a reação do ministro Edson Fachin às suas declarações no livro.(3)

Veremos mais à frente como Villas Bôas relata ter direcionado o CComSEx para agir como ponta de lança de seu projeto de aggiornamento da força terrestre como ator político disposto a disputar espaço e poder na institucionalidade e na esfera pública, à inteira revelia das atribuições constitucionais conferidas ao Exército. Àquela altura dos acontecimentos, o então comandante já vinha distribuindo opiniões publicamente havia alguns anos, como se fosse um ministro de Estado ou um mandatário importante. A mídia mainstream entrou no jogo, dando espaço ao general, tratado como celebridade.

Exemplo marcante da desenvoltura de Villas Bôas foi a entrevista concedida ao jornal Valor Econômico (4) durante um momento agudo de crise do governo golpista de Michel Temer-Henrique Meirelles, em fevereiro de 2017. “Somos um país à deriva”, mancheteou o jornal, ecoando uma das declarações do general sobre “segurança pública”, quando o país vivia os horrores de sucessivos massacres em presídios e turbulentas rebeliões das Polícias Militares em alguns Estados. Ele buscava musculatura política para futuros pronunciamentos. Em abril seguinte, ao falar à Veja.com (5), negará enfaticamente apoio à pré-candidatura de Jair Bolsonaro: “Não. Nós não temos ligação institucional com o Bolsonaro. Ele é um ex-integrante das Forças Armadas, tem muita relação com o pessoal do círculo dele e todo o direito de se candidatar, mas quem vai julgá-lo é a população, por intermédio do voto”.

Em junho de 2018, dois meses após as fatídicas mensagens no Twitter, Villas Bôas voltou a exorbitar ao convidar presidenciáveis para encontros de natureza política — onze candidatos prontificaram-se a comparecer às sessões de conversa com o general, descritas por alguns críticos como “beija-mão”. Entre eles o ex-capitão e deputado federal Jair Bolsonaro (então no PSL), os ex-governadores Geraldo Alckmin (PSDB) e Ciro Gomes (PDT), até mesmo o ex-ministro e ex-prefeito Fernando Haddad (PT) e a deputada federal Manuela D’Avila (PCdoB). No livro, Villas Bôas fala en passant dessa ambiciosa iniciativa, que fez dele uma espécie de eminência parda da nossa frágil república: “Com vistas nas eleições, convidei os candidatos para conversar. Essa rodada de entrevistas aconteceu antes que as candidaturas fossem oficializadas. Nelas eu expunha temas relativos à importância de reconstrução de um projeto nacional”, justifica (p. 216). O tema do “projeto nacional” aparece outras vezes no livro, sempre sem ultrapassar um esboço vago e obscuro.

“Discorria sobre a Amazônia, os problemas e as soluções cabíveis e, por fim, tratava da defesa, das Forças Armadas e de questões importantes que lhes dizem respeito”, continua. “Minha expectativa de que esses assuntos fossem discutidos por ocasião dos debates eleitorais acabaram frustradas”. Isso porque, lamenta, nos “poucos debates que ocorreram esses temas não foram provocados pelas emissoras”. Eis que o comandante do Exército tomava para si a discussão de uma agenda sensível que não era de sua alçada, a começar do “projeto nacional”, sendo que as questões relativas às Forças Armadas e à defesa nacional competem ao Ministério da Defesa e à Presidência da República, ou ainda ao Congresso Nacional. Portanto, os tuítes disparados contra a soberania do STF não foram um ponto fora da curva, mas uma espécie de radicalização da trajetória intervencionista de Villas Bôas.

(Nos próximos dias será publicada a continuação desta resenha. Acompanhe)

(*) Pedro Estevam da Rocha Pomar é Jornalista, autor dos livros Massacre na Lapa e A Democracia Intolerante, doutor em ciências da comunicação. Militante do PT-SP.


[i] Que aumentaram o texto em 30%, segundo relato do organizador (p. 14).

 

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