Intervenção militar: o golpismo e as vidas que importam

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

Por Alexandre Arns Gonzales e Suelen Aires Gonçalves*

 

A intervenção militar no estado do Rio de Janeiro, anunciada no dia 16 de fevereiro de 2018, tem, pelo menos, dois significados. Um deles (a) é a expectativa que o governo golpista possuía com relação à votação do projeto de antirreforma da Previdência para 19 de fevereiro: uma derrota iminente. Nesse sentido, a apresentação do Decreto de Intervenção Federal e sua consequente aprovação pelo Congresso Nacional até esta terça-feira (20) serve como uma medida para, também, adquirir tempo para seguir negociando apoio à reforma. A intervenção federal retira da pauta pública o ataque sobre a Previdência e coloca em evidência a pauta sobre segurança pública no país. Que é um problema real. Pode-se supor que o alívio de pressão sobre a agenda legislativa da Previdência deve facilitar as negociações do golpista na aprovação do projeto.

Este aspecto nem precisa ser tratado como hipótese porque foi elemento trazido pelo próprio Michel Temer, em sua declaração, no próprio dia 16 de fevereiro. Algo que por si só já poderia tornar o próprio Decreto inconstitucional por desvio de funcionalidade. Afinal, a intervenção, conforme foi fartamente reiterado na mídia, visa “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública”, conforme o capítulo VI da Constituição. Em tese, enquanto durar a intervenção se adia a votação de qualquer emenda constitucional no Congresso e o motivo disso é pelo fato, hipotético, do Governo Federal não se assanhar sobre os demais entes da Federação, coagindo as bancadas federais com intervenções.

Contudo, este exercício reflexivo de apontar as séries de ilegalidades da camarilha plantada na Praça dos Poderes, em Brasília, é menos por uma expectativa que estas denúncias tenham capacidade de constrangê-los. Pelo contrário, servem, justamente, às forças políticas do campo da legalidade e da democracia não perderem a noção do ritmo do avanço do golpismo, acabando por assumir com naturalização as exceções executadas desde 2016.

O outro significado (b) também reside na busca da reorientação da agenda do debate público nas vésperas de um possível pleito eleitoral. Não é de hoje que o noticiário tem se alimentado de um sensacionalismo penal para cativar audiência nos telejornais. Não é, tampouco, de se impressionar que a camarilha ajuntada na Esplanada lance mão de “soluções”, para responder ao sensacionalismo, que mirem a garantia da “ordem”, na sua concepção autoritária e conservadora de estabilidade.

Sobre a efetividade e o que significa uma operação militar nas comunidades no Rio de Janeiro e, por consequência, o próprio estabelecimento de uma intervenção federal com esse objetivo, convém assistir o potente comentário de Jacqueline Muniz, especialista em Segurança Pública da Universidade de Federal Fluminense.

Esta ação do governo golpista, em si, foi uma surpresa, tendo em vista que no final de 2017 as forças de segurança no estado do Rio, com a presença do Ministro da Defesa, realizaram projeções e desenharam ações para o ano de 2018, sendo que dentre elas não se considerava a própria intervenção. Então, sem aviso, o governo federal apresenta e anuncia a intervenção.

O que não surpreende é, novamente, a mobilização das casernas para as comunidades e morros, cujas operações são desprovidas de “transparência”, em articulação com as forças policiais dos estados. O que conseguiram as ocupações militares na Maré, por exemplo? Não se sabe, além de atender o sensacionalismo penal.

A intervenção federal coloca essas operações em outro nível, agora, com a indicação de um general quatro estrelas, Braga Netto, comandante Militar do Leste. Não tanto, segundo Dalmo Dallari, pela indicação do General em si, como o interventor na Secretaria de Segurança Pública, não é o elemento perturbador, “pois ele está sendo designado para uma atividade que poderia ser atribuída a qualquer cidadão na plenitude de seus direitos civis e políticos”. O alarmante é a definição, no Decreto de Intervenção, que “o cargo do interventor é de natureza militar”. Este aspecto – “natureza militar” – como também comentou Muniz, pode arrastar as questões tratadas pelo interventor, suas ações e operações frente a segurança pública do estado do Rio de Janeiro para o âmbito da Justiça Militar.

Ainda assim, apesar desse elemento perturbador, poderíamos, num outro esforço reflexivo, sincero, considerar que o movimento inesperado, por parte de Michel Temer, seria como uma ação afoita da cúpula golpista, numa tentativa de garantir melhores condições junto à opinião pública da classe média brasileira frente ao quadro da segurança pública. Nesse sentido, a intervenção, além de buscar a garantia de tempo para buscar apoio à reforma da Previdência, seria um, tipo, improviso de ação publicitária.  Esta é uma possibilidade de interpretação.

Outra interpretação possível, que também serve de caráter complementar à interpretação anterior, toma como ponto de partida um olhar para as figuras presentes na reunião que decidiu sobre essa intervenção. No dia 15 e, segundo um telejornal, durante toda a noite, o Ministro da Defesa, Raul Jungmann, e o Secretário-Geral da Presidência, Moreira Franco, o “Angorá”, reuniram-se para definir um plano de segurança junto às autoridades estaduais. O Angorá — aproveitando para fazer uma provocação – foi quem, segundo Brizola nas eleições de 1994, estimulou “o extermínio dos jovens pobres”, como ação de política de segurança quando foi governador do Rio de Janeiro de 1987 a 1991.

Em outras palavras, independente de ser uma decisão afoita, açodada ou não, o objetivo passa longe da resolução da crise da segurança pública de fato, mas da perpetuação da criminalização da pobreza, do extermínio da população periférica e negra dos grandes centros urbanos. Logo, assim como pouco importa para a camarilha do Temer a discussão da constitucionalidade do Decreto do dia 16 de fevereiro, tampouco importa os efeitos colaterais desta intervenção federal – que, agora, é uma intervenção militar em esteróides no Rio de Janeiro. A política de segurança do governo golpista busca definir quais vidas importam no país, umas em detrimento de outras.

A intervenção federal é uma excepcionalidade prevista na Constituição. O que lhe confere, entretanto, a esta situação excepcional um caráter de exceção é o fato de já nos encontrarmos em um estado de exceção, desde 2016. A intervenção federal-militar não pode ser tratada como um recurso constitucional, previsto na lei, portanto, justamente porque as instituições não estão funcionando bem como deveriam. Afinal, foram atacadas com o golpe de 2016.

Em um contexto de golpe, esta intervenção federal não pode ser tratada de maneira isolada. Não se trata de um momento excepcional de que demanda o uso de recursos excepcionais da Constituição para resolução de graves problemas na Federação. Trata-se de um momento de exceção do Estado Democrático de Direito, cujo uso do recurso tratado como excepcional na Constituição, com o interventor de “natureza militar”, é um risco de agravamento do Estado de exceção.

Medidas como esta não tratam, mas agravam o quadro de insegurança e violência que, por sua vez, resultará na demanda, por parte dos mesmos setores autoritários e conservadores, mais iniciativas desse caráter. Logo, o que se cria é um possível ciclo viciosos de insegurança e violência que, dependendo de como for conduzido, pode escalar para oportunidades de maior aprofundamento do Estado de exceção.

Por isso, as forças de oposição ao golpismo, sobretudo o Partido dos Trabalhadores (PT), não podem titubear quanto ao seus posicionamentos sobre este fato político. Apoiar e referendar esta iniciativa golpista, votando favoravelmente ao Decreto de Intervenção nesta segunda-feira (19/02) seria, além do equívoco político para o tema da segurança pública, agravar as próprias condições de resistência ao golpe.

Contudo, esse posicionamento deve vir, agora, conscientemente. Retomando o exemplo, a ocupação da Maré em 2014 e a ocupação do Alemão, em 2010, foram decisões sob o governo do PT. A crítica, portanto, à iniciativa da intervenção no Rio de Janeiro, deve ser tratada como um reconhecimento, por parte do PT, da ineficiência destas operações para resolução dos problemas de segurança pública.

Por fim, como contraponto a essa política de flerte com o sensacionalismo penal, deve-se apresentar medidas que incidam sobre o núcleo do problema das questões de segurança. Medidas que incidam sobre a configuração do sistema carcerário; integração das forças policiais e forças de segurança em um escopo nacional; reorganização de estruturas de carreira nas forças policiais; a descriminalização de drogas, colocando um fim na política de “guerra às drogas”; no que diz respeito a garantia de direitos humanos, para a comunidade e para o próprio corpo policial, a desmilitarização da polícia; entre outras medidas.

 

* Alexandre Arns Gonzales é doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB); Suelen Aires Gonçalves é doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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