Por Valter Pomar (*)
Ricardo Kotscho
A UOL divulgou, neste 30 de outubro de 2020, as 14h31, mais um artigo de Ricardo Kotscho, jornalista da velha guarda, amigo de Lula e integrante de seu governo.
No artigo, o colunista do UOL não deixa pedra sobre pedra. Começa assim: “A bordo de velhos nomes e velhas propostas, o Partido dos Trabalhadores chega às urnas em 2020 com remotas chances de eleger prefeitos nas principais capitais do país, como mostram todas as pesquisas”.
Como diz Kotscho, não dá para brigar com os fatos. Mas se os “fatos” são “todas as pesquisas”, então o jornalista poderia ser mais condescendente, pois não dá para considerar como “remotas” as chances de Marília Arraes e de Luiziane Lins, para ficar nestes dois exemplos. Ou será que, na geografia do companheiro, Fortaleza e Recife não estão entre as principais capitais do país? Ou será que, ao falar de eleger “prefeitos”, ele estaria desconsiderando as prefeitas??
O problema é que o mau humor contamina tudo. Pois não há outra explicação possível para frases como “aos 40 anos, o PT envelheceu e está sem rumo, apenas tentando acertar as contas com o passado e glorificar as conquistas dos seus períodos de governo”. Afinal, há dois anos, em 28 de outubro de 2018, disputamos o segundo turno das eleições presidenciais. E, não fosse a fraude, teríamos vencido. O que teria acontecido de novo, em 2019 e 2020, para que Kotscho chegasse à conclusão de que, agora, o PT já era???
Segundo o próprio, ele chegou “a essa triste conclusão assistindo terça-feira ao programa produzido pelo partido e exibido nas redes sociais para celebrar os 75 anos de Lula, seu fundador e ainda a principal liderança”. Tá vendo? Para bom entendedor, não precisa de meia palavra, basta um vídeo.
Como não sei que vídeo é esse, e nem me passa pela cabeça procurar depois do que disse Kotscho, vou acreditar na sua descrição. Vamos lá: “Fora os filhos e netos do ex-presidente, a maioria dos personagens que desfilaram na tela está na minha faixa etária, ou seja, não têm muito futuro pela frente. Quem não ficou careca está de cabelos brancos ou grisalhos. A maior prova de que o discurso petista já não empolga é que, ao longo de mais de uma hora de programa, em nenhum momento a audiência chegou a 400 pessoas assistindo no YouTube. Apenas 400 pessoas! Dá para acreditar?”
Então tá: a prova de que o discurso petista “já não empolga” é que a audiência de um vídeo no YouTube não passou de 400 pessoas. Como não me passa pela cabeça a hipótese de que o vídeo ou o roteiro seja ruim, de que a divulgação possa ter sido mal feita, ou que dezenas de milhares de possíveis espectadores estivessem ocupados fazendo coisa melhor (campanha eleitoral, por exemplo, ou trabalhando, quem sabe). E como também não me passa pela cabeça falar de outros vídeos, com audiências bem maiores; nem falar de pesquisas de opinião que indicam índices altos de preferência pelo Partido; vou me limitar a dizer o seguinte: assim é, se assim lhe parece.
No texto, Kotscho também fala que “já na eleição municipal de 2016, o PT perdeu dois terços das suas prefeituras e só elegeu o prefeito de uma capital, Rio Branco, no Acre”. É verdade. Como é verdade, também, que em 2018 elegemos governadores em alguns estados, uma das maiores bancadas do congresso e quase elegemos o presidente da República. Qual a conclusão que se deve tirar daí? Que tem algo de errado, com certeza. Que algo precisa ser feito, com urgência? Certamente. Mais do que isso? Aí dependeria de outro tipo de análise, que fosse muito além de resultados eleitorais.
Kotscho até passa a impressão de que poderia fazer este outro tipo de análise, quando afirma que “não houve uma renovação de lideranças e de propostas, nada mudou no comando do partido, que só teve dois presidentes nos últimos muitos anos”. Mas ele não vai além desse tipo de lugar comum, que em outros países serviu de passaporte para uma certa esquerda ir para a direita (o Palocci, por exemplo, tentou renovar nossas propostas, no sentido oposto ao que precisamos). Nosso problema não é “renovar”, em abstrato; nosso problema é reconectar com a classe e deslocar para a esquerda a linha política.
Mas para que análise, se bastam afirmações bombásticas? Por exemplo: “Para um partido que venceu quatro eleições presidenciais consecutivas neste século, não basta colocar a culpa na mídia, na Lava Jato e nos adversários para justificar a derrocada. Algo se rompeu na relação do PT com o seu eleitorado”.
Longe de mim querer transformar os inimigos em justificativa. Afinal, se são inimigos, estão no seu papel quando querem nos atrapalhar e destruir. Mas daí a minimizar sua influência, acho um pouco forçado. Por exemplo: a extrema direita conquistou uma parte do eleitorado popular. O PT ainda não conseguiu enfrentar isto adequadamente. E só conseguirá, quando se dispuser a enfrentar isto no terreno da vida cotidiana, no território, nas lutas, nas batalhas culturais, não apenas no momento das eleições. Ou seja: o problema não é que algo tenha se rompido “na relação do PT com o seu eleitorado”. O problema está exatamente em olhar nossa base social apenas ou principalmente como “eleitorado”. Infelizmente, o tipo de análise de Kotscho faz parte do problema, não da solução.
Sem falar, é claro, na mistura de lugares comuns com certa desinformação: “Os tempos mudaram e as receitas usadas nas antigas campanhas eleitorais também envelheceram, já não empolgam mais”. Os tempos sempre mudam. Mas em tempos de Bolsonaro e seu discurso vintage-cavernícola, acho um pouco arriscado falar que “receitas antigas não empolgam mais”.
Além disso, o que será que pensa a respeito das críticas de Kotscho o exército de pessoas que está voluntariamente envolvida nas campanhas do PT em todo o país? Segundo o jornalista, “foi-se o tempo dos grandes comícios (e não só por conta da pandemia) e da militância aguerrida, que fazia campanha de porta em porta. Ninguém mais vende a bicicleta, empresta o carro ou falta no emprego para fazer campanha pelo PT”. Tirando o exagero, certamente, o PT de hoje é menos militante do que o PT dos anos 1980, assim como o Kotscho de hoje também não é o mesmo daquela época. Mas esta é a realidade só ou principalmente do PT? O resto da esquerda passaria muito bem, obrigado, e o problema estaria apenas no PT?? Ou estamos diante de um fenômeno que, com as devidas mediações, atinge o conjunto da classe trabalhadora e de suas organizações? E que só será superado quando houver uma nova onda de grandes lutas sociais?
Kotscho responde, ainda que indiretamente, estas questões acima, da seguinte forma: “Como vimos em 2018, as eleições agora se decidem nos algoritmos da internet, e não mais nos programas na TV; nos memes e nas fake news, e não mais nas propostas de governo; apenas nas altas rodas do poder econômico e não em assembleias de operários e estudantes”.
Olha, em 2018 eu vi uma coisa um pouco diferente da vista por Kotscho. Sem a Globo, sem o oligopólio da mídia, as fake news, os memes e os algoritmos não teriam influenciado como influenciaram. E, que eu saiba, as altas rodas do poder econômico elegeram seu candidato, mas o povo que frequenta assembleias e presta atenção em programas levou nossa candidatura ao segundo turno. Não dá para apagar 45% dos votos!!! E nem dá para enfrentar o poder de cima, sem organizar o bom e velho poder de baixo. Aliás, a direita sabe disso e não abandonou nem por um milímetro o trabalho de organização popular, ao velho estilo. Tem zap, mas tem culto…
A questão, acho, é que o mau humor de Kotscho contamina tudo. Olha só como ele termina seu desabafo: “Numa democracia em que os partidos perderam a importância e o respeito, com a multiplicação de siglas de aluguel que têm donos, assim como as novas igrejas, que brotam por toda parte, a sociedade civil cedeu lugar às corporações militares e religiosas, abrindo espaço para as milícias e o crime organizado, cada vez mais influentes. Esta é a nova realidade da política brasileira, gostemos dela ou não”.
Perguntinha: o Brasil tem uns 130 anos de República. Quando foi mesmo que tivemos democracia para valer? Quando foi mesmo que os partidos em geral tiveram importância? Em algum momento destes 130 anos deixamos de ter siglas de aluguel? As igrejas só começaram a influenciar a política agora? E a tutela militar, as milícias e o crime começaram a existir só em 2020???
Nada disto é uma “nova” realidade; no fundamental, trata-se da volta dos que não foram. E que não foram, ao menos em parte, porque, quando houve a oportunidade, alguns tentaram fazer omelete sem quebrar os ovos. Kotscho deveria saber disso muito bem. Mas, claro, os iludidos de ontem são os mais assustados de hoje. Além do que, é sempre mais fácil falar mal do PT de agora, do que criticar os erros cometidos quando tudo parecia bem. Infelizmente, quem age assim, ao invés de ajudar a corrigir os erros e achar soluções, só contribui para aumentar a confusão. E o mau humor.
(*) Valter Pomar é professor da UFABC e membro do Diretório Nacional do PT
(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.
Segue o texto na íntegra
Aos 40 anos, PT chega às eleições envelhecido, sem votos e sem rumo
A bordo de velhos nomes e velhas propostas, o Partido dos Trabalhadores chega às urnas em 2020 com remotas chances de eleger prefeitos nas principais capitais do país, como mostram todas as pesquisas. Não dá para brigar com os fatos. Aos 40 anos, o PT envelheceu e está sem rumo, apenas tentando acertar as contas com o passado e glorificar as conquistas dos seus períodos de governo.
Cheguei a essa triste conclusão assistindo terça-feira ao programa produzido pelo partido e exibido nas redes sociais para celebrar os 75 anos de Lula, seu fundador e ainda a principal liderança. Fora os filhos e netos do ex-presidente, a maioria dos personagens que desfilaram na tela está na minha faixa etária, ou seja, não têm muito futuro pela frente. Quem não ficou careca está de cabelos brancos ou grisalhos.
A maior prova de que o discurso petista já não empolga é que, ao longo de mais de uma hora de programa, em nenhum momento a audiência chegou a 400 pessoas assistindo no YouTube. Apenas 400 pessoas! Dá para acreditar? Já na eleição municipal de 2016, o PT perdeu dois terços das suas prefeituras e só elegeu o prefeito de uma capital, Rio Branco, no Acre. Não houve uma renovação de lideranças e de propostas, nada mudou no comando do partido, que só teve dois presidentes nos últimos muitos anos, e hoje lidera as pesquisas apenas em Vitória, no Espírito Santo.
Para um partido que venceu quatro eleições presidenciais consecutivas neste século, não basta colocar a culpa na mídia, na Lava Jato e nos adversários para justificar a derrocada. Algo se rompeu na relação do PT com o seu eleitorado. Os tempos mudaram e as receitas usadas nas antigas campanhas eleitorais também envelheceram, já não empolgam mais. Foi-se o tempo dos grandes comícios (e não só por conta da pandemia) e da militância aguerrida, que fazia campanha de porta em porta, carregando suas bandeiras com a estrela por todos as esquinas e grotões do país. Ninguém mais vende a bicicleta, empresta o carro ou falta no emprego para fazer campanha pelo PT.
Como vimos em 2018, as eleições agora se decidem nos algoritmos da internet, e não mais nos programas na TV; nos memes e nas fake news, e não mais nas propostas de governo; apenas nas altas rodas do poder econômico e não em assembleias de operários e estudantes. Numa democracia em que os partidos perderam a importância e o respeito, com a multiplicação de siglas de aluguel que têm donos, assim como as novas igrejas, que brotam por toda parte, a sociedade civil cedeu lugar às corporações militares e religiosas, abrindo espaço para as milícias e o crime organizado, cada vez mais influentes. Esta é a nova realidade da política brasileira, gostemos dela ou não.
Vida que segue.
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