Por Valter Pomar (*)
Recentemente, dois amigos me creditaram uma frase que eu realmente disse, a saber: “a burguesia não nos faltará”.
Entretanto, dado o surto de patriótica coragem retórica que acometeu muita gente nos últimos dias, acho bom esclarecer o que eu quis/quero dizer com esta frase.
A saber: a burguesia é como o escorpião da fábula. É da natureza dela ser antisoberania, antidemocracia, antipovo etc e tal.
Por isso, toda vez que um setor da esquerda deposita ilusões na acomodação com a burguesia, é questão de tempo para que a decepção prevaleça.
Foi o que aconteceu, por exemplo, nas últimas semanas, com aqueles que porventura tinham ilusões no menino de ouro do Banco Central, no jovem promissor da Câmara dos Deputados e também no gringo acusado de predador de jovens.
Portanto, quando eu digo que a burguesia não nos faltará, não quero dizer que ela virá em nosso socorro, muito antes pelo contrário. Quero apenas dizer que só mantém/manterá a ilusão quem quer/quiser, pois os fatos apontam/apontarão noutro sentido.
Um bom exemplo disso é o jornal O Estado de São Paulo. Seu editorial intitulado “Coisa de mafiosos” fez sucesso nas listas da esquerda brasileira.
A respeito, ler aqui: https://valterpomar.blogspot.com/2025/07/o-estadao-e-os-mafiosos.html
Pois bem: o mesmo Estadão publicou, no dia 21 de julho, outro editorial, que reproduzo ao final.
Nele, Bolsonaro aparece de passagem. O alvo é Lula e nossa política externa, particularmente os BRICS. Como se pode ver, a burguesia não nos falta, desmoralizando e decepcionando quem leva a sério pontuais declarações em favor da soberania, da democracia, do povo e do desenvolvimento.
A posição do Estadão, é importante dizer, é a posição majoritária no grande capital brasileiro.
A saber: “despolitizar o conflito”, “negociar uma saída”, leia-se “ceder aos gringos”. Mas sempre mantendo as aparências.
Aliás, do ponto de vista do empresariado gourmet, o grande defeito da extrema-direita versão cavernícola é que ella não sabe manter as aparências. Os cavernícolas são explicitamente submissos e demonstram descaradamente todos os outros defeitos possíveis e inimagináveis.
Agora, numa coisa o Estadão está próximo da verdade: se o Brasil quer ser protagonista no novo arranjo global, então precisamos ter mais capacidade militar, precisamos de mais poderio econômico, precisamos ter soberania alimentar, energética, produtiva, comunicacional, digital e armada.
Sem isso, será impossível derrotar a aliança entre as direitas, a classe dominante e o imperialismo.
Erram aqueles que subestimam essa aliança.
Como disse uma vez um camarada chinẽs: “(…) vistos na sua essência, dum ponto de vista de futuro, estrategicamente, o imperialismo e todos os reacionários devem ser considerados tal como são — tigres de papel. É nessa base que devemos assentar o nosso pensamento estratégico. Por outro lado, porém, eles são também tigres vivos, tigres de ferro, verdadeiros tigres capazes de devorar as pessoas. É nessa base que devemos assentar o nosso pensamento tático. (…)”
Na esquerda brasileira tem gente que as vezes parece operar ao contrário: cautela na estratégia, valentia na tática.
Para que esta valentia não se esgote na correta retórica, é prudente iniciar imediatamente a construção das premissas políticas e materiais da nossa soberania. Sem tais premissas, o tigre não será de papel.
E para o caso de alguém não ter entendido o ponto, desenho: pode ser divertido ver um canalha dar um tiro no pé. Mas se o tal canalha tiver um tambor cheio de balas, deixe para rir outra hora e use imediatamente seu bodoque.
(*) Valter Pomar é professor e membro do diretório nacional do PT
ABAIXO EDITORIAL DO ESTADÃO DE 21 DE JULHO
Sairá cara a decisão de Lula de alinhar o Brasil à China e à Rússia a pretexto de fortalecer o Brics contra os EUA de Trump. Mas há uma saída para evitar o prejuízo: abandonar o bloco
Muito ainda pode ser dito sobre a irresponsabilidade de Jair Bolsonaro, que, para se livrar da cadeia e continuar com seu projeto golpista, fez lobby nos EUA para que o presidente Donald Trump viesse em seu socorro, ao custo de inestimável prejuízo para a economia brasileira, ameaçada por um tarifaço americano. Só por isso, o nome de Bolsonaro já está gravado no panteão dos maiores traidores da pátria que este país já viu.
Contudo, à medida que novas punições são anunciadas pelo governo americano contra o Brasil, torna-se óbvio que o objetivo de Trump vai muito além de ajudar Bolsonaro – de resto um sujeito absolutamente insignificante para os projetos de poder do presidente americano. Está cando cada vez mais evidente que o crescente ataque de Trump ao Brasil é, na verdade, parte de uma ofensiva contra o Brics – bloco que, a despeito das fantasias lulopetistas sobre alternativas de desenvolvimento, se presta exclusivamente a projetar o poder da China em contraste com os EUA e o Ocidente, tendo como subproduto o respaldo ao imperialismo da Rússia de Vladimir Putin.
Isso ficou claro quando Mark Rutte, secretário-geral da Otan, a aliança militar ocidental ainda liderada pelos EUA, avisou que os países do Brics podem sofrer sanções por parte do governo americano caso continuem a fazer negócios com a Rússia. A intenção de Washington é obrigar os parceiros russos no Brics a pressionar Moscou a aceitar uma trégua na sua guerra contra a Ucrânia, como deseja Trump.
Como se sabe, Trump ameaça castigar a Rússia com tarifas de 100% caso Putin não interrompa seus ataques à Ucrânia. A medida incluiria sanções secundárias contra países que fazem negócios com a Rússia. A ideia aqui é sufocar economicamente a Rússia, que conseguiu contornar as sanções aplicadas por EUA e Europa graças à manutenção do comércio com os parceiros do Brics.
Ademais, a ofensiva contra o Brics insere-se no objetivo maior de Trump que é minar o poder da China. Para isso, escolheu o Brasil como saco de pancadas – um alvo fácil, dada a sua limitada capacidade de reagir e de arregimentar influência contra os EUA.
Tudo isso só evidencia a imprudência do presidente Lula da Silva de alinhar o Brasil à China e à Rússia a pretexto de fortalecer o Brics contra os EUA de Trump. A única forma de poupar o Brasil dos efeitos deletérios dessa decisão seria abandonar esse bloco, que se presta unicamente aos projetos chineses e russos, sem qualquer ganho concreto e de longo prazo para o País.
Com isso, o Brasil retornaria ao terreno seguro do não alinhamento, onde ficam os países com vocação para se relacionar com o mundo inteiro, independentemente de orientação ideológica. Essa sempre foi a tradição brasileira, um patrimônio que seria especialmente relevante no momento em que o mundo se reorganiza não mais em relações multilaterais, e sim em blocos de poder.
Não é prudente, portanto, que o Brasil escolha um desses blocos, dado que o País não tem nem capacidade militar nem poderio econômico para ser protagonista no novo arranjo global. Mas Lula nunca foi prudente. Sempre que pode, movido por suas fantasias megalomaníacas e por suas convicções terceiro-mundistas, põe o Brasil em situações potencialmente danosas – sobretudo quando apoia autocracias só porque estas se dispõem a desafiar os EUA.
Em seu discurso na mais recente cúpula do Brics, Lula reforçou seu antiamericanismo e sua vassalagem à China ao tornar a defender o fim do uso do dólar como moeda comercial global –como se a adoção da moeda americana para esse fim fosse fruto da vontade de alguém, e não resultado de condições geopolíticas e de mercado.
Ademais, deveria causar vergonha a assinatura do Brasil no comunicado final da cúpula, que reservou nada menos que oito parágrafos aos atuais conflitos no Oriente Médio e míseros dois à guerra na Ucrânia – um dos quais, pasme o leitor, dedicado a criticar a Ucrânia por “deliberadamente” atacar áreas e infraestrutura civis na Rússia, sem qualquer menção à brutal e sistemática agressão russa aos ucranianos, inclusive com bombardeios contra civis.
Assim, russos e chineses devem ter saído muito satisfeitos desse rega-bofe antiamericano. Já o Brasil, como se vê agora, ficou com a conta.