Por Wladimir Pomar (*)
É comum ver ativistas políticos sugerindo que se dê importância à organização das classes populares. Mas também é comum que se atenham apenas aos sindicatos e partidos, como instrumentos organizativos. O que nos leva a sugerir, diante das experiências de lutas econômicas, sociais e políticas dessas organizações, assim como das reações fascistas, durante o século 20 e nas duas primeiras décadas do século 21, que talvez seja necessário aprofundar um pouco mais o tema.
Talvez seja conveniente, por exemplo, discutir a compreensão generalizada de que a luta social inclui a mobilização independente da classe trabalhadora em torno de seus objetivos imediatos, enquanto a luta política inclui a conquista eleitoral de espaços no aparato estatal (governos e parlamentos) para a ação dos partidos populares. O que nos leva a constatar que a disputa ideológica, de conquista de corações e mentes, pareça algo secundário, que não faz parte daqueles dois tipos de luta.
Ou seja, embora a disputa ideológica seja um dos aspectos mais importantes da ação persistente do protofascismo, que hoje assedia todo o arco da esquerda social e política mais ferozmente do que antes, há correntes democráticas e populares que não sentem a necessidade de defender as ideias e os conceitos acumulados nos dois últimos séculos de lutas para o desenvolvimento histórico.
Por exemplo, há os que não tomam a divisão social como o motor da luta de classes. Também há os que não consideram o socialismo como etapa histórica indispensável para o desenvolvimento econômico e social da atualidade, circunscrevendo-o apenas à transição do capitalismo para uma sociedade sem propriedade privada e sem trabalho assalariado.
Tal fenômeno ideológico se torna ainda mais evidente quando as classes dominantes se utilizam de bordões contra fenômenos que são obras suas e foram, ou continuam sendo, empregados contra seus adversários de classe. Por exemplo, vale a pena lembrar dos marajás de Collor, da corrupção da Operação Lava Jato, assim como da atual velha política de Bolsonaro. Todos são figuras reais presentes na sociedade brasileira, criações factuais das classes dominantes, engordadas por elas e jogadas no colo dos partidos democráticos e populares como se fossem malefícios gerados e patrocinados por tais partidos. “Transferência” que nem sempre é respondida e combatida de forma convincente.
Isso acontece porque há quadros e militantes dos partidos populares que se envolveram, de uma forma ou outra, nas teias dessas criações. Depois, porque tais partidos ainda têm dificuldade em reconhecer tal envolvimento, e não investigam, não julgam e não penalizam os envolvidos, inclusive através do rompimento incisivo e público com eles. Basta examinar o exemplo de Palocci, no PT.
Além disso, tais partidos não possuem instrumentos informativos e propagandísticos de massa que façam a disputa ideológica e política com a grande mídia. E a predominância das atividades institucionais faz com que seus laços organizacionais com as camadas populares se tornem ausentes e/ou pouco efetivos. Desse modo, há uma inação ideológica de contingentes numerosos da militância desses partidos.
Isso pode ser constatado confrontando as experiências das eleições diretas de 1989 e 2018. Em ambas, a questão central residia em conquistar o coração e a mente de contingentes consideráveis dos trabalhadores e da população excluída do ensino, do trabalho e das condições civilizadas de vida. O que demandava conhecer a dinâmica real de vida e de luta desses contingentes populacionais.
Em 1989 havia um número considerável de militantes, além de Lula, dedicado à luta ideológica e política na disputa pelo coração e mente dos trabalhadores e excluídos. Só desse modo grandes contingentes populacionais romperam com os mitos não só dos “marajás”, mas de outras invenções da máquina de propaganda dominante, e levaram a disputa eleitoral ao “quase lá” e a uma vitória política.
Nos anos seguintes, porém, a sedimentação e fortalecimento desses laços ideológicos, políticos e organizacionais com os grandes contingentes da base social brasileira não ocorreu como deveria. Grande parte das direções socialistas mergulhou prioritariamente nas atividades institucionais e abandonou alguns conceitos de perspectiva futura, como é o caso do socialismo, por incrível que isso possa parecer. Considerou que tal meta estava fora do tempo e do lugar. Só servia para eriçar as burguesias (tanto a supostamente aliada quanto a inimiga) com um conceito “radical” e de pouca compreensão das classes populares.
Com isso, ao invés de travar a luta ideológica em torno da única formação econômica e social que pode levar o Brasil a avançar verdadeiramente no desenvolvimento econômico e no atendimento das demandas sociais da maior parte da população, deixou que ele fosse desnaturado e apresentado, a exemplo do que faz o bolsonarismo, como algo avesso ao pretendido pelos trabalhadores.
O socialismo, como formação histórica de transição (portanto, de cooperação e luta entre a propriedade privada e a propriedade social), deverá apresentar diferentes formas, a exemplo não só das fracassadas experiências “socialdemocratas” europeias e “estatistas” soviética e do leste-europeu, mas também das até agora exitosas “socialistas de mercado”. Outras formas se farão presentes, inevitavelmente, à medida que o desenvolvimento capitalista se mostrar incapaz de combinar desenvolvimento científico e tecnológico com mais emprego e pleno atendimento das necessidades sociais.
Isso porque o socialismo é tanto decorrência do desenvolvimento capitalista, acirrando ao máximo a contradição entre a força de trabalho e os donos da propriedade privada, quanto da correlação real de forças entre a classe capitalista e a classe trabalhadora em cada país. Ao desconsiderarem isso, os que retiram o socialismo de seu horizonte acabam deixando os trabalhadores sem uma opção diferente da dolorosa existência de proprietários de força de trabalho.
Isso, apesar das necessidades históricas terem levado o Estado brasileiro a criar empresas estatais como instrumentos de desenvolvimento industrial e econômico soberano, algo considerado tendência socialista, que realmente é, por grande parte dos teóricos burgueses. Objetivamente, as estatais podem, além de expressar o caráter nacional de sua existência, fortalecer os trabalhadores no confronto com a burguesia, principalmente se seus dirigentes aprenderem a gerenciar sua concorrência com a propriedade privada do capital através da democratização interna.
Tudo isso demanda uma atividade ideológica, política e organizativa mais intensa e profunda nas classes sociais da base da sociedade, de modo a conhecer como elas vivem, lutam e sobrevivem. Quem não pesquisa a realidade delas é apenas um palpiteiro porque tal conhecimento preliminar só é possível obter vivenciando e pesquisando o dia a dia de existência e de luta das comunidades trabalhadoras e excluídas.
Sem tal conhecimento não é possível realizar com essas classes a discussão ideológica e política sobre seus inimigos e seus aliados, assim como sobre os objetivos imediatos e futuros da luta pela sobrevivência, nem o debate organizativo e das formas de luta empregadas na autodefesa e na disputa por novas condições de vida e de trabalho.
Entre as organizações de esquerda que são alvo predileto atual da guerra bolsonarista, o PT talvez seja aquele que tem as melhores condições para dar um salto de qualidade. Afinal, é o que tem uma militância mais numerosa, com uma experiência razoável acumulada como partido de massa. Tal salto, porém, só será possível se for capaz de fazer uma análise crítica efetiva dos erros e desvios cometidos em seus anos de existência. O que inclui o acerto de contas com os fenômenos, até hoje não examinados, nem esclarecidos, de militantes envolvidos em atividades de corrupção.
É ilusão supor que o PT pode recuperar presença organizada e influência ideológica em amplos setores do povo se não acertar as contas com esse fenômeno que se tornou um dos principais aspectos da estratégia liquidacionista da direita em geral. É evidente que as ilusões quanto à evolução nacional, democrática, civilizada e progressista da burguesia cabocla também levaram grande parte a crer, erroneamente, que a burguesia cabocla poderia ser uma aliada firme na luta pelo desenvolvimento nacional e pela superação da pobreza. Tal ilusão deixou o partido despreparado para enfrentar as mudanças de estratégias e de táticas dessa burguesia.
Por outro lado, para piorar, parte da direção petista também considerou que seria possível praticar o “caixa dois”, comum na ação cotidiana dessa classe e de seus representantes políticos, sem danos para o partido e para sua ação de massa. Afinal, como alguns supunham, “se todos fazem, por que não podemos fazer?”, esquecendo que essa era a porta pela qual alguns poderiam ingressar em ações corruptas mais efetivas, e através da qual o partido poderia ser atacado de forma mais destrutiva.
Foi desse modo que o PT se viu engolfado por mudanças estratégicas, táticas e organizativas que o colocaram como alvo fácil de ataques de “delações premiadas” de gente considerada “dirigente ilibada” ou “aliada de alta confiança”. A vida está mostrando que a classe dominante brasileira não deixou de ser corrompida e golpista, não sendo capaz de aceitar um governo comprometido em melhorar a vida do povo, em ampliar as liberdades democráticas, em afirmar a soberania nacional e em construir a integração regional.
Olhando em perspectiva, para derrotar a atual ofensiva reacionária, o PT terá que fazer uma crítica contundente a seu abandono dos grandes contingentes da base da sociedade brasileira e de suas ilusões sobre a reciclagem democrática das classes dominantes. Terá que retomar as lições dos anos 1980, quando participava ativamente da organização e das lutas da base social popular.
Além disso, terá que fazer com que sua estratégia eleitoral contribua para modificar a correlação das forças políticas no poder de Estado, assim como a correlação das forças econômicas no mercado, ampliando a participação das empresas estatais como fatores de desenvolvimento industrial do país, de acicate concorrencial frente às empresas privadas, estrangeiras e nacionais, e de melhoria das condições de vida da maioria da população brasileira.
(*) Wladimir Pomar é escritor e analista político