Por Valter Pomar (*)
Marcos Nobre
Marcos Nobre, para quem não lembra, é um dos impulsionadores de uma proposta de “prévias populares” para escolher o candidato da esquerda… em 2018.
Pode-se ler algo a respeito aqui:
https://valterpomar.blogspot.com/2016/11/sobre-o-quero-previas.html
Recentemente, Marcos Nobre concedeu uma entrevista assaz curiosa, que pode ser lida aqui:
A primeira pergunta feita a Nobre pelo entrevistador é: “O quanto o avanço do bolsonarismo nas polícias militares estaduais pode desestabilizar ainda mais a democracia brasileira?”
Marcos Nobre responde que o marco da interferência policial foi “o motim da polícia no Ceará em fevereiro de 2020”.
E complementa dizendo que “a gente conseguia ver ali o que aconteceu, por exemplo, na Bolívia, em que o golpe de estado não foi dado pelas Forças Armadas, mas pelas forças de segurança em geral, liderado por policiais”.
De fato, as polícias são um enorme problema, um problema que não existia desta forma em 1964 e que precisa ser enfrentado. Mas é preciso lembrar sempre que há uma relação direta e indireta entre as polícias militares e as forças armadas. Na Bolívia como aqui, não existe golpe de Estado sem a participação das forças armadas.
Isto posto, concordo com Marcos Nobre quando ele diz que “nós teremos um ano de 2022 ainda mais violento” e que “temos que ficar muito atentos a isso”. Atentos sim, mas também e principalmente mobilizados e organizados para enfrentar esta radicalização.
A segunda pergunta do entrevistador é a seguinte: “Quando se fala em 2022, se diz que Bolsonaro tem um plano a e um b, um é ganhar a eleição e o outro é o golpe, a ruptura da democracia. Você acha que o golpe está no horizonte e o quanto do apoio das Forças Armadas e das policiais militares pode fortalecer essa quebra institucional?”
Marcos Nobre responde que “caso Bolsonaro perca a eleição, ele vai tentar um golpe”. Isto é fato, mas isto não é uma questão para 2022, isto é uma questão para 2021. Ou seja: a simples possibilidade que possa perder as eleições está fazendo o bolsonarismo operar uma dupla tática.
Que dupla tática é esta?
De um lado Bolsonaro faz política tradicional, digamos assim.
Por outro lado, prossegue movimentações claramente golpistas. Para usar uma linguagem militar, está “testando as linhas do adversário”, inclusive para ver quem resiste e como. E, também, para ver quem aceita participar desta tática e quem resiste. Este teste não será feito em 2022, o teste está sendo feito aqui e agora.
Marcos Nobre tem razão quando lembra que Bolsonaro vai tentar, mas se “vai ter força pra conseguir, é outra coisa”. Mas a imagem que ele pinta – “se Bolsonaro der o passo e ver que não tem apoio, ele se retira como mártir” – não necessariamente é um assunto para 2022. O teste está sendo feito aqui e agora, na frente de todo o mundo.
A terceira pergunta feita a Marcos Nobre é a seguinte: “Como você vê o campo político das esquerdas nesse ano pré-eleitoral?”
Neste ponto, a resposta de Nobre é bastante curiosa. Não sei se isso é produto da edição da entrevista, mas como só dispomos do material publicado, é com base nele que vou fazer um comentário.
Nobre “vê dois polos na esquerda: o PSOL e o PT”, que estariam “tentando puxar para dois lados diferentes”.
Que existem posições diferentes na esquerda, disto não tenho dúvida. Que estas posições sejam duas e que sejam polarizadas pelo PSOL e PT, aí já não tenho esta certeza.
Como é público, o PSOL está dividido em torno de apoiar a candidatura Lula ou lançar candidatura própria. Paradoxalmente, o tema PSOL & Lula não comparece na análise de Marcos, pelo menos não naquilo que foi publicado.
Portanto, ao menos por enquanto não é em torno da candidatura presidencial que existe uma polarização entre PSOL e PT.
Nobre acha que a polarização existe em torno do tema do impeachment. Segundo ele, seria o PSOL quem está “puxando o impeachment porque está tentando fazer com que a correlação de forças do campo da esquerda vá para a esquerda. Do lado do PT, o que o ex-presidente Lula está tentando fazer é lançar pontes para a direita não bolsonarista”.
Por partes: de fato existem no PT setores que colocam o tema do impeachment em segundo plano. Assim como também existem no PT setores que são contrários a mobilização de rua neste momento de pandemia. Mas basta observar o que ocorreu no dia 29 de maio para constatar que a imensa maioria do PT entrou com tudo na manifestação, com o estímulo oficial da direção nacional do partido e com a presença pessoal da presidenta Gleisi Hoffmann.
Portanto, dizer que o PSOL está “puxando o impeachment porque está tentando fazer com que a correlação de forças do campo da esquerda vá para a esquerda” é verdade em relação ao PSOL, mas não se pode dizer que a posição do PT esteja no polo oposto a esta.
Onde estaria a polarização então? Uma pista: “Do lado do PT, o que o ex-presidente Lula está tentando fazer é lançar pontes para a direita não bolsonarista”.
Cá entre nós, do lado do PSOL há quem busque fazer o mesmo, como se viu na eleição recente da presidência da Câmara dos Deputados, quando um setor importante do PSOL defendia apoiar Baleia Rossi. Mas é óbvio que no PT existe uma maioria favorável a “lançar pontes para a direita não bolsonarista”.
O curioso é que sobre esta questão, se entendi bem, Marcos Nobre arrasta a asa para esta posição, ao afirmar que “o que é paradoxal nessa situação é que para que o impeachment seja viável é preciso uma aliança gigantesca, de forças de todas as ordens, exceto as forças bolsonaristas, e quem tá puxando o impeachment está puxando tudo para a esquerda”.
Resumo: as esquerdas estão mesmo divididas em relação a tática frente a Bolsonaro e, também, em relação a tática frente a direita não Bolsonarista. Mas esta divisão, ao menos neste momento, não pode ser reduzida a duas posições polarizadas entre PT e PSOL.
A respeito da tática frente a direita não bolsonarista, existem pelo menos três posições: 1/uma posição expressa principalmente por um setor do PCdoB, que preferiria uma candidatura de centro-direita apoiada pela esquerda; 2/outra posição expressa por setores do PT, que preferem que apresentemos uma candidatura fantasiada de centro-esquerda, para tentar conseguir o apoio tanto da direita quanto da esquerda; e 3/existe uma terceira posição, que defende uma candidatura de esquerda e da esquerda.
Em relação a tática frente a Bolsonaro, existem também várias posições diferentes, entre as quais destaco os que apostam na mobilização de massa agora e os que preferem adiar a mobilização. Embora o argumento público dos que defendem adiar seja a pandemia, no fundo existe a crença de que o melhor momento para o embate final com o cavernícola não é agora, mas sim 2022. E esta crença tem motivações diferentes: há os que acham que ele estaria derretendo, há os que acham que o impeachment agora beneficiaria a terceira via, há os que acreditam no poder taumatúrgico das eleições e assim por diante.
Enfim, a síntese proposta por Marcos Nobre simplifica demasiado a situação.
A pergunta seguinte da entrevista é sobre “as forças da direita não bolsonarista”.
É deste digamos campo político – que vai da direita tradicional, passa pelo cirismo e chega a setores do PSB e PDT – que pode surgir um “fato novo” nos próximos dias, semanas e meses.
Vai surgir? Espero que não.
Pode surgir? Pode. Tentar evitar isto é uma preocupação digamos correta dos que defendem que o PT apoie a chamada “frente ampla”. Mas como sabemos, o inferno está cheio de boas intenções.
Marcos Nobre trata da questão assim: “Não interessa a Bolsonaro que apareça esse candidato da chamada terceira via, que nada tem a ver mesmo com terceira via, é simplesmente a candidatura da direita não bolsonarista. Os dois polos (PT e Bolsonaro) estão lutando para que ela não exista”.
O entrevistador pergunta então “o quanto o antipetismo é um capital que pode gerar votos para Bolsonaro? É o antipetismo que explica esses 25 a 30% de apoio ao presidente?”
Nobre registra ser um equívoco “pensar que foi o antipetismo que decidiu a eleição de 2018”. Destaca que Bolsonaro tem hoje um apoio enorme, suficiente “para impedir que aconteça o impeachment e para colocá-lo no segundo turno de 2022”. E conclui o raciocínio dizendo que “quando Bolsonaro chegar em outubro de 2022, quando chegar na campanha eleitoral, a situação vai estar diferente. Ah, você pode dizer que tudo pode mudar. Pode, se tiver apagão, se tiver uma terceira ou quarta onda, pode ser. Mas vai ter vacina? Vai. A economia está melhorando. Assim, esperar que 2022 vá ser pior do que 2021 é uma aposta errada do ponto de vista das condições gerais. Ou seja, provavelmente, Bolsonaro está no piso hoje. E é isso o que temos de considerar. Ou seja, é um candidato fortíssimo”.
Claro que num cenário tão instável, tudo pode mudar. Mas sobre isto penso algo parecido com Nobre: a tendência principal é que a situação melhore para Bolsonaro. Mas esta é a tendência principal apenas e tão somente se 1/“jogarmos parados” e se 2/nos movimentarmos, mas adotando a linha política errada.
E para jogar “certo”, um bom começo é buscar a base social de certas posturas políticas.
Por exemplo: Marcos Nobre afirma que uma parte do eleitorado “é um núcleo de autoritarismo que está fincado na democracia no Brasil. Aí você me pergunta, de onde apareceu isso? Uma ditadura, ela demora muito pra morrer. Não é porque a ditadura acabou em 1985 que morreu o autoritarismo no Brasil. Ele continua. Como nos Estados Unidos. Trump foi derrotado eleitoralmente, mas isso não significa que o trumpismo desapareceu”.
Este raciocínio é parte da verdade, mas não é toda verdade.
Primeiro, as raízes do “autoritarismo” no Brasil são muito mais profundas do que a ditadura militar, têm relação com nosso passado colonial, oligárquico, escravista e – de maneira mais geral – de brutal desigualdade. O “autoritarismo” está entranhado no comportamento da classe dominante e dos setores médios no Brasil, pois é a garantia de que a desigualdade prossiga.
É por isso que o “autoritarismo” é tanto um mecanismo de mudança conservadora, quanto de manutenção da ordem. Democracia real, não formal, popular, abre as portas para a igualdade e nada mais perigoso para as elites do que a igualdade.
Segundo, dizer que uma “ditadura demora para morrer” não é a melhor forma de explicar o que ocorreu na transição conservadora.
Ali houve um pacto entre os apoiadores da ditadura e a burguesia liberal (com o apoio de parte da esquerda), pacto que envolvia não tocar em um fio de cabelo dos golpistas, dos criminosos fardados, dos torturadores etc. E, mais grave ainda, o pacto incluiu a constitucionalização da tutela militar.
Portanto, não se trata de um problema do passado, cujos efeitos vão diminuindo com o tempo; se trata de uma parte constituinte da ordem constitucional de 1988.
Terceiro, há o fator neoliberalismo, que exacerba as tendências autoritárias, inclusive nas camadas populares. E não se trata apenas do espaço aberto para as teologias da prosperidade. É preciso lembrar que o conservadorismo pentecostal é também – para certas camadas do povo – uma maneira de se proteger cultural e socialmente de mudanças enxergadas como profundas e ameaçadoras.
Quarto e por último, há que lembrar sempre por quais motivos a extrema-direita ganha musculatura e se converte em polo exatamente no período 2016-2018. A direita tradicional, neoliberal, gourmet é a grande responsável por isto. Mas a penetração desta direita nas camadas populares é, num certo sentido, responsabilidade nossa, primeiro por abandonarmos territórios, segundo por carência de disputa político-ideológica e terceiro por não enfrentar a extrema-direita como se deve.
Enfim, a extrema direita são várias e suas bases populares são algo bem mais complexo do que os “viúvos da ditadura”. Claro, quem deseja uma aliança com a direita tradicional não tem motivo para ir muito fundo no tema.
Sigamos adiante.
Como Nobre, eu entendo que um apoio de 1/3 neste momento é um indício de que Bolsonaro pode chegar e pode chegar forte em 2022. Mas não concordo com o passo seguinte que ele dá, a saber: “Tem os tais 70%, mas não vai adiantar nada, são 70% que brigam entre si e estão espalhados, então com 30% você consegue ganhar uma eleição”.
Em primeiro lugar, a derrota de Bolsonaro não se dará na matemática das urnas de um distante 2022, a derrota de Bolsonaro tem que ser construída agora, na política das ruas deste ano de 2021. Em segundo lugar, não necessariamente é preciso de 70% para derrotar 30%. Há várias combinações possíveis e a matemática não é boa conselheira política. O que me parece certo é que o país vai polarizar cada vez mais e a polarização não será entre centro e direita, mas entre esquerda e direita.
O tema preocupa o entrevistador, para quem “existe o risco” do antipetismo ser decisivo. Para Nobre, o risco existe, mas não tem como “medir exatamente isso”, além do que “democracia é assim”.
A resposta de Marcos Nobre chama a atenção pela digamos timidez. Digo timidez pois o fato presente é o seguinte: o petismo é a única força capaz de derrotar o bolsonarismo. Foi assim em 2018 e é assim em 2022.
Mas não se trata apenas de timidez. Pois logo em seguida, Marcos Nobre esclarece que “precisa ter uma candidatura que represente esse eleitorado nem, nem. Que nem apoia e que nem rejeita Bolsonaro. E que se organize em torno dessa candidatura da direita não bolsonarista. É preciso que isso aconteça e é preciso que essa candidatura seja uma candidatura competitiva. Do contrário, não será possível fazer o que é essencial nesse momento: um pacto de todas as forças democráticas. Um pacto que não é eleitoral, mas tem um efeito eleitoral. O efeito eleitoral é muito simples. Qualquer que seja a candidatura que chegar ao segundo turno contra Bolsonaro, ela terá que ter o apoio de todas as demais forças do campo democrático. Esse acordo não só ainda não foi feito, como ele nem começou a ser feito e já estamos a menos de 18 meses da eleição. É muito pouco tempo para organizar um acordo como esse. Nós temos pressa para isso”.
Noutras palavras e se entendi o que está dito na entrevista, ao menos tal como foi publicada: Nobre quer que apareça uma terceira via, uma candidatura dos “nem nem”. Ele defende esta tese, segundo entendi, como um pressuposto para – num segundo turno – tornar possível uma aliança dos 70% contra os 30%.
Não sei bem o que dizer deste tipo de raciocínio, que me lembra a tese das “prévias” que citei no início deste texto. Parece perfeito, exceto por não ter muita base na realidade. Pois na realidade, uma candidatura da “terceira via” teria hoje que atrair o eleitorado da esquerda. E cá entre nós, a única maneira de tentar fazer isso é do jeito desastroso e execrável que faz Ciro Gomes. O que resultaria no oposto da aliança pretendida como final feliz da história.
O raciocínio acima tem relação com uma das diferenças que Nobre aponta existir, entre 2018 e 2022. Segundo ele, agora a “eleição se organiza entre quem apoia esse governo e quem é contra. Como a eleição é em dois turnos, pode ser que quem seja contra acabe achando que Bolsonaro é menos pior do que a candidatura que chegar. Que é com isso que Bolsonaro passa de mais de 30 para 51%, e é possível que isso aconteça”.
Notem que este raciocínio o arrasta para ser favorável a uma candidatura de terceira via. Raciocínio que é completado com a hipótese de que Bolsonaro vai conseguir, em 2022, ocupar ao mesmo tempo a posição de candidato a reeleição e de candidato outsider.
O raciocínio é muito interessante e merece ser explorado, mas o filé mesmo é a conclusão: “ Sobra quem? Sobra Ciro Gomes”.
Segundo Nobre, “Ciro só consegue uma pequena parte da esquerda, ele precisa ser o candidato da direita não bosonarista para poder ser competitivo. E a direita bolsonarista precisa de Ciro Gomes se quiser ter um candidato competitivo. A gente pode discutir outra coisa muito relevante, que é o tipo de aliança que Ciro permitiria nos palanques estaduais porque é isso que está em causa”.
Claro que podemos discutir as alianças estaduais (Nobre fala várias coisas a respeito), mas muito mais “relevante” é constatar o seguinte: uma candidatura que para tentar afirmar-se precisa atacar a esquerda, não é o melhor caminho para derrotar o bolsonarismo.
Isso não parece preocupar Marcos Nobre, talvez porque ele pense não ser possível derrotar Bolsonaro pela esquerda. Ele chega a dizer o seguinte: “Mobilização de rua é sempre muito importante, sempre. Isso não tem dúvida. A questão é: qual é a natureza? O que Bolsonaro está tentando fazer? Ele está tentando caracterizar as manifestações contra ele como manifestações da esquerda. Se ele conseguir fazer isso, ele neutralizou as manifestações. E a esquerda não está ajudando porque, se o chamamento é Fora Bolsonaro, e cada um vai com a bandeira que quiser lá, vai com o auxílio emergencial, vai com pedido de prisão, vai com CPI e etc, não pode ser uma manifestação só da esquerda. A direita não bolsonarista precisa se sentir acolhida nas manifestações”.
A esquerda “não esta ajudando”?????
Não sei com que base empírica Marcos Nobre afirma que “muita gente que foi às manifestações não é de esquerda e se sentiu agredida pela esquerda dizer que aquela é uma manifestação da esquerda”.
É óbvio que a defesa do Fora Bolsonaro deveria ser “de todo mundo”, mas será de todo mundo que queira assumir esta palavra de ordem, que queira se manifestar nesse sentido. E isto não depende só nem principalmente da esquerda.
Claro que o ideal é que a campanha Fora Bolsonaro se converta em algo como a Campanha das Diretas, mas o que impede isto não é o caráter das manifestações; o que impede isto em primeiro lugar é a falta de manifestações (sem pressão popular ninguém se mexe) e em segundo lugar a resistência da direita tradicional (que não defende o fora Bolsonaro).
E porque motivo a direita tradicional não defende o fora Bolsonaro? Entre outros motivos pela identidade programática entre a direita tradicional e a direita bolsonarista. Tema que não comparece na entrevista, mais preocupada em criticar a esquerda.
Chegando neste ponto, o entrevistador pergunta a Marcos Nobre o seguinte: “Você pintou um quadro muito duro para o futuro. Vencendo, Bolsonaro fecha o país. Perdendo, mobiliza militares e milicianos para um golpe de estado. Como evitar esses dois cenários?”
Marcos Nobre responde que “a primeira coisa é espalhar essa consciência que nós estamos em emergência democrática, ter clareza sobre isso. Parar com esse negócio que as instituições estão funcionando, que está tudo certo e que Bolsonaro está contido”.
Que estamos em estado de emergência, estou de acordo. Mas a emergência ocorre, entre outros motivos porque as instituições estão funcionando a serviço de um projeto antinacional, antipopular e antidemocrático . Neste sentido, as instituições não “estão em colapso”, elas estão em grande medida capturadas (e/ou neutralizadas) por forças políticas que defendem um projeto que nos condena.
Seja como for, o fato da situação ser de “emergência” deveria nos levar a defender uma tática radical capaz de derrotar a extrema direita. Mas Marcos Nobre vai noutro sentido. Ele diz que “só existe uma saída. Uma Frente Ampla. Frente Ampla não significa ter uma candidatura única em 2022. Significa ter um acordo entre todas as forças democráticas de que quem chegar ao segundo turno contra Bolsonaro terá o apoio do resto”.
Cada um dá o nome que deseja para as coisas. Mas há um limite dado pelo bom senso, quando nos colocamos a escolher certos apelidos. Por exemplo: chamar de “frente ampla” um voto contra no segundo turno é excessivo. Assim, ou bem se muda o nome da coisa – e se fala de “acordo de segundo turno para derrotar Bolsonaro” – ou bem se trata a coisa por completo.
Tratar por completo é por exemplo discutir o seguinte: existem bases programáticas para uma frente ampla entre a esquerda e a direita tradicional? E a resposta é: haveria bases, se as partes estivessem dispostas a renunciar a suas atuais posições programáticas. Por exemplo: em relação a independência do BC, em relação ao teto de gastos, em relação as privatizações, em relação às contrarreformas e assim por diante.
Se renunciasse a suas posições acerca destas e de outras questões, o que a esquerda poderia fazer se chegasse ao governo?
Seja como for, estas questões não comparecem na entrevista de Marcos Nobre, entrevista que gira em torno da política estrito senso; nenhuma palavra é dita acerca dos programas de fundo e das bases sociais das diferentes forças políticas. Claro que este raciocínio é útil para quem deseja defender uma frente ampla em nome de defender a “democracia”, devidamente desidratada e esterilizada. Mas é um raciocínio insuficiente para quem deseja não apenas derrotar Bolsonaro, mas derrotar o conjunto da obra golpista. E uma das características curiosas do momento que estamos vivendo é exatamente este: a crise é tão profunda, a direita foi tão longe, que não temos como escapar de também sermos radicais.
Aliás, se não formos radicais agora, daqui há alguns anos alguém vai dizer em relação ao bolsonarismo algo parecido ao que Marcos Nobre diz, nesta entrevista, em relação a herança da ditadura militar.
Nobre termina a entrevista dizendo que “nós temos pouco tempo”. Nisso estou totalmente de acordo. A situação é muito grave e muito complexa. Os inimigos são muitos, não apenas a pessoa de Bolsonaro. E o inimigo principal adota ao mesmo tempo duas táticas: a tradicional e a neofascista.
Frente a tantas dificuldades, não podemos nos limitar a contrapor uma tática exclusiva ou principalmente eleitoral, quase que totalmente dependente de um “homem só”, crente na sinceridade dos golpistas arrependidos e pré-agendada para 2022.
Por tudo isso, as manifestações de 29 de maio e de 19 de junho têm uma importância transcendental. Ao contrário do que diz Marcos Nobre, o fato da esquerda ocupar as ruas não vai “neutralizar” as manifestações. Pelo contrário: é pela esquerda e nas ruas que vamos construir as condições para derrotar Bolsonaro, seu governo e suas políticas. Que os crentes na Frente Ampla e em Ciro Gomes não percebam isto, é parte do show.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT
Segue a íntegra da entrevista, tal como foi publicada:
“Bolsonaro é um candidato fortíssimo e as instituições estão em colapso”, alerta Marcos Nobre
Laércio Portela, em 06/06/2021, 15:00.
Marcos Nobre é professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, autor do livro Imobilismo em Movimento: da abertura democrática ao governo Lula. Crédito: Divulgação
Para aqueles que acham que o presidente Jair Bolsonaro está enfraquecido e chegará cambaleante à eleição presidencial de 2022, uma conversa com o cientista social e professor da Unicamp Marcos Nobre serve como um choque de realidade. Para Nobre, o apoio a Bolsonaro só deve crescer daqui até a disputa eleitoral com a ampliação da vacinação e a melhora gradual da economia.
O professor, autor de livros que tentam jogar luz sobre o intrincado sistema político brasileiro, acredita que se Bolsonaro for reeleito ele vai fechar o país, seguindo os modelos autoritários dos chefes de governo de Polônia, Hungria e Filipinas. Se perder, vai mobilizar o apoio de parte das Forças Armadas, das polícias estaduais e das milícias para um golpe.
Para esses remédios amargos, ele receita a Frente Ampla, mas sem candidatura única. Uma frente que, no segundo turno, una as esquerdas e a direita não bolsonarista contra o presidente. “Ninguém consegue dar golpe contra 70% da população se esses 70% estiverem com o mesmo intuito de preservar a democracia. Por isso é que é difícil. Mas é o que precisa ser feito.”
Nobre vê as esquerdas divididas. O Psol quer o impeachment para mudar a correlação de forças. O PT quer manter a atual correlação de forças para confrontar Bolsonaro com Lula em 2022. Não haveria espaço nas eleições para um candidato outsider como Huck porque o presidente já ocupa esse lugar de anti-sistema. E Ciro Gomes? Bem, esse está atacando Lula para se cacifar como o candidato da direita não bolsonarista, mas “depois vai ter que sentar e conversar”.
O quanto o avanço do bolsonarismo nas polícias militares estaduais pode desestabilizar ainda mais a democracia brasileira?
O grande marco é o motim da polícia no Ceará em fevereiro de 2020. Esse motim foi uma coisa assustadora no sentido de que a gente conseguia ver ali o que aconteceu, por exemplo, na Bolívia, em que o golpe de estado não foi dado pelas Forças Armadas, mas pelas forças de segurança em geral, liderado por policiais. Esse é um precedente que deve nos deixar alertas. Aquele motim só não se reproduziu em outros locais do Brasil porque teve a pandemia. E na pandemia vimos também um desregramento das ações da polícia, tanto que o STF teve que intervir e dizer que não pode fazer operação em favela no Rio de Janeiro. O STF ter que entrar para regular uma coisa dessa significa que estamos numa situação muito difícil. É o prenúncio de que nós teremos um ano de 2022 ainda mais violento. Temos que ficar muito atentos a isso.
Quando se fala em 2022, se diz que Bolsonaro tem um plano a e um b, um é ganhar a eleição e o outro é o golpe, a ruptura da democracia. Você acha que o golpe está no horizonte e o quanto do apoio das Forças Armadas e das policiais militares pode fortalecer essa quebra institucional?
Caso Bolsonaro perca a eleição, ele vai tentar um golpe. Eu não tenho a menor dúvida. Se ele vai ter força pra conseguir, é outra coisa. Vai tentar com partes das Forças Armadas e parte das forças de segurança e quem mais ele conseguir armar porque ele está distribuindo armamento à vontade e sabemos que esse tipo de líder autoritário produz também grupos paramilitares e o que hoje é milícia do crime pode facilmente se tornar milícia política porque isso já aconteceu na história. Nos Estados Unidos, Trump tentou o golpe, mas não teve o apoio das Forças Armadas. Lá, as polícias nem entraram em consideração. E, ainda assim, morreu gente. Senadores e deputados foram ameaçados fisicamente. Aquilo lá é brincadeira de criança para tudo que vai acontecer aqui. Agora, se Bolsonaro der o passo e ver que não tem apoio, ele se retira como mártir. Mas que ele vai tentar o golpe, eu não tenho a menor dúvida.
Caso Bolsonaro perca a eleição, ele vai tentar um golpe. Eu não tenho a menor dúvida. Se ele vai ter força pra conseguir, é outra coisa. Vai tentar com partes das Forças Armadas e parte das forças de segurança e quem mais ele conseguir armar.
Como você vê o campo político das esquerdas nesse ano pré-eleitoral?
Eu vejo na esquerda dois polos que estão tentando puxar para dois lados diferentes. O Psol é justamente quem está puxando o impeachment porque está tentando fazer com que a correlação de forças do campo da esquerda vá para a esquerda. Do lado do PT, o que o ex-presidente Lula está tentando fazer é lançar pontes para a direita não bolsonarista. O que é paradoxal nessa situação é que para que o impeachment seja viável é preciso uma aliança gigantesca, de forças de todas as ordens, exceto as forças bolsonaristas, e quem tá puxando o impeachment está puxando tudo para a esquerda.
E as forças da direita não bolsonarista?
Claro, existem forças na direita não bolsonarista que defendem o impeachment, mas também dentro da direita não bolsonarista estão tentando puxar essa direita para longe do Bolsonaro, mas não necessariamente pro lado do PT. Tem também um bocado de partido, como o PCdoB, PSB, PDT, um monte de outras forças, que podem ir pra um lado ou pra outro, dependendo da circunstância.
O PT quer manter a atual correlação de forças?
O PT não quer que essa correlação de forças mude, inclusive, porque para a estratégia do PT interessa que não exista uma candidatura da direita não bolsonarista que seja competitiva. Como não interessa também ao atual presidente. Não interessa a Bolsonaro que apareça esse candidato da chamada terceira via, que nada tem a ver mesmo com terceira via, é simplesmente a candidatura da direita não bolsonarista. Os dois polos (PT e Bolsonaro) estão lutando para que ela não exista.
O quanto o antipetismo é um capital que pode gerar votos para Bolsonaro? É o antipetismo que explica esses 25 a 30% de apoio ao presidente?
Pensar que foi o antipetismo que decidiu a eleição de 2018 é uma equívoco que nos impede de entender o que realmente aconteceu. Se a gente achar isso, vamos continuar repetindo o mesmo erro de 2018. Primeiro, vamos pensar o que é essa base de apoio ao Bolsonaro que você mencionou. Sabemos que ele tem alguma coisa entre 1/4 e 1/3 do eleitorado. É enorme. Suficiente para duas coisas: para impedir que aconteça o impeachment e para colocá-lo no segundo turno de 2022, que é o que ele quer.
Esses apoiadores têm o mesmo perfil?
Vamos pegar um número como o de 30% só para a gente ter uma ideia, porque Bolsonaro está no pior momento dele, quando Bolsonaro chegar em outubro de 2022, quando chegar na campanha eleitoral, a situação vai estar diferente. Ah, você pode dizer que tudo pode mudar. Pode, se tiver apagão, se tiver uma terceira ou quarta onda, pode ser. Mas vai ter vacina? Vai. A economia está melhorando. Assim, esperar que 2022 vá ser pior do que 2021 é uma aposta errada do ponto de vista das condições gerais. Ou seja, provavelmente, Bolsonaro está no piso hoje. E é isso o que temos de considerar. Ou seja, é um candidato fortíssimo. É isso que eu quero dizer.
Muita gente não pensa assim.
Tem muita gente que acha que Bolsonaro está acabado porque vive enfiado em sua bolha e sua bolha é toda anti-Bolsonaro. Esquece que o mundo não é a sua bolha. Então, vamos imaginar que é 30%.
Como se dividem os apoiadores de Bolsonaro?
Os exercícios estatísticos que são feitos em torno dessas pesquisas mostram que algum coisa em torno de metade dessa apoio, algo como 15% desse eleitorado, é realmente autoritário. É um núcleo de autoritarismo que está fincado na democracia no Brasil. Aí você me pergunta, de onde apareceu isso? Uma ditadura, ela demora muito pra morrer. Não é porque a ditadura acabou em 1985 que morreu o autoritarismo no Brasil. Ele continua. Como nos Estados Unidos. Trump foi derrotado eleitoralmente, mas isso não significa que o trumpismo desapareceu. Pelo contrário. No Brasil, essa cultura autoritária estava dispersa, votava em candidatos meio folclóricos, como Enéas, mas, com Bolsonaro, houve uma convergência. Houve a organização dessas forças que estavam dispersas. Isso é muito novo e isso não desaparecerá mesmo que Bolsonaro seja derrotado eleitoralmente em 2022.
No Brasil, essa cultura autoritária estava dispersa, votava em candidatos meio folclóricos, como Enéas, mas, com Bolsonaro, houve uma convergência. Houve a organização dessas forças que estavam dispersas. Isso é muito novo e isso não desaparecerá mesmo que Bolsonaro seja derrotado eleitoralmente em 2022.
E os outros 15%?
Os outros 15% dá mais ou menos 7% e 8% a divisão. Se você fosse fazer uma cebola, seria a camada mais perto do centro e a camada externa. Que são chamados os entusiastas, que não é o cerne duro autoritário, e tem também os simpatizantes. É assim que se compõe, pelo menos como eu interpreto as pesquisas, esse apoio a Bolsonaro.
É possível reduzir o apoio a Bolsonaro aos 15% de eleitores autoritários?
Difícil, porque, nas pesquisas qualitativas, esses outros 15% que não são radicalmente autoritários, que não são antidemocráticos, não veem outra candidatura que os represente. Então, é muito difícil você tirar isso de Bolsonaro. O que é que sobra? Tem os tais 70%, mas não vai adiantar nada, são 70% que brigam entre si e estão espalhados, então com 30% você consegue ganhar uma eleição. É muita gente.
O que mudou desde a eleição de Bolsonaro?
Antes, as pesquisas dividiam politicamente o país em três terços quase exatos. Apoio a Bolsonaro, rejeição a Bolsonaro, nem apoio nem rejeição. Esse pessoal que eu chamo de nem, nem. O que que mudou? Mudou que a rejeição a Bolsonaro aumentou muito. Foi bater em quase 60%. Também Bolsonaro perdeu algum apoio, mas esse apoio que ele perdeu não foi pra rejeição, foi pro regular, pro nem, nem, nem apoia nem rejeita. Esse eleitorado que está entre a rejeição e a aprovação a Bolsonaro é o eleitorado que vai decidir a eleição. O antipetismo vai ser decisivo nessa hora? Não sei te dizer porque a gente não tem como medir exatamente isso.
Mas existe esse risco.
Existe. Você fala, bom, mas democracia é assim. Existe um risco. No caso não é um risco normal. É a ameaça de acabar a democracia. Porque se o Bolsonaro se reeleger, a democracia no Brasil acabou, ele vai seguir o mesmo roteiro da Polônia, da Hungria, da Turquia, das Filipinas, que, no segundo mandato, fecharam o regime. Ele já está dando todas as indicações. Tá fazendo todas as coisas. A gente pode dar vários exemplos.
O que fazer para evitar isso?
Precisa ter uma candidatura que represente esse eleitorado nem, nem. Que nem apoia e que nem rejeita Bolsonaro. E que se organize em torno dessa candidatura da direita não bolsonarista. É preciso que isso aconteça e é preciso que essa candidatura seja uma candidatura competitiva. Do contrário, não será possível fazer o que é essencial nesse momento: um pacto de todas as forças democráticas. Um pacto que não é eleitoral, mas tem um efeito eleitoral. O efeito eleitoral é muito simples. Qualquer que seja a candidatura que chegar ao segundo turno contra Bolsonaro, ela terá que ter o apoio de todas as demais forças do campo democrático. Esse acordo não só ainda não foi feito, como ele nem começou a ser feito e já estamos a menos de 18 meses da eleição. É muito pouco tempo para organizar um acordo como esse. Nós temos pressa para isso.
Há alguma semelhança entre a eleição de 2018 e a de 2022?
A eleição de 2022 vai ser completamente diferente da de 2018 porque 2018 não tinha um presidente candidato à reeleição. Isso abre a eleição porque ela deixa de se organizar entre quem está no governo e todo mundo que é contra. É assim que se organiza uma eleição normalmente. Principalmente uma eleição prevista pra ser uma reeleição, em que você está julgando o primeiro mandato da pessoa. Abriu-se em 2018 a possibilidade para outsiders. Agora, tem duas coisas que considero decisivas. A primeira é que existe um presidente que é candidato à reeleição. Então a eleição se organiza entre quem apoia esse governo e quem é contra. Como a eleição é em dois turnos, pode ser que quem seja contra acabe achando que Bolsonaro é menos pior do que a candidatura que chegar. Que é com isso que Bolsonaro passa de mais de 30 para 51%, e é possível que isso aconteça.
Você falava que não há lugar para um candidato outsider.
A segunda coisa que é muito importante é que o lugar do outsider já está ocupado e ele está ocupado pelo presidente. Se fosse juntar esses 30% de apoio, não necessariamente é um 30% de apoio antipetista, é um 30% de apoio anti-sistema. Pode ser anti-sistema porque é contra a democracia ou porque é contra tudo que está aí, mas não necessariamente contra a democracia, que são aqueles 15%.
O lugar do outsider já está ocupado e ele está ocupado pelo presidente. Se fosse juntar esses 30% de apoio, não necessariamente é um 30% de apoio antipetista, é um 30% de apoio anti-sistema
Um presidente da República anti-sistema?
Temos uma situação paradoxal, porque, supostamente, Bolsonaro dirige o sistema, mas ele é contra o sistema. Ele tem que atacar o sistema que ele próprio dirige. Por isso que ele se desresponsabiliza o tempo inteiro. E diz que não tem culpa, que a culpa é dos outros, que não é dele. Mas só que ele é presidente, mas é anti-sistema, então ele tem que ser o presidente e atacar o sistema ao mesmo tempo. Por isso, não tem lugar pra outsider. O lugar do outsider já está ocupado. E está ocupado pelo presidente.
E figuras como Huck e Moro?
Não tem ninguém que vai dizer que é anti-sistema e vai conseguir tirar o Bolsonaro, não existe isso. Quem vai representar a direta não bolosnarista? Huck? Não vai. Que seria um outsider, esse realmente nunca teve mandato, porque tanto Collor quanto Bolsonaro são outsider de dentro. Collor era governador e o outro tinha 30 anos de mandato, certo? Huck não tem a menor chance. Nenhuma. Zero. E eu acho que ele não vai ser candidato. Moro? Igual. Moro vai tirar voto de quem? Vai se apresentar como? Em que partido? Sem nenhuma condição. Tem o PSDB que está lá em briga interna, se vai ou não lançar candidato, se vai ser o Dória ou o Eduardo Leite. Só o fato disso estar em discussão, já significa que será um candidato que não será competitivo. Isso pra mim é muito evidente. Sobra quem? Sobra Ciro Gomes.
Ciro que está constantemente atacando Lula.
Ele está atacando Lula e o PT porque ele quer ter credenciais anti-petistas para poder representar a direita anti-bolonarista. Quer dizer, a esquerda está ocupada, uma grande parte dela, Ciro só consegue uma pequena parte da esquerda, ele precisa ser o candidato da direita não bosonarista para poder ser competitivo. E a direita bolsonarista precisa de Ciro Gomes se quiser ter um candidato competitivo. A gente pode discutir outra coisa muito relevante, que é o tipo de aliança que Ciro permitiria nos palanques estaduais porque é isso que está em causa. A eleição, ao mesmo tempo, está super adiantada em termos de organização e está atrasada por causa dos palanques estaduais. Essa matemática está muito complicada, esse arranjo de alinhar a candidatura presidencial com as candidaturas nos estados.
O quanto é importante ter a rua mobilizada e ocupada para a disputa de 2022 e para colocar obstáculos ao fechamento do país, a um golpe?
Mobilização de rua é sempre muito importante, sempre. Isso não tem dúvida. A questão é: qual é a natureza? O que Bolsonaro está tentando fazer? Ele está tentando caracterizar as manifestações contra ele como manifestações da esquerda. Se ele conseguir fazer isso, ele neutralizou as manifestações. E a esquerda não está ajudando porque, se o chamamento é Fora Bolsonaro, e cada um vai com a bandeira que quiser lá, vai com o auxílio emergencial, vai com pedido de prisão, vai com CPI e etc, não pode ser uma manifestação só da esquerda. A direita não bolsonarista precisa se sentir acolhida nas manifestações. Se você for olhar bem, muita gente que foi às manifestações não é de esquerda e se sentiu agredida pela esquerda dizer que aquela é uma manifestação da esquerda.
A esquerda não é dona do Fora Bolsonaro?
Fora Bolsonaro é de todo mundo. Essa é que tem que ser a posição política razoável se você quer de fato derrotar Bolsonaro. Não importa em quem você vai votar desde que você não vote em Bolsonaro. As manifestações vão ter esse caráter? Se tiverem, elas não só são importantes, como toda manifestação é, como elas serão muito bem sucedidas.
Você pintou um quadro muito duro para o futuro. Vencendo, Bolsonaro fecha o país. Perdendo, mobiliza militares e milicianos para um golpe de estado. Como evitar esses dois cenários?
A primeira coisa é espalhar essa consciência que nós estamos em emergência democrática, ter clareza sobre isso. Parar com esse negócio que as instituições estão funcionando, que está tudo certo e que Bolsonaro está contido. Tomar esse tipo de atitude não é só cegueira é, no limite, irresponsável. Porque não é essa a situação, objetivamente. Você pode achar que está funcionando ou que não está funcionando. Nem é essa a questão. Acho que as instituições estão em colapso. Não é que o hospital não está funcionando, é que tem tanta gente que ele não consegue funcionar de um jeito razoável, né?
O que fazer?
Bom, só existe uma saída. Uma Frente Ampla. Frente Ampla não significa ter uma candidatura única em 2022. Significa ter um acordo entre todas as forças democráticas de que quem chegar ao segundo turno contra Bolsonaro terá o apoio do resto. Esse acordo precisa ser construído e precisa ser construído já. Nós estamos já atrasados na construção desse acordo. Por que? Porque a gente não pode arriscar perder tudo. Ai alguém diz, o meu candidato ganha do Bolsonaro fácil. E eu pergunto: quem te garante isso?
O cenário eleitoral é assim complicado?
Vamos lá. Desde que foi instituída a reeleição, quantos presidentes e presidentas perderam uma reeleição? Zero. Isso te diz alguma coisa? Que a presidência tem um poder danado e você não deve brincar com isso. Se você não vai brincar com a democracia, diz o seguinte: eu quero Frente Ampla. Frente ampla não significa que todo mundo se abraça, que todo mundo se beija, que acha que está tudo legal e tal. Significa só o seguinte: ‘olha, tem uma faixa aqui na frente dizendo democracia e quem estiver atrás, cada um, leva sua candidatura, cada um leva sua bandeira, mas na hora de enfrentar a candidatura antidemocrática vai estar todo mundo junto’. Isso que a gente tem que fazer. É fácil? Não é fácil, você acabou de dizer que Ciro está atacando o Lula o tempo inteiro, certo, porque ele quer se viabilizar como candidato da direita não bolsonarista, mas depois que ele se viabilizar, se ele se viabilizar, vai ter que sentar e conversar.
Desde que foi instituída a reeleição, quantos presidente e presidentas perderam uma reeleição? Zero. Isso te diz alguma coisa? Que a presidência tem um poder danado e você não deve brincar com isso.
No caso de vitória, essa Frente Ampla conseguiria barrar os impulsos golpistas de Bolsonaro?
Ninguém dá golpe contra 70% da população. É só isso o que eu quero dizer. Ninguém consegue dar golpe contra 70% da população se esses 70% tiverem com o mesmo intuito de preservar a democracia. Por isso é que é difícil. Mas é o que precisa ser feito.
E ainda tem os palanques estaduais no meio do caminho.
Isso. O que eu vejo de dificuldade são justamente esses palanques estaduais. Eu vejo aí que tem duas forças que serão centrais, os fiéis da balança. Tanto o PSB, portanto Pernambuco é central em qualquer coisa que se fale no Brasil, quanto o PSD, presidido pelo Kassab. Esses dois partidos vão ser chave para as coalizões. Veja a situação do deputado Túlio Gadelha (PDT). Que é o sintoma mais claro. Pra onde vai o PSB, vai com Ciro ou vai com Lula? É isso o que ele está perguntando na verdade quando tá dizendo: ‘Ciro você está atacando o Lula pelo que?’ A situação de Pernambuco é que está em causa ali.
E nos outros estados?
Se a gente for olhar o ACM Neto, por exemplo, nós vamos olhar que já teve um acordo para a prefeitura de Salvador e o PDT indicou o vice. Então ACM Neto precisa ser contra o PT, mas se ele grudar no Bolsonaro, ele arrebenta um monte de outras candidaturas do DEM. Será que Ciro não resolve a situação dele? Aí você vai olhar para Minas, quem apoia o Bolsonaro é o próprio governador atual, o Kalil não pode se apoiar no PT. Vou fazer o que? O Ciro talvez seja uma saída. Olha São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin quer ser candidato. Por qual partido? Pelo PSD do Kassab. Então você vê que essa complicação, essa conversa, tem que ser levada ao mesmo tempo em que o nível presidencial é conversado. Isso não é simples de fazer, mas tem que ser feito.
E o tempo está correndo.
Nós temos pouco tempo e não só Bolsonaro não está parado, como ele está muito bem organizado. E ele sabe que está no piso dele. Daqui pra eleição, ele só vai crescer, não vai diminuir. A menos que aconteçam mais catástrofes, mais tragédias, e ninguém pode torcer por isso. Torcer por terceira ou quarta onda, apagão? Você vai torcer pra uma desgraça acontecer com o país? Não pode. O que é isso, gente? Não dá.