Por Valter Pomar (*)
Os sandinistas tomaram o poder na Nicarágua em 1979. Adotaram um “modelo” de economia mista e pluralismo político. Não adiantou nada: desde 1981 os EUA financiaram e armaram uma guerrilha contra o regime sandinista. Mesmo assim os Sandinistas ganharam as eleições de 1984. Os EUA continuaram pressionando e apoiando os Contra. Os sandinistas não arredaram pé e mantiveram as eleições presidenciais de fevereiro de 1990. O povo votou com um fuzil apontado para a cabeça: se os sandinistas ganhassem, a guerra civil continuaria. Diferente de 1984, a oposição ganhou. “Democraticamente” tiveram início 16 anos de neoliberalismo. Mas tinha pluralismo partidário e propriedade privada que, na opinião de alguns, constituiriam a base da verdadeira democracia.
Nicarágua foi torturada pelos Estados Unidos por 10 anos. Os cubanos são torturados há uns 60 anos. Será que nessas condições seria possível manter um “socialismo libertário” e dispensar o apoio soviético?
Cuba buscou ampliar sua margem de manobra frente aos soviéticos, através do fortalecimento da esquerda na Ásia, na África e na América Latina. Em nosso continente, a quase totalidade das guerrilhas apoiadas por Cuba foi derrotada. Previsível mas infelizmente, pois nosso continente seria mais soberano, mais igualitário e mais democrático se a luta armada tivesse triunfado.
Com a crise e o desaparecimento da União Soviética, Cuba entrou no famoso “período especial em tempos de paz”. A partir de então, os danos causados pelo bloqueio estadounidense tornaram-se brutais. A situação econômica e social deteriorou-se. A situação política tornou-se mais difícil. Mas Cuba seguiu praticando a solidariedade internacional e nenhuma criança cubana dormiria na rua, entre outros detalhes que talvez não façam muita diferença para certo tipo de “ciência política”.
Cuba voltou a ter alguma folga a partir de 1998, quando por toda a América Latina começaram a surgir governos de esquerda e progressistas, que administraram seus países “com pleno respeito pelas liberdades”, mas que mesmo assim foram vítimas de todo tipo de patranha por parte da mesmíssima direita que ama os EUA e demoniza Cuba.
E o bloqueio? Seguiu, as vezes mais relaxado, as vezes mais brutal, como ocorreu durante o governo Trump e segue durante o governo Biden, que está firme no propósito de fazer uma “revolução capitalista”… em Cuba.
Aliás, se eu trabalhasse no Departamento de Estado, estaria nesse momento embrulhando um “presente” para enviar a Cuba, por ocasião do aniversário do assalto ao Quartel Moncada, ocorrido no dia 26 de julho de 1953.
É certamente um bom momento para isto: uma nova geração assumiu o comando do governo cubano, acumulam-se problemas de longa data que exigem solução para ontem, está em curso uma reforma que como todas tende a causar mais problemas antes de causar mais benefícios, a pandemia afetou pesadamente o turismo, o bloqueio endureceu, a economia está no limite, parte da população está cansada e sem perspectivas etc.
Frente a isso, o Partido dos Trabalhadores escolheu fazer a coisa certa: denunciar o bloqueio e prestar solidariedade incondicional ao povo e ao governo cubano.
Há quem escolha fazer diferente: denunciar a “ditadura”, virar as costas, impor condições, dar conselhos ao estilo “engenharia de obra feita”, sugerir como modelo nossa experiência 100% exitosa de luta contra a direita brasileira, propor a eles construírem o socialismo libertário etc.
Nos últimos dias, vi, ouvi e li de tudo. O troféu “brutalidade” – por enquanto – foi para Maria Herminia Tavares de Almeida, cientista política e socióloga brasileira.
Palavras de Hermínia, em artigo publicado no dia 21 de julho na FSP: “pobre, isolada, embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos. Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar adeus a Cuba”.
Confesso que não me surpreendo com a expressão “delito político”, afinal não faz muto tempo que os tucanos aplaudiram a prisão e condenação e interdição de Lula. Nem me surpreendo com a pressão sobre o PT: também não é de hoje que buscam nos domesticar com este tipo de demagogia.
O que considerei merecedor do troféu “brutalidade” foi a frase “Cuba não passa de um anacronismo”. Não é o PC cubano, não é o regime cubano, não é o modelo cubano. É Cuba.
Não sei que decorrência Maria Hermínia tira disto. Delenda Cuba? Cortem as suas cabeças? Enola Gay? Desert Storm?
Seja qual for, me causa repugnância este jeito de tratar um país, uma nação, um povo, uma cultura, situação e oposição, reduzindo tudo a um “anacronismo”.
Espero que tenha sido um erro do editor da Folha…
Mas se não tiver sido, se Maria Herminia cometeu mesmo o raciocínio, só me resta apelar à frase célebre (cujo sentido, talvez por ato falho, ela inverteu no parágrafo supracitado): reduzir Cuba a um anacronismo é pior do que um crime, é um erro.
Crimes as vezes não são punidos, vide os militares que hoje nos governam. Já erros provocam sempre consequências. Tenhamos ou não concordância com o governo cubano, é hora de defender a soberania de Cuba. Sem isto, não haverá depois disso.
Se a América Latina deixar Cuba sofrer o mesmo destino da revolução haitiana, podemos dar adeus a nosso futuro.
(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT
Hora de dar adeus a Cuba
Em 1960, Jean-Paul Sartre visitou o país com a sua companheira, a escritora Simone de Beauvoir.
Os mais cultivados entre os seus admiradores brasileiros esperavam que ele falasse do existencialismo, ou de seu polêmico livro “Crítica da Razão Dialética” — aqui lido por poucos. Mas, vindo de Havana, seu assunto foi a Revolução Cubana: a seu ver, a promessa de um socialismo libertário, a léguas do modelo soviético, e o fato presente de que a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra atingia os interesses americanos no seu quintal, subvertendo a geopolítica da Guerra Fria. O fim da ditadura de Batista fez mais do que aquecer os corações da juventude rebelde e de intelectuais progressistas em muitos países: mudou a história da esquerda.
Só que o grande pensador francês estava errado. Não passou uma década para que Cuba se amoldasse ao “socialismo real”, confirmando que não há espaço para a democracia e as liberdades quando as empresas são do estado e o regime é de partido único.
Sua estrela política só se apagou com a derrota dos movimentos de oposição armada aos governos militares que fizeram da América Latina dos anos 1970 uma usina de autoritarismo. Inspirados pela experiência cubana e apoiados pelo governo de Fidel, multiplicaram-se pela região focos de luta armada — de esquerda, mas também autoritários e incapazes de vencer as ditaduras de direita.
Elas, finalmente, cederam à força de ampla movimentação democrática, à qual se somavam lideranças e organizações de diferentes colorações políticas. Os partidos e agrupamentos de esquerda que dela participaram nada tinham a ver com Cuba e seu modelo socialista, ainda que contassem com a participação de ex-guerrilheiros convertidos aos valores democráticos. O chileno Partido pela Democracia (PPD), as organizações uruguaias que se reuniram na Frente Ampla e o Partido dos Trabalhadores, no Brasil, são os exemplos mais destacados dessa esquerda com inequívoco compromisso com a democracia, as garantias individuais e o reformismo social. Compromissos mais do que provados quando governaram seus países com pleno respeito pelas liberdades públicas.
Enquanto isso, pobre, isolada, embargada e sem a influência de outrora, Cuba não passa de um anacronismo. Mais insondáveis se tornam, por isso, as razões da tolerância retórica do PT diante das arbitrariedades cometidas pela ditadura de Havana contra seus cidadãos. Essa ambiguidade apenas gera ruído que alimenta o discurso obscurantista da extrema direita. Por isso, é pior que um erro. É um delito político. Há que dar adeus a Cuba.
Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada da USP e ex-docente da Unicamp