Maringoni e a defumação de Borba Gato

Por Valter Pomar (*)

São quatro parágrafos lacradores publicados no Diário do Centro do Mundo. Dizem assim:

“O incêndio da estátua do Borba Gato, na zona sul da capital paulista, no mesmo dia em que os setores democráticos realizam nacionalmente maciças manifestações pacíficas de protesto, tem toda a pinta de provocação da direita”.

“O bandeirante homenageado com a horrível escultura foi um escravocrata assassino. Trata-se de homenagem descabida. Deve ser aberto um debate público por sua remoção do local”.

“No entanto, tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento”.

“A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.

Vamos começar pelo começo: de onde foi que Gilberto Maringoni – cometedor dos quatro parágrafos acima – tirou que a defumação de Borba Gato tem “pinta de provocação da direita”?

Da coisa em si não foi, pois queimar pneus e defumar a estátua de um “escravocrata assassino” também têm “toda a pinta” de ser “ação direta”.

Sem falar que tanto eu quanto Maringoni já aprendemos  – pelo menos desde a época em que o pessoal do MR8 espancava militantes da oposição metalúrgica – que para fazer merda a esquerda não precisa estar infiltrada pela polícia.

Claro, os grupos de “ação direta” também podem ser “estimulados” ou infiltrados. Se foi o caso, peo menos desta vez o vídeo da ação está esteticamente melhor, mais para Casa de Papel do que aquele feito por um P2 que registrou seu coturno numa manifestação pelo Fora Bolsonaro.

De toda maneira, volto a perguntar: de onde Maringoni tirou sua afirmação acerca da “pinta”?

A “resposta” achei num post de Cid Benjamin, outro que se incomodou com a defumação de Borba Gato.

Neste post, Cid diz o seguinte:

“Houve gente bem intencionada apoiando aquela ação de mascarados queimando a estátua do Borba Gato, ao melhor estilo dos provocadores a serviço da polícia. O grupo se autodenomina “Revolução Periférica”. Pois bem, Gilberto Maringoni foi procurar por esse grupo nas redes sociais. Vejam o que encontrou e concluam se essa gente é de esquerda ou se estamos diante de infiltração policial. Passo a palavra ao Maringoni”.

A seguir vem as palavras do Gilberto Maringoni, tal e qual reproduzidas por Cid:

“Fui atrás do tal grupo Revolução periférica no Facebook e no Instagram. Nesta última rede, tem 34 mil seguidores, 5 posts e dois dias de existência. Existe só para propagar a queima dos pneus (a estátua quase não sofreu danos). O Facebook é semelhante. Acabou de ser criado. Sim, é um grupo revolucionário com extenso trabalho de base. Contam com apoio do Papai Noel e do Coelhinho da páscoa…”

As referências finais são um esforço para fazer rir de piada ruim, pois do que foi descrito não há elementos para afirmar que estamos “diante de infiltração policial”.

Outros que foram de fato atrás do assunto chegaram a conclusão bem diferente, como se pode ler no texto disponível no link a seguir:

https://jornalistaslivres.org/foraborbagato-ou-a-revolucao-sera-periferica-ou-nao-sera/

Quem tem razão nesta questão, Gilberto Maringoni ou Laura Capriglione?

Logo saberemos, entre outros motivos porque a polícia deve estar atrás dos autores da “mazorca” (um termo que não lia faz tempo e que por sinal “tem toda a pinta” de cair bem na boca de certos meganhas).

Seja como for, de uma coisa tenho certeza: existem muitos motivos e ambiente propício para que uma parcela da militância parta para a “ação direta”, mesmo que apenas performática.

E se esta militância for tratada e se estas ações forem interpretadas da forma como Maringoni e outros fizeram, o resultado não vai ser bom para a esquerda.

De que outros estou falando?

Primeiro, de Aldo Rebelo, que faz tempo vem se notabilizando por confundir a defesa da soberania nacional com a defesa dos valores e das instituições da classe dominante.

Diante da defumação de Borba Gato, Aldo disparou dois tweets dizendo o seguinte:

“Canalhas, bandidos, assassinos da memória nacional. Vejam que não molestam as dezenas de imitações de “estátuas da liberdade” espalhadas pelo Brasil, escolhem a obra de artista brasileiro, um símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”.

“É como o movimento não vai ter copa: filhinhos de papai de “esquerda” e de “direita” tocavam o terror nas ruas, vandalizavam, com a cumplicidade da mídia. Era a guerra híbrida contra o Brasil”.

Na interpretação de Aldo Rebelo, o “escravocrata assassino” cf. Maringoni seria um “símbolo da história e da identidade da cidade de São Paulo”.

Num certo sentido, ambos têm razão e uma boa questão é o que faremos com este tipo de símbolos em homenagem a assassinos, escravocratas, ditadores etc.

Aldo, sempre tão generoso com a memória dos que até agora foram vencedores, talvez proponha uma coleta para restaurar a obra símbolo da “pátria” bandeirante.

Maringoni propõe a “remoção do local” (parece que Borba Gato está lá desde 1963). Mas o que o preocupa mesmo são os efeitos políticos da defumação: “(…) tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo. A extrema direita se aproveitará do evento. A esquerda e os setores progressistas devem imediatamente desautorizar qualquer vínculo com a mazorca”.

A preocupação política é legítima. Se ela procede ou não, é um bom debate.

Em nenhum caso, contudo, o critério pode ser apenas ou principalmente o referido por Maringoni, a saber: se “a extrema direita se aproveitará do evento”.

Claro que se aproveitará (já há posts falando de queima de igrejas).

A direita em geral, o bolsonarismo em particular, tenta se “aproveitar” de qualquer coisa.

Nem os que lutam certo, nem os que lutam errado, tampouco os bundões são poupados da propaganda da direita. Assim, o critério deve ser outro.

O problema é que Maringoni acha que “tacar fogo na peça, como foi feito, é ato de puro vandalismo”. Ele não percebe que é preciso diferenciar o “puro vandalismo” de “performances” com propósito político.

Neste caso do Borba Gato, mesmo que Maringoni tivesse razão e fosse provocação policial, em nenhum caso se trataria de “puro vandalismo”: existe um propósito político na ação. Desconhecer isto é validar o conservadorismo mais atroz.

Por sinal, Aldo que me perdoe, em um país verdadeiramente democrático aquela estátua não teria sido construída nem estaria de pé.

Voltando a Maringoni, ele foi um gentleman nas suas críticas, ao menos em comparação com Renato Rovai, que em artigo publicado na revista Forum disse o que segue:

“Não foi um ato de terrorismo. Longe disso. É uma ação direta contra um símbolo cujo conteúdo histórico remete à opressão e ao genocídio. Mas é uma ação violenta contra o patrimônio histórico, mesmo que em sua base esteja a contestação à violência”.

“Não se pode escrever as regras do jogo apenas para um lado. Recentemente o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub ameaçou retirar um mural de Paulo Freire do MEC porque ele era “feio, parecia um vudu e além do que Freire era comunista”.

“Sérgio Camargo, da Fundação Palmares, usou discurso semelhante para excluir nomes de lutadores e intelectuais negros da lista de personalidades da instituição. Foram 27, incluindo Gilberto Gil, Martinho da Vila, Marina Silva, Milton Nascimento e Sueli Carneiro. O motivo é que eram de esquerda”.

“É possível debater certas homenagens e buscar corrigi-las. Evidente que sim. Defendo que podemos e devemos debater e negociar a retirada de certos monumentos históricos de lugares públicos. E inclusive considero que se deva construir espaços para que certas estátuas e obras sejam expostas e que as histórias dessas personagens sejam contadas a partir de um viés crítico”.

“Mas destrui-las é agir como os talebans procederam no Afeganistão ou como os extremistas da Ucrânia que destruíram a estátua de Lenin. Não é um bom caminho. E para a esquerda é o caminho da burrice, porque quem costuma ter a força para destruir a História são as classes dominantes. Elas é que costumam ter o poder e as armas para destruir placas como as de Marielle”.

“Não é um jogo bom para a esquerda apostar na violência. Em especial num momento em que temos um fascista no poder com um governo militarizado e que está doido para poder achar “terroristas” por aí para justificar o uso da força contra o campo progressista e os movimentos populares”.

“Mas a burrice da ação contra a estátua de Borba Gato é ainda maior porque pegou carona num dia de lutas contra Bolsonaro. O genocida da vez que nos assombra com 550 mil mortes. O fascista que precisa ser derrotado pelo seu presente e não pelo seu passado. E, por conta do que foi feito, as redes ontem falaram mais de Borba Gato do que do seu impeachment. É uma pena”.

Como já disse antes, a preocupação política é legítima, ainda que possamos tirar conclusões diferentes.

Já a comparação com os “extremistas da Ucrânia” e com os “talebans” é de um exagero sem tamanho.

Não sei se Rovai diria (ou disse) o mesmo do que foi feito, recentemente, com estátuas similares no mundo anglo-saxão. Ou será que lá pode?

O problema não é apenas o exagero; o problema principal é tratar de maneira simétrica a violência dos opressores e a violência dos oprimidos.

Pode ser um erro político fazer tal e qual ato, especialmente em determinada data; mas defumar a estátua de um “escravocrata assassino” é um ato que possui uma legitimidade politica incomparável com a violência da extrema direita e do fundamentalismo religioso.

Podemos discutir o que fazer com os símbolos que a classe dominante plantou e segue plantando neste país, mas não dá para tratar como equivalentes – por exemplo – o Paulo Freire e o Borba Gato.

Ademais, o “patrimônio histórico” não caiu do céu. Como bem lembrou o Célio Turino, “antes de escandalizarem-se de forma precipitada, censurando os atos como simples vandalismo ou esquerdismo infantil, melhor buscar compreender o que motiva essa indignação em relação a determinados monumentos, que, pela força simbólica, condensam essa “raiva”. A partir dessa busca por compreensão cabe o diálogo quanto à forma”.

Claro que este diálogo ficará mais difícil se atos como a defumação forem classificados como “burrice”, termo adotado por Rovai entre outros motivos porque “quem costuma ter a força para destruir a História são as classes dominantes. Elas é que costumam ter o poder e as armas para destruir placas como as de Marielle”.

Isto que diz Rovai sobre a força da classe dominante é verdade. O problema é que continuaria sendo verdade se a estátua não fosse defumada. Até porque temos “um fascista no poder com um governo militarizado”.

Frente a isso há diferentes reações na esquerda: os que apostam quase tudo nas eleições, os que apostam quase tudo nas instituições, os que apostam quase tudo na mobilização de massas etc. E também há quem aposte tudo ou quase na ação direta.

E, reitero, há inúmeros motivos e ambiente propício para que ocorram atos de “ação direta”, que obviamente podem ser objeto de manipulação da direita, assim como podem ser objeto de manipulação atos que aos nossos olhos têm legitimidade social e popular, mas que aos olhos da extrema direita e de amplas camadas da população também não têm.

Se a atitude da esquerda que se acha muito sabida, sabedora – e que ainda por cima se comporta como se tivesse feito tudo certo contra a extrema direita – for denunciar estes atos como “provocação policial”, o problema não será resolvido e pode até crescer.

E para não dizer que não falei de flores: Borba Gato fez por merecer muito mais do que uma singela defumação.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT


Fontes dos textos citados

A quem interessa incendiar estátuas no mesmo dia de protestos contra Bolsonaro? Por Gilberto Maringoni

https://revistaforum.com.br/blogs/blogdorovai/fogo-no-borba-gato-nao-e-terrorismo-e-so-burrice-mesmo/

https://www.google.com.br/amp/s/www.brasil247.com/brasil/aldo-rebelo-diz-que-fogo-em-estatua-de-borba-gato-faz-parte-da-guerra-hibrida-contra-o-brasil%3famp

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