Por Wladimir Pomar (*)
Mea culpa ou autocrítica?
Há inúmeros dirigentes e militantes do PT que confundem autocrítica com mea culpa. Eles, da mesma forma que João Feres Junior, consideram que qualquer delas seria “um péssimo exemplo para a educação política dos brasileiros” e “um endosso à narrativa mistificadora midiática de criminalização da política”. Ao mesmo tempo consideram que “a crítica a ser feita é de outra natureza e bastante mais complexa”.
Ou seja, a proposta de que o PT deveria vir a público fazer autocrítica pode ser sintetizada pelo raciocínio de que, “por ter se envolvido em escândalos de corrupção”, “o partido deveria declarar arrependimento”. E tal proposta não levaria em conta que o “PT foi objeto de uma campanha sistemática de criminalização da política” e, embora seja “revestida de um anseio pela regeneração do partido”, seria prejudicial.
A proposta de mea culpa teria como fundamento o fato do PT ter sido “um partido bastante moralista”, advindo “dos movimentos de resistência à ditadura”, que teriam tornado “as instituições do Estado” símbolos da “repressão, arbítrio, opacidade e, muitas vezes, corrupção”. Ou seja, a “prevalência de ideologias utópicas, mormente socialistas” teria ajudado “a fomentar a percepção de que o Estado, e na prática o governo, era algo a ser combatido, boicotado ou mesmo evitado”.
Além disso, haveria um “componente católico”, com suas vertentes fortemente antipolíticas”, que só “começou a mudar… a partir das vitórias seguidas nos pleitos municipais”, seguida das “vitórias… nas eleições presidenciais”, levando o PT a “encarar seriamente… as questões pertinentes à administração pública e aos processos políticos que a circundam”. Ou seja, só a partir daí o PT teria se adaptado “ao presidencialismo de coalizão”, num “difícil aprendizado” com um final não muito feliz”, embora seu “pré-requisito” fosse “a desconstrução do moralismo original”.
A crise política do governo Dilma, por exemplo, teria contado com “uma boa dose de moralismo”, mitigando a “capacidade do governo navegar em suas águas turbulentas”. Em tais condições, se a política é uma “atividade que não deve se pautar pela moralidade individual tradicional…, a mea culpa poria tudo a perder”. Daria razão à “narrativa midiática de criminalização da política”, condenaria a “adesão do PT ao presidencialismo de coalizão” e confirmaria que ele “era o grande organizador da corrupção política nacional, o mais corrupto de todos os partidos, uma quadrilha cuja única finalidade era se manter no poder por meio da corrupção”.
Além disso, “vir a público” para fazer tal mea culpa, sem haver assegurado “para si quaisquer meios eficazes de comunicação sequer com seus membros, quanto mais com seu eleitorado e com a população brasileira em geral” constituiria “sujeição aos enquadramentos dos grandes meios de imprensa que então relatariam à população esse ato de redenção”. Assim, a “mea culpa petista” seria apenas “a expressão da perspectiva cristã de que a verdade liberta, motivo esse já em uso pelo campo ideológico que hoje ocupa o executivo federal. Eles pelo menos sabem que isso é pura balela, somente para inglês ver”.
Tais teses são, de cabo a rabo, uma mescla de conceitos errados. Para início de resposta, crítica e autocrítica, por um lado, e mea culpa, por outro, são conceitos que têm uma relação próxima de zero. O último é de natureza religiosa, enquanto o primeiro é de natureza política. Os problemas do PT não consistem em fazer autocrítica por ter se envolvido em escândalos de corrupção no Estado, tomar o governo como algo a ser combatido ou mesmo evitado, não haver se adaptado “ao presidencialismo de coalizão”, e conservar uma “dose de moralismo”, que teria “mitigado” sua capacidade de navegar em “águas turbulentas”.
Ao contrário, para ficar restrito aos problemas apresentados pelos oponentes da suposta mea culpa, o PT deve fazer autocrítica por; 1) haver se adaptado demais ao “presidencialismo de coalizão”; 2) deixado de considerar o atual Estado um instrumento a serviço da burguesia dominante; 3) abandonado o combate firme às iniquidades presentes na sociedade brasileira; 4) não haver equacionado uma estratégia de firme combate à corrupção; 5) ter suposto que a crise econômica que envolveu o governo Dilma deveria ser combatida com políticas neoliberais; 6) ter desleixado o processo de formação política de seus quadros e militantes; 7) jamais ter construído uma forte imprensa alternativa; e, 8) mais do que tudo, haver abandonado, em grande medida, os instrumentos que garantiam sua relação intrínseca com as camadas populares que formam a base da sociedade brasileira.
As instituições do Estado brasileiro, apesar da democratização formal de 1988, continuaram sendo símbolos de “repressão”, “arbítrio”, “opacidade” e “corrupção”. Apesar disso, desde sua fundação e por um bom tempo, o PT se empenhou em conquistar espaços nesse Estado, de modo a aproveitar as brechas constitucionais democráticas para reduzir aqueles símbolos e avançar no rumo de um Estado realmente democrático, aberto à participação popular, e menos afeito à corrupção.
Ou seja, já que Estado e governo são instituições diferentes, ao mesmo tempo que combatia e boicotava governos reacionários, desde o início dos anos 1980 o PT se esforçou em conquistar e/ou participar de governos populares e democráticos, de modo a ampliar sua presença no Estado, cujo exemplo mais característico foi sua participação nas primeiras eleições presidenciais diretas, em 1989, em que firmou as condições políticas para disputar o governo central.
O problema é que, desde então, ao contrário do que supõem os opositores da autocrítica, ao invés de transformar suas conquistas institucionais em avanços na luta contra o arbítrio, a opacidade e a corrupção, o PT ingressou cada vez mais na governabilidade nacional, estadual e municipal de “coalizão”. Embora seus programas de combate à miséria tenham sido positivos e melhorado as condições insuportáveis de vida de parte considerável da população brasileira, o PT se tornou, paulatinamente, menos sensível e menos preocupado com a prevalência dos sistemas repressivo, arbitrário, opaco e corrupto que mancham a burguesia nativa, como classe dirigente, e seu sistema político.
Nessas condições, supor que a “prevalência de ideologias utópicas, mormente socialistas” teria fomentado uma oposição radical ao Estado e aos governos não condiz com a realidade histórica. Nenhum dos governos petistas sequer levou à prática algum programa de “economia solidária” que conduzisse traços socialistas. Assim, o “final não muito feliz” da participação petista no governo nacional teve como um dos fatores principais aquilo que os opositores da autocrítica chamam de “desconstrução do moralismo original”, desconstrução que levou o PT a ser incapaz de adotar uma estratégia consistente de combate à corrupção e de disputa com o falso moralismo da Lava Jato.
O PT não deve declarar arrependimento “por ter se envolvido em escândalos de corrupção”. Ele deve fazer autocrítica por não haver disputado a direção dessa luta com os falsos moralistas da Lava Jato e por não haver tomado medidas sérias contra dirigentes petistas envolvidos em tais práticas, cujo exemplo mais significativo chama-se Palocci. E, mesmo tendo sido “objeto de uma campanha sistemática de criminalização”, o PT só pode evitar a incompreensão em torno de sua autocrítica se demonstrar inconsistência em relação à luta contra a os inimigos do povo brasileiro e sua corrupção sistemática.
Por outro lado, a crise política do governo Dilma não esteve relacionada com qualquer “boa dose de moralismo”, ou com a pouca “capacidade do governo navegar em suas águas turbulentas”, mas com o fato de haver adotado uma política neoliberal para combater uma crise econômica de caráter neoliberal. O que, inevitavelmente, aprofundou a crise, levou o governo a perder o apoio das camadas populares e intermediárias prejudicadas e o tornou incapaz de impedir o golpe do impedimento.
Os opositores da mea culpa e de uma autocrítica verdadeira, por outro lado, têm certa razão quando argumentam que “vir a público” sem haver assegurado “para si quaisquer meios eficazes de comunicação sequer com seus membros, quanto mais com seu eleitorado e com a população brasileira em geral” constituiria “sujeição aos enquadramentos dos grandes meios de imprensa que então relatariam à população esse ato de redenção”.
Porém, perdem a oportunidade de exigir a autocrítica petista por nunca haver construído um forte sistema de comunicação de massa, em grande parte por acreditar que grandes setores da burguesia, proprietárias de sistemas múltiplos de comunicação, seriam “imparciais” com o PT e o tratariam do mesmo modo que faziam e fazem com seus representantes políticos. Algo idêntico também ocorreu com a formação teórica e política e com a construção de um forte sistema de núcleos de base articulados à vida das camadas populares e intermediárias da população.
Portanto, a questão chave, que pode definir o futuro do PT, consiste em realizar um exame criterioso de seus erros e acertos, e definir a linha geral para superar os erros e potencializar os acertos. Tudo de modo a enfrentar os enormes desafios que a luta social e política está impondo a todos que desejam construir um país democrático e soberano, com um povo participante das riquezas nacionais e livre dos constrangimentos atuais da miséria, desemprego e subemprego, sistema de saúde restrito, ausência de saneamento básico etc etc etc.
A história tem sido madrasta com os entes políticos que, por razões diversas, não conseguem reconhecer seus erros e, por isso, são levados por caminhos desastrosos até se tornarem insignificantes ou desaparecerem da cena política. A militância do PT precisa avaliar melhor tal experiência histórica e, mais uma vez, trazer à tona a combatividade que sempre a caracterizou. Isso, para vencer o desafio de criticar sua própria história, superar os defeitos que prejudicam o caminho que traçou no início dos anos 1980, e definir um programa de lutas estratégicas e táticas que auxiliem nosso povo a enfrentar e superar a tragédia que o governo terraplanista está lhe impondo.
(*) Wladimir Pomar é escritor e jornalista.