Merval e a operação de pinça contra o PT

Por Valter Pomar (*)

Merval Pereira, um dos jornalistas mais ligados à família Marinho

Recomendo fortemente a leitura do artigo “A esquerda desunida”, de Merval Pereira, no jornal O Globo de 30 de outubro de 2020. O artigo revela, implicitamente, qual é a operação de pinça que está sendo implementada contra o PT, mas com a ajuda inconsciente ou consciente de vários petistas.

Segundo o artigo, a reunião entre Lula e Ciro “poderia ser uma boa notícia para a esquerda brasileira caso não tivesse sido atropelada por ninguém menos do que a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Que não tem luz própria e não faria isso sem o consentimento de Lula.”

Muito provavelmente, a tal reunião ocorreu antes do 7 de setembro, mas não foi tornada pública. Por qual motivo veio à luz neste momento? Meu palpite: o governador Camilo Santana resolveu ajudar a candidatura dos Ferreira Gomes. E ao fazer isto, atirou no que viu (Luizianne) e acertou no que talvez não tenha visto (Benedita, as eleições de São Paulo e 2022).

Como é possível que mais esta pequena traição, cometida por um governador que está no PT, mas não age como petista, poderia ser uma “boa notícia para a esquerda brasileira”? Segundo Merval, seria uma boa notícia porque a reunião Lula e Ciro “parecia um encaminhamento de acerto, com vista a uma candidatura de esquerda que pudesse fazer frente ao presidente Bolsonaro”.

Parecia. Mas, como já foi dito e sempre é bom repetir: se a essência fosse igual a aparência, não haveria ciência.

A questão é bem simples: Ciro não é de esquerda. Uma aliança integrada por ele poderia ser de esquerda, se Ciro apoiasse ou fosse vice de uma candidatura de esquerda. Já que isto é, digamos assim, bem pouco provável, restaria a outra possibilidade: o apoio da esquerda a Ciro presidente. Neste caso, teríamos uma candidatura presidencial de centro, apoiada pela esquerda. A pergunta é: por qual motivo a esquerda brasileira deveria aceitar isto e, além do mais, considerar uma “boa notícia”? Afinal, a esquerda é bem maior do que o centro. É ai que entra a operação de pinça: por um lado, desmoralizar a esquerda, até que ela ache que é pequena; por outro lado, espancar a esquerda, para ver se ela fica mesmo pequena.

Infelizmente para Merval, e felizmente para nós petistas, a companheira Gleisi Hoffmann foi à público opor-se a esta operação, que já está nos custando caro nas eleições 2020 e pode vir a nos custar muito mais caro, no futuro próximo.

Alguns reclamaram (de maneira bem misógina, vale dizer) que não caberia exigir de Ciro desculpas por aquilo que ele disse acerca do PT e de Lula. Da minha parte, acho que não caberia exigir apenas desculpas. Pois o problema fundamental de Ciro é o programa e a estratégia desenvolvimentista conservadora que ele defende para o país; sua verve escatológica é efeito disso, não a causa. Isso posto, eu compreendo perfeitamente os motivos de Gleisi para falar o que falou e do jeito que falou; ir um pouco além exigiria questionar a conveniência da própria reunião e os motivos que levam alguém que já foi picado pelo escorpião, a se expor a ser picado de novo.

Merval viu na atitude de Gleisi uma oportunidade para dar mais uma volta no parafuso do garrote, e trata de acusar o PT de querer “se impor como protagonista da esquerda, o que impediu uma união em 2018”. Impor? O dicionário de Merval deve ser diferente do meu. Quais os fatos: no primeiro turno de 2018, Ciro teve pouco mais de 13 milhões de votos, Haddad teve pouco mais de 31 milhões de votos. Mesmo supondo que Ciro fosse de esquerda, os números confirmam que o PT estava no seu direito de lançar uma candidatura à presidência da República. E mesmo assim setores do PT buscaram convencer Ciro Gomes a fazer parte da chapa. Ciro não foi candidato a vice de Lula, porque não quis. E a pergunta é: por quais motivos ele não quis? Sobre isso, há uma profusão de versões, algumas das quais Merval tenta expor em seu artigo. A minha é a seguinte: o programa e a estratégia de Ciro não incluem o PT. Que este “motivo nobre” seja apresentado, por Ciro, de forma vil, vai por conta da psique do personagem.

O melhor do texto de Merval está nos dois últimos parágrafos, onde está dito que “Ciro Gomes e Lula estão certos em selar a paz, porque a esquerda precisa se unir em torno de temas, e não ficar se digladiando. Sem a união do centro nem da esquerda, o caminho fica facilitado para a direita, que tem em Bolsonaro um candidato forte até o momento”. Hehe: quando a esmola é demais, o santo desconfia. E com razão, pois o que Merval diz em seguida é o seguinte: “diante da reação corporativa de Gleisi Hoffmann, tudo indica que a eventual aliança não resultará em nada, pois não acredito que Lula imagine o PT sendo vice de Ciro Gomes. Não é tradição do partido aceitar este tipo de cooperação. O grande erro de Lula em 2018 foi não ter apoiado Ciro, talvez viabilizando uma aliança de centro-esquerda. Mas o PT não dá sombra pra ninguém, Lula não permite que nenhuma liderança cresça do lado dele. A única chance de haver entendimento para 2022 é Lula continuar inelegível e o PT resolver apoiar Ciro. Chance remotíssima.”

Dizem que o diabo se esconde nos detalhes. O “detalhe” aqui é o seguinte: “Lula continuar inelegível”. Garantido isto, bastaria continuar na operação de pinça contra o PT, desmoralizando e espancando de tudo quanto é lado, por cima, por baixo e pelos lados. Se der certo, o que restar do PT teria que escolher entre capitular vergonhosamente ou travar uma batalha com poucas chances de vitória.

E Ciro? Este parece ter ganho, sem custo algum, uma boa ajuda na sua operação para tentar levar as candidaturas do PDT ao segundo turno de Fortaleza e do Rio de Janeiro, sem falar de São Paulo, onde apoia Márcio França. Se tiver êxito, usará esta mesma ajuda para buscar os votos do petismo no segundo turno. E, caso vitorioso, já sonha poder escolher com que roupa irá ao baile.

Infelizmente, tem gente no PT e arredores que coopera com este tipo de operação. Alguns, no afã de demonstrar que não somos sectários, como se isto já não tivesse sido exageradamente demonstrado entre 2003 e 2016. Outros, por terem perdido qualquer sentido de partido, achando normal declarar apoio e fazer campanha, aberta ou disfarçada, para candidaturas de outras legendas. Tem a turma do torcicolo, que na dúvida, sempre guina para o lado errado. E, claro, tem muita gente confusa com tanto bullyng.

Entretanto, o que vai decidir a parada não será Ciro, nem Merval, nem nenhuma liderança isoladamente. Quem vai decidir a parada será o eleitorado popular e a base vietnamita do PT, que desde 2014 até hoje tem vivido inúmeros dias de São Crispim e Crispiano.

(*) Valter Pomar é professor e membro do Diretório Nacional do PT


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

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