Nacionalização e reconversão

Por Maicon Michel Vasconcelos da Silva (*)

Que o “Estado é o comitê para gerir os negócios da burguesia” Marx já elaborou brilhantemente no Manifesto do Partido Comunista, e assim o fez para incentivar e demonstrar a importância da classe trabalhadora lutar por melhorias imediatas de vida, mas dentro de um horizonte programático de superação deste modelo de produção. Uma das estratégias nesse processo de superação passa pelo controle da classe trabalhadora do aparelho do Estado.

As elites nacionais foram formadas sobre os corpos e as vidas dos povos originários e dos negros sequestrados na África e aqui escravizados. O papel do Estado era, entre outras coisas, o de garantir o poder das elites agrárias e seu modelo de exploração dos recursos naturais, utilizando trabalho de escravizados, para exportação no mercado mundial. Essa mentalidade arcaica e desumana está historicamente impregnada naqueles que se tornaram elite no Brasil. É sintomático, neste sentido, que o processo de industrialização do país de forma mais robusta e planejada, indo além dos limites estreitos da economia agrário-exportadora, se deu através de um golpe de Estado em 1930 que integrou essas elites à outro modelo produtivo e outras relações de trabalho.

O tempo passou, lutas sociais foram travadas, milhares de trabalhadores perderam suas vidas e sua saúde para desenvolver um parque industrial nacional mas a mentalidade subalterna e covarde de parte significativa da elite permaneceu. Isso só piorou nos governos neoliberais, em especial o de FHC, que se tratando de industria, dizia que a melhor política industrial era não ter uma.

Nos governos democráticos populares de Lula e Dilma, o Estado volta a ter um caráter de indutor da economia e da industrialização em vários setores produtivos.  Em 2012 é lançado o Inovar-Auto, programa que reunia uma série de iniciativas com a finalidade de estimular as empresas transnacionais do ramo automotivo a investir em desenvolvimento/  pesquisa e tecnologia de seus produtos fabricados no Brasil; na expansão e modernização dos seus parques industriais e na criação de uma cadeia de abastecimento nacional, garantindo que parte importante dos componentes dos veículos fossem produzidos em solo nacional. Essa política dinamizou a atividade econômica das montadoras de veículos e autopeças já instaladas e estimulou outros grupos empresariais a criarem plantas produtivas no Brasil.

Sua duração oficial foi até 2017, mas de fato, sua eficiência foi observada até o Golpe em 2016, onde sofreu alterações até ser abandonado. O saldo, até sua vigência foi de centenas de milhões de empregos criados e um mercado interno aquecido.

O Golpe de 2016 paralisa a experiência desenvolvimentista e resgata a pauta neoliberal predatória, com a aprovação Lei da terceirização, a retirada de direitos trabalhistas e previdenciários, a falta de investimentos em infraestrutura, a criminalização dos movimentos sociais e a perda do poder reivindicativo da classe trabalhadora. Este conjunto de fatores levou à queda do poder de comprada população e à estagnação econômica do país.

Com o processo criminoso deflagrado por Moro, Dallagnol e a Operação Lava Jato para tirar Lula da disputa eleitoral em 2018 (evidenciado pelos conteúdos das mensagens trocadas entre juiz e procurador que, por si só, já não são permitidas), subiu ao poder um representante legítimo da parcela mais retrógrada, autoritária e escravocrata da elite golpista nacional.

A falta de compromisso com o futuro do país nos marcos da civilidade, da democracia, do desenvolvimento tecnológico e da atividade industrial que vem demonstrando o governo é assustadora, embora não seja surpresa. Grandes industrias fecharam suas portas no governo de Bolsonaro, que não esboçou nenhuma reação. Entre elas estão Siemens, Kostal, Mercedes, Sony e outras 716.000 que segundo o IBGE fecharam suas portas desde o inicio da pandemia, acompanhadas recentemente pela Ford.

Para esse governo que é fruto do Golpe, o lugar de “Fazendão Colonial” que as grandes potências querem relegar para o Brasil, está de bom tamanho, pois assim, podem exercer novamente sua opressão aberta, como na época da escravidão: de forma perversa e desprovidos de qualquer mediação civilizatória.

Portanto, esse debate da saída da Ford, do fechamento de empresas e do impacto brutal que este processo traz à economia nacional deixa a olhos vistos questões que não se restringem somente ao fechamento de uma fabrica em si, nem tão pouco uma pauta estritamente do campo sindical,mas é, acima de tudo,uma pauta estratégica para toda a sociedade brasileira.

Centrais sindicais de forma unitária estão atuando nas instituições, parlamentos e ministérios para encontrar uma saída para manter emprego e a estrutura industrial, para além e incluindo este caso específico da Ford.

Sem nutrir nenhuma esperança no bom senso da ampla maioria do parlamento, que até o momento segue sendo componente da força motora do processo de desindustrialização que assola o país, entendo que a única possibilidade de mudança desta postura não venha somente da ação nos espaços institucionais (onde hoje quem defende a classe trabalhadora é minoria), mas de intensa mobilização e ação social onde braços cruzados, ocupações, palavras de ordem e solidariedade de classe expressa em formas muito criativas de luta possam ilustrar e compor a linha política e argumentativa das Centrais.

A luta por uma política industrial em um momento em que milhares morrem por falta de insumos hospitalares que há poucos anos éramos produtores, significa salvar vidas. Empresas que decidirem por não continuar suas atividades produtivas no país, bem como as estruturas produtivas ociosas que hoje estão a serviço do capital especulativo, devem estar inseridas em uma Política de Nacionalização e Reconversão Industrial.

Caso haja a decisão de não se continuar com a produção anterior ao momento da nacionalização, é possível reconverter esse parque industrial e garantir o suprimento de insumos e equipamentos para a fabricação de vacinas ou outros produtos hospitalares, para a construção e aparelhamento de hospitais de campanha, que podem salvar vidas em caráter emergencial enquanto se investe na ampliação e na qualificação do equipamento público de saúde. Isso garantiria trabalho e renda para milhões que estão desempregados ao passo que salvaria vidas e aceleraria o processo de saída desse quadro de calamidade sanitária imposta por esse governo e que já vitimou, em dados oficiais, mais de 222 mil pessoas até a elaboração deste artigo.

Portanto, a questão do fechamento da Ford evidencia uma pauta muito mais ampla: do emprego, da industrialização, do papel do Estado e do poder de pressão da classe trabalhadora para garantir sua sobrevivência, literalmente. Se os movimentos sociais não reagirem imediatamente, retomando a condução do papel do Estado em favor da classe trabalhadora com a devida energia que o momento histórico pede, utilizando sem hesitar de todas as ferramentas que restam do que ainda sobrou de democracia, cometerão um erro estratégico difícil de reverter.

(*) Maicon Michel Vasconcelos da Silva é representante do Comitê Sindical de Empresa (CSE) na Mercedes.


(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.

 

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