Por Suelen Aires Gonçalves (*)

O Rio de Janeiro tornou-se o retrato mais cruel de um país que normalizou o assassinato como instrumento de governo. A operação policial que deixou mais de cem pessoas mortas nos complexos do Alemão e da Penha — Esse cenário produzido pela Megaoperação expõe o esgotamento de um modelo de segurança pública que, há décadas, confunde proteção com repressão, justiça com vingança e Estado com poder armado.
A tragédia carioca não é um acidente. É a expressão mais acabada de um projeto político que administra a morte como forma de controle social. Inspirado no conceito de necropolítica de Achille Mbembe, o que assistimos é um Estado que decide quem pode viver e quem deve morrer — e, no Brasil, essa escolha tem cor, classe e território. São jovens negros, trabalhadores precarizados e moradores de favelas as vítimas preferenciais da política de segurança.
Como denunciou a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHMIR), o governador Cláudio Castro (PL/RJ) governa “com base em mentiras e sangue”. Cada chacina é apresentada como vitória; cada corpo, como símbolo de uma suposta eficiência estatal. O resultado é uma política da morte, onde a barbárie se transforma em espetáculo e a vida se torna descartável.
A retórica da “guerra às drogas” segue sendo o principal álibi para justificar que os massacres não produzem efeito de contenção das facções, pois atacam apenas as pontas visíveis do sistema criminal e ignoram suas bases econômicas e políticas. O que se consolida é uma guerra sem vencedores — exceto os que lucram politicamente com o medo. A violência se retroalimenta: o Estado mata para mostrar força e, ao fazê-lo, enfraquece sua legitimidade. A população das periferias vive sob cerco permanente, em um regime de exceção contínuo.
O que o Brasil precisa é de uma virada conceitual. Segurança pública não é guerra. É direito social, e como tal deve ser tratado. Isso significa investir em políticas que articulem prevenção, educação, cultura e trabalho. Significa também desmilitarizar as polícias, fortalecer o controle civil sobre suas ações e combater o racismo institucional que estrutura o sistema penal. Uma segurança cidadã se constrói com a comunidade — não contra ela. Exige reconhecer que a segurança é fruto da justiça social, e não da expansão da violência estatal.
Nesse cenário, a PEC da Segurança Pública, apresentada pelo governo federal, surge como uma proposta de reorientação histórica. Ao ampliar o papel da União na coordenação e execução das políticas de segurança, a PEC reconhece que o tema exige uma abordagem nacional, intersetorial e democrática. Trata-se de uma tentativa de romper com o improviso e o autoritarismo que caracteriza grande parte das políticas estaduais. A proposta busca institucionalizar um Sistema Nacional de Segurança Pública, integrando União, estados e municípios sob diretrizes comuns de prevenção da violência e garantia de direitos humanos.
A PEC é, portanto, uma resposta estrutural ao colapso ético da segurança brasileira. Ela introduz a possibilidade de um novo pacto federativo em torno da vida — e não da morte. Seu avanço depende, contudo, da mobilização social e política capaz de enfrentar o lobby da militarização e o discurso populista que se alimenta do medo. O Brasil vive hoje um ponto de inflexão. De um lado, o necroestado que naturaliza chacinas e transforma as favelas em campos de extermínio. De outro, a possibilidade de reconstruir um projeto de segurança pública baseado em direitos, sob a coordenação da União e com participação da sociedade civil. A aprovação da PEC da Segurança Pública pode ser o primeiro passo concreto nessa direção — uma tentativa de recuperar o sentido democrático do Estado e reafirmar que nenhuma política pública é legítima se não tiver a vida como princípio.
Enquanto a morte continuar sendo instrumento de governo, não haverá segurança, apenas medo. O desafio, portanto, é político, ético e civilizatório: transformar o Estado que mata em um Estado que cuida, protege e reconhece.
(*) Suelen Aires Gonçalves, militante Antifrracista e Feminista. Doutora em Sociologia (UFRGS), pesquisadora em violência, raça, gênero e políticas públicas.
