O balanço dos 100 dias

Editorial de abril do Jornal Página 13

Lula tomou posse na presidência da República do Brasil em primeiro de janeiro de 2023. Portanto, na data de 10 de abril vão se completar cem dias de governo. Como é convencional, serão publicados muitos balanços e análises. Alguns deles começarão dizendo que o governo de Lula começou antes de primeiro de janeiro. Isto porque, depois de derrotar o cavernícola Jair Bolsonaro, derrota consagrada no dia 30 de outubro de 2022, Lula começou de imediato a tomar decisões e atitudes tipicamente presidenciais.

É o caso de sua participação na 27ª Conferência do Clima das Nações Unidas e, também, da participação de Lula nas negociações junto ao Congresso Nacional, buscando alterar o orçamento 2023 de forma a incluir recursos para pagar a chamada Bolsa Família para milhões de famílias. O governo cavernícola não havia incluído tais recursos na previsão orçamentária e, caso a negociação não fosse feita, Lula iria iniciar seu governo administrando uma crise humanitária de proporções ainda mais graves.

Também no período entre 31 de outubro de 2022 e 1 de janeiro de 2023, Lula dedicou grande atenção ao balanço do governo findante, balanço realizado pelo chamado “governo de transição”, figura prevista na legislação brasileira desde 2002. O resultado do trabalho da equipe de transição está consolidado num relatório que foi tornado público no dia 22 de dezembro de 2022.

No mesmo período, Lula se dedicou principalmente à composição de seu governo e a definição de suas relações com o judiciário e com o legislativo. Nos três casos, aplicou-se a chamada “política de frente ampla”, ou seja, de alianças entre o Partido dos Trabalhadores e um amplo leque de forças, incluindo aí outros partidos de esquerda, partidos de centro, partidos de centro-direita e partidos de direita, bem como setores de partidos, adotando como critério isolar o bolsonarismo.

A maior parte da esquerda brasileira acredita que esta “política de frente ampla” foi um sucesso eleitoral. Mas os resultados eleitorais permitem outras interpretações. A direita venceu as eleições estaduais para governador e assembleias legislativas, assim como venceu as eleições para a Câmara dos Deputados e para o Senado. Além disso, 32.716.740 de brasileiros e brasileiras (20,91% do eleitorado apto, que ao todo soma 156.454.011 pessoas), não compareceram ao processo eleitoral. Além disso, tivemos 3.930.765 votos nulos e 1.769.678 votos em branco. Na sua esmagadora maioria, os que se abstiveram e os que votaram branco e nulo são trabalhadores pobres. Além da abstenção, devemos dedicar muita análise ao fato de o cavernícola ter recebido 49,10% dos votos válidos ou 58.206.322 votos, contra os 50,90% dos votos válidos ou 60.345.825 votos dados a Lula. Ou seja, vencemos, mas por uma diferença menor do que a obtida nas eleições presidenciais realizadas em 2002, 2006, 2010 e 2014. Por tudo isso, podemos dizer que em outubro de 2022 a extrema-direita foi derrotada eleitoralmente, mas apesar da derrota conseguiu o que pode ser apresentado como uma vitória política parcial. Afinal, para além dos resultados estaduais e proporcionais, quase metade do eleitorado ativo votou a favor da continuidade do governo cavernícola, votou em um candidato assumida e explicitamente misógino, racista, antiLGBT, fundamentalista, militarista, neofascista, com um comportamento genocida e pedófilo.

A lição que uma parte da esquerda tirou deste resultado é que, para ampliar nossa votação entre os trabalhadores pobres que não votaram e para reconquistar trabalhadores que votaram em Bolsonaro, seria necessário ter feito uma campanha mais radical. Mas a maior parte da esquerda brasileira tirou outra lição do resultado eleitoral, a saber: que foi certo ter feito amplas alianças e, ainda, de que para governar será necessário fazer alianças ainda mais amplas.

Esta busca por alianças mais amplas incluiu o Supremo Tribunal Federal. Desde antes da eleição de outubro de 2022, Lula vem buscando manter relações pacíficas com o colegiado de 11 ministros que integram a cúpula do poder judiciário brasileiro, o chamado Supremo Tribunal Federal. Vale lembrar que alguns desses ministros deram respaldo tanto ao golpe contra Dilma, quanto à condenação, prisão e interdição eleitoral de Lula, no ano de 2018. Portanto, são responsáveis, direta ou indiretamente, pela vitória da candidatura Bolsonaro em 2018.

A busca por alianças mais amplas incluiu, também, o legislativo federal. Por orientação de Lula ou simplesmente com seu nihil obstat, a bancada do PT no Congresso Nacional votou a favor da reeleição do presidente da Câmara dos Deputados e do presidente do Senado federal. Durante o biênio 2021-2022, ou seja, durante a segunda metade do governo do cavernícola, ambos presidentes (do Senado e da Câmara) contribuíram para dar sustentação legislativa a administração da extrema-direita, além de terem introduzido métodos de governo – como o popularmente designado “orçamento secreto” – que foram na época violentamente criticados pelo PT.

A busca por alianças mais amplas incluiu, finalmente, a indicação de ministros oriundos de partidos que apoiaram Bolsonaro em 2018 e durante seu governo (2019-2022). Além disso, o número de ministras e o número de ministros negros e negras foi menor do que o esperado e muito menor do que o necessário.

O resultado, na composição do ministério estrito senso, foi o seguinte: 17 em 37 são petistas de carteirinha ou vinculados à chamada nação petista; 3 são filiados ao PSB; 3 são filiados ao MDB; 3 são filiados ao PSD; 2 são filiados ao União Brasil (este partido, entretanto, não se considera parte da base do governo no Congresso Nacional); 2 são vinculados ao PDT (embora um destes dois seja na verdade vinculado ao União Brasil, que de fato tem três cadeiras no ministério); 1 é integrante do PCdoB, 1 da Rede e 1 do PSOL (o partido, entretanto, não se considera oficialmente representado no governo).

Além disso, no ministério há 11 mulheres e 26 homens, portanto mais de 2/3 de homens; uma esmagadora maioria de brancos (31 dos 37); 11 dos 37 ministros e ministras têm sua base de atividade política e/ou profissional em algum estado do nordeste, região onde Lula foi proporcionalmente mais votado.

No caso dos ministros petistas, há dois detalhes interessantes: são quase todos do grupo majoritário no Diretório Nacional do Partido ou aliados do grupo majoritário. Para citar um ex-presidente nacional do PT, “frente ampla para fora, partido único para dentro”. Chama atenção, ainda, a ausência de um ministro petista oriundo de Minas Gerais, único estado do sudeste onde Lula venceu as eleições no primeiro e no segundo turno.

O ministério de Lula tomou posse no início de janeiro. Mas até hoje, passados 100 dias de governo, muitos ministros não conseguiram compor suas equipes. Entre outros motivos porque as indicações para os cargos abaixo de cada ministro, em particular seus representantes nas 27 unidades da federação brasileira, podem ajudar ou atrapalhar o objetivo de ter “governabilidade”, ou seja, ter maioria no Congresso Nacional. Isto significa ter 41 dos 80 senadores e 257 dos 513 deputados. Ou, no caso de emendas constitucionais e processos de impeachment, 54 senadores e 342 deputados. No momento em que escrevemos este texto, nenhuma destas maiorias foi alcançada.

Por outro lado, vários ministros tomaram posse em ministérios que haviam sido extintos pelo governo cavernícola. É o caso, por exemplo, do Ministério da Cultura! Fazer existir novamente um ministério que fora extinto exige uma engenharia administrativa, legal e orçamentária que torna ainda mais difícil este início de governo. Além disso, mesmo nos casos onde os ministérios existiam, o orçamento deixado pelo cavernícola é absolutamente inferior ao necessário. Em resumo, a ação de muitos ministérios precisa enfrentar o peso da herança maldita deixado pelo governo da extrema direita: desmonte e recursos à míngua, contrastando com a realidade, que exige intervenção imediata.

Muitos petistas, inclusive no governo, externaram publicamente – no dia 1 de janeiro de 2023 – a certeza de que o “pesadelo havia chegado ao fim”. Ledo engano. No dia 8 de janeiro, dezenas de milhares de criminosos atacaram os prédios do governo federal, do congresso nacional e do supremo tribunal federal. Depois de algumas horas de depredação, foram reprimidos pela polícia. No Brasil, cada unidade da federação tem suas próprias polícias (militar, civil, científica etc.). Para fazer a polícia da capital do país agir contra os criminosos, o presidente Lula foi obrigado a decretar intervenção parcial no Distrito Federal. Não há como deixar de referir-se à diferença de comportamento destas forças policiais, quando se trata de lidar com manifestações da extrema-direita, totalmente diferente do modus operandi adotado frente aos movimentos de esquerda e às comunidades pobres, pretas e periféricas.

Posteriormente, o presidente do Supremo Tribunal Federal decretou o afastamento temporário do governador do Distrito Federal. E, dias depois, foi a vez do comandante do Exército ser demitido e substituído. No seu lugar, assumiu um novo comandante, que deu declarações públicas legalistas, mas cujo histórico e declarações anteriores indicam cumplicidade com a extrema direita (aliás, a esmagadora maioria da cúpula militar é vinculada, espiritual e praticamente, à extrema-direita golpista).

O ataque da extrema-direita não foi um ato espontâneo, nem inesperado. No dia 12 de dezembro de 2022, após a diplomação de Lula (ato em que a justiça reconhece que Lula foi vencedor e está apto a tomar posse), a extrema direita já havia promovido um quebra-quebra na cidade de Brasília, contando com a cumplicidade do ainda presidente da República, do governo do Distrito Federal, de setores das forças armadas e das polícias. Além desse precedente, no final de dezembro de 2022 e início de janeiro de 2023, as redes (anti)sociais da extrema-direita foram tomadas por mensagens arregimentando pessoas para vir a Brasília. Tratou-se, portanto, de uma operação de guerra, financiada por empresários, coordenada por uma aliança cívico-militar e perpetrado por alguns milhares de neofascistas, que usaram o acampamento defronte ao Quartel General do Exército como base de operações.

Desde o ocorrido no dia 8 de janeiro, está patente a necessidade de processar, julgar e punir quem financiou as caravanas e os acampamentos da extrema-direita; quem, por ação ou omissão, facilitou o acesso da extrema direita à Esplanada dos Ministérios, onde ficam os três prédios atacados; assim como processar, julgar e punir quem invadiu e depredou os três palácios. Ficou patente, também, a necessidade de uma revisão completa dos protocolos de segurança e inteligência do governo federal.

Parte disto vem sendo feito. Mas está evidente que estamos muito longe do necessário. Basta dizer que até agora segue no cargo o ministro da Defesa José Múcio Monteiro, que chegou a dizer que os acampamentos da extrema-direita em frente aos quartéis, em todo o país, eram manifestações democráticas, que iriam se esvaziar naturalmente.

No terreno militar, assim como em outros terrenos, o governo Lula ainda está travando uma “guerra de posição”, parecida com aquela que se precisa fazer, quando se reocupa uma cidade que fora tomada por um exército invasor. É preciso ir de casa em casa, desalojando franco-atiradores, desmontando minas e armadilhas de todo tipo. Uma destas armadilhas está no Banco Central.  Legislação aprovada durante o golpe concedeu uma suposta “independência” ao Banco Central, que segue hoje presidido por alguém nomeado pelo anterior presidente da República. Como a legislação lhe concede garantias, o presidente do Banco Central mantém uma política de juros absolutamente alucinada, cujo único propósito é transferir recursos para o setor financeiro.

Esta situação – somada a herança maldita recebida do governo anterior – tem sido utilizada como explicação para a atitude conservadora adotada pela equipe econômica do governo. Isto vem se materializando em uma série de medidas, por exemplo, no reajuste do salário mínimo, criticado publicamente por Sérgio Nobre, presidente da Central Única dos Trabalhadores. Não apenas o valor foi abaixo do esperado; também se esperava que o reajuste fosse concedido de imediato, inclusive como forma de compensar o confisco salarial resultante da inflação.

O mesmo conservadorismo vem sendo adotado pela equipe dirigente da Petrobrás, frustrando aqueles que defendem que a estatal cumpra papel central no processo de retomada do crescimento, do desenvolvimento e da reindustrialização.

As duas questões de fundo, envolvidas na polêmica acerca da política econômica, são as seguintes: o governo vai tomar medidas imediatas e de grande impacto ou vai tomar medidas gradualistas, cujo impacto se fará sentir, na melhor das hipóteses, no final de 2024? O governo depositará suas expectativas no investimento público ou no estímulo ao investimento privado?

O presidente Lula tem dado seguidas declarações e adotado inúmeros gestos que indicam que ele tem pressa. Já a equipe do ministério da Fazenda parece operar com outro horizonte, como demonstra a proposta de arcabouço fiscal apresentada pelo Ministério da Fazenda. A depender da visão que prevaleça, vai se criando um cenário terrível, que pode levar a uma vitória da oposição nas eleições municipal de 2024, antessala das eleições presidenciais de 2026.

Está ficando evidente que algumas das alianças realizadas para ganhar a eleição presidencial estão cobrando seu preço, preço que é pago de diversas formas, entre os quais uma influência da direita na composição e em algumas das políticas do governo, influência que não contribui para reverter a imensa crise econômica, social e cultural que o Brasil segue vivendo, como resultado do golpismo e do bolsonarismo. E como Lula ganhou de Bolsonaro por apenas 2 milhões de votos (60 milhões contra 58 milhões), qualquer demora em apresentar resultados efetivos, numa escala politicamente significativo, pode ser politicamente fatal.

Um exemplo da influência da direita nas políticas do governo está, paradoxalmente, em um ministério comandado por um petista, o ministério da Educação. Até agora o ministro não revogou a chamada reforma do ensino médio, reforma adotada no governo golpista de Michel Temer. Pelo contrário, o ministro compôs uma equipe onde predominam representantes das empresas privadas que atuam na educação, empresas que defendem a tal reforma.

Enfim, o quadro dos primeiros 100 dias é bastante complexo. E, se depender dos fatores estritamente institucionais, é difícil que a situação melhore substancialmente nos 100 dias seguintes. Por isto, é preciso muita atenção para três variáveis: o presidente Lula, os movimentos sociais e a situação internacional.

O presidente Lula tem sido até agora, além de capitão, uma espécie de ponta-esquerda de seu próprio governo. Os movimentos sociais, por sua vez, ainda estão, com honrosas exceções, em digamos um compasso de espera. Já a situação internacional está em crescente ebulição. Depois de um sinal confuso acerca da guerra da Ucrânia – em que o representante do Brasil na ONU votou a favor de uma resolução que não foi apoiada pelos demais parceiros do Brasil no BRICS – crescem as expectativas de que da China possa vir um apoio expressivo no sentido da reindustrialização. Destas três variáveis (Lula, os movimentos e o cenário internacional) podem vir novidades que contribuam para alterar a correlação de forças. Mas muita coisa depende de como o PT vai se posicionar. Com a palavra, o Diretório Nacional do Partido, que vai se reunir no dia 10 de abril de 2023.

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