O golpe de Estado parlamentar e a sublevação popular no Peru

Por Daniel Araújo Valença (*)

No ano em que o Peru alcançava seu bicentenário, Pedro Castillo, o Peru Libre (partido autoproclamado marxista-leninista-mariateguista) e o campesinato indígena derrubavam a maior unidade das burguesias peruanas das últimas décadas. Em 2021, em um segundo turno polarizado entre uma candidatura de esquerda que invocava a nacionalização do petróleo e gás e a convocação de uma assembleia constituinte e uma de extrema direita, liderada pela filha do ditador Alberto Fujimori, a Keiko Fujimori, Lima e as elites locais votavam em um projeto que reivindicava a ditadura neoliberal corrupta e sanguinária da década de 90, enquanto os rincões dos Andes diziam “ya basta”.

A vitória sobre o fujimorismo no segundo turno das eleições presidenciais peruanas provou, uma vez mais, que as elites latino-americanas não têm pudor em flertar com o fascismo para manter a superexploração das classes trabalhadoras. E, também, que inexiste compromisso democrático por parte de tais setores. Derrotados nas urnas, não aceitaram o resultado: eleito, Pedro Castillo lutou por mais de um mês para ser considerado presidente, período no qual meios empresariais de comunicação, militares, e entidades patronais fizeram de tudo para impedir a posse, ou, ao menos, fragilizar o governo eleito e fazê-lo recuar quanto à plataforma que saiu das urnas.

Em verdade, desde o segundo turno que tal programa já fora flexibilizado para enfrentar a grande aliança patronal que se formou ao redor de Fujimori.

Eleito nas urnas, Castillo passou por todo um terrorismo midiático, que bradava a alta da inflação, a quebra da economia, o renascimento e retorno do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso etc.

Sua posse, portanto, se deu mediada por uma tutela militar e recuo programático. Apesar disto, Castillo assumiu e, ao nomear seu gabinete, atribuiu a Guido Bellido, marxista do Peru Libre, o cargo de primeiro-ministro e a Héctor Béjar, advogado e ex-guerrilheiro, o das relações exteriores, compondo, portanto, um ministério abertamente de esquerda.

Como consequência, as burguesias, a imprensa limeira, o sistema de justiça e o congresso desataram uma verdadeira declaração de guerra ao governo. Três caminhos possíveis apresentavam-se no horizonte: a cooptação do governo  pelos derrotados nas urnas e a possibilidade de seu posterior enfraquecimento ainda em maiores dimensões; o avanço da escalada golpista e a derrubada relâmpago do governo Castillo; uma direção política do governo voltada a coesionar as classes trabalhadoras rurais e urbanas e, com o protagonismo do campesinato indígena, alcançar um grau de mobilização a garantir o programa eleito nas urnas.

Castillo, porém, optou pela cooptação. Bellido durou pouco mais de dois meses; logo após, assumiu Mirtha Vásquez, de centro-esquerda. Mais tarde, o presidente concretizou seu giro político e entregou o gabinete ao comando de Héctor Valer, um congressista de extrema-direita.

O cavalo de pau perpetrado por Castilho significou, de um lado, seu afastamento e perda de bases populares e, de outro, a procura eterna por grupos de direita que sustentassem o governo contra o próximo golpe em curso, seja sua origem no parlamento, no ministério público ou na imprensa.

Ao enfrentar a mais recente moção de vacância, Castilho tomou a pior decisão possível. Fechou o congresso – poderia, por exemplo, ter convocado novas eleições, decretou reestruturação do sistema de justiça e impôs toque de recolher. Em nada diferiu do golpe de Estado de Alberto Fujimori em 1992, exceto que, à época, o ditador contava com o apoio do patronato para implementar o programa neoliberal, mesmo que para isso fosse necessário uma ditadura.

A oposição de direita, então, pode finalmente interpor o seu golpe de Estado. Antecipou a sessão para a votação da moção de vacância, não notificou a defesa de Castillo, cometendo várias infrações ao devido processo legal deste procedimento legislativo, e com 101 votos dos 130 legisladores destituiu Castillo, que, logo após, foi preso, apesar dos protestos do México, de que o direito ao asilo do presidente teria sido violado.

A sua Vice, Dina Boluarte, que há tempos já havia dito não coincidir com os ideais do Peru Libre, partido ao qual estava filiada ao ser eleita em 2021, e, com tal declaração, mostrar-se como uma boa alternativa em caso de sucesso do golpe de Estado, em um primeiro momento antecipou que não convocaria eleições e seguiria em um governo de “conciliação nacional”. Abraçou-se à direita e procurou o arcebispo de Lima, para demonstrar essa busca pela “paz social”.

Ocorre que, ato contínuo ao golpe de Estado, vindo das organizações sociais, movimentos e, principalmente, surgindo de maneira espontânea, começaram a aparecer os primeiros focos de resistência. As mobilizações cresceram e, em poucos dias, rodovias e aeroportos estavam tomados pelo povo. Os protestos se iniciaram no sul do país, mas rapidamente se espalharam até Lima. Na institucionalidade, Boluarte anunciou antecipação de eleições, medida não seguida pelo congresso, o que agravou ainda mais a crise, acentuada também por ela ter decretado estado de emergência em todo o país por trinta dias. Ao todo, já são cerca de 20 pessoas assassinadas pela repressão estatal.

Nas ruas, as principais bandeiras que sustentam o enfrentamento à repressão são a antecipação das eleições, a convocação de assembleia constituinte e a liberdade para Castillo. As mobilizações são a oportunidade de a esquerda ganhar fôlego para o próximo pleito que, necessariamente, não será em 2026.

Para nós, fica a lição de que as vitórias das esquerdas neste segundo ciclo de governos populares na região não constituem uma repetição do primeiro, iniciado com a vitória de Chávez em 1998. Agora, há uma crise do capital, com a consequente necessidade das burguesias de aumentar a exploração sobre as classes trabalhadoras e, ademais, uma extrema direita organizada e militante. Nossos governos devem, de um lado, lutar de acordo com a correlação de forças na qual estão inseridos; porém, de outro, fazê-lo de modo a alterar a correlação de forças, ao invés de capitular perante ela.

(*) Daniel Araújo Valença é professor da Graduação e Mestrado em Direito da UFERSA, Vice-Presidente do PT/RN

 

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