O livro ‘O imbecil coletivo’ espelha com rigor a ultradireita atual do Brasil

Olavo de Carvalho, ao desqualificar a esquerda, condicionou a direita no que há de pior (advertência: a leitura do livro faz mal à saúde mental)

Por Paulo Sérgio de Proença (*)

Em meados dos anos 1990, Olavo de Carvalho publica O imbecil coletivo, com o objetivo de atacar, desqualificar e humilhar intelectuais de esquerda. O livro, escrito com bílis e ressentimento, pretende ser contraponto ao que escreveu Gramsci sobre tipos e papeis de intelectuais no complexo das dinâmicas sociais.

Para o autor brasileiro, o pensamento é individual e a exclusiva fonte de conhecimento, postulado que põe o indivíduo no centro. Essa tese reforça o molde capitalista, com evidentes deformações das potencialidades humanas: caos.

Olavo, autoproclamado filósofo, tinha a intenção de “situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da história das ideias no Ocidente, num período que vai de Epicuro até a ‘Nova Retórica’ (sic) de Chaim Perelman”[1]. A ousadia é proporcional ao embuste!

Além disso, tinha ele a pretensão de acabar com a hegemonia intelectual da esquerda e proporcionar à direita a recuperação do espaço perdido a partir dos anos 1980, com a abertura democrática e a ocupação da cena política por diversos movimentos sociais, cujas reivindicações foram acolhidas pela Constituição, ainda que parcialmente.

Já muito se discutiu sobre as ideias de Carvalho. Aqui se pretende não reproduzir essa polêmica nem expandir considerações acadêmicas, mas observar que as ideias desse senhor formataram a extrema direita atual, que passou a constituir, de fato, a imbecilidade coletiva. Ironias da história, essa despudorada.

Ele define assim o imbecil coletivo: “É uma coletividade de pessoas […] que se reúnem movidas pelo desejo comum de imbecilizar-se umas às outras […] um fenômeno coletivo […] repetição obsessiva de lugares comuns e cacoetes ideológicos, que, sem comprometer essencialmente o QI de suas vítimas, as deixa temporariamente impedidas do uso da inteligência”. Não é que a definição cai como uma luva ao perfil de bolsonaristas?

Quanto ao impedimento temporário do uso da inteligência, diz o jornalista William Waak (não é esquerdista, ao que consta), a respeito dos adeptos do ex-presidente: “A bolha é o lugar onde todos pensam igual. E onde se policia o que os outros pensam […] as pessoas querem consumir apenas as informações que confirmam suas opiniões”[2].

Em outras palavras, a bolha é a comunidade que reproduz de forma obsessiva os “cacoetes ideológicos” desse coletivo. Carvalho, errando o alvo, acertou – ou melhor: amestrou.

Marcelo Soares, também jornalista, confirma com dados estatísticos essa constatação sobre a bolha direitista: “97% das interações ocorrem entre contas que interagem apenas dentro dela”[3].

A recusa em abrir a janela e oxigenar ideias resulta no que se viu em ações protagonizadas por direitistas de diversa extração, a começar pelos parlamentares. É inacreditável como aliam a incompetência à má-fé, com desdobramentos fatais para o país.

O despreparo deles é vexatório. Para expô-los ao ridículo, bastam argumentos que sejam no mínimo razoáveis, como se pode deduzir dos embates recentes em sessões diversas e comissões de inquérito. Saem de cena com o rabo entre as pernas, como diria minha avó. Vai aqui reconhecimento a deputadas e senadoras progressistas que, além de convicto preparo, têm coragem para combater o machismo tóxico e odioso de seus pares.

A recusa a evidências científicas mostra a inconsistência da turba. O negacionismo atingiu o máximo da virulência no processo de imbecilização da tropa. Centenas de pessoas durante a pandemia morreram por causa da negação da eficácia das medidas protetivas recomendadas por autoridades médicas e lançaram desconfiança contra vacinas em geral.

Essa imbecilidade vitimou muitos membros da gang, inclusive o próprio Olavo, que estava com Covid quando morreu, em janeiro de 2022 (a causa não foi divulgada. Por quê?). Ele escreveu: “Dúvida cruel. O vírus mocoronga (sic) mata mesmo as pessoas ou só as ajuda a entrar nas estatísticas?”[4]. As duas coisas, mocorongo (pena ele estar morto).

O grande guru do clã Bolsonaro afirmou que não há evidências que contrariam o terraplanismo[5]. Parvoíce do tipo ocorreu na investida criminosa contra Paulo Freire (cuja pedagogia é coletiva), prestigiado intelectual brasileiro, chamado de energúmeno pelo chefe da súcia ultradireitista. Haja paciência! Não há limites para a imbecilidade?

Beiramos o caos quando a inópia mental se alia à violência, também inspirada em Olavo, em cujos escritos e postagens destilava ódio; em uma delas, aconselhava a “botar para fora, da maneira mais humilhante possível, os farsantes e usurpadores. Isso exige militância organizada e PRESENÇA FÍSICA” (assim mesmo, em maiúsculas, para exponenciar virulência).

A humilhação é irmã da violência e se combina com outra estratégia olavista, a do bode expiatório, alvo sobre o qual recai ódio concentrado de ressentimentos, materializados em ataques contra a honra, com fake News. Esses alvos foram escolhidos a partir da condição de representarem efetivo obstáculo contra as pretensões da bolha: STF, TSE, Lula, Alexandre de Moraes, Flávio Dino. Quem será o próximo?

A “comunidade que reproduz de forma obsessiva cacoetes ideológicos” esteve tão bem representada pelos figurantes que marcharam pelas ruas, acamparam na frente de quarteis, cantaram o Hino Nacional para pneu, entraram em êxtase quando circularam falsas notícias como a demissão do Ministro Moraes, do STF e outra, segundo a qual Lula tinha morrido e estava representado por um clone.

Só um processo de doutrinação levado a cabo com êxito podia expor a inépcia de adeptos que, com fervor religioso, elegeram o seu mito, corrupto e corruptor, em processo que faz de crimes abjetos a máxima virtude (quem abona essas abominações tem igual estatura moral).

Essa talvez tenha sido a intenção de Olavo de Carvalho, o patrono da imbecilidade coletiva que formatou a ultradireita no Brasil. Reconheça-se o mérito.

(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA


[1] As citações foram tiradas do e-book O imbecil coletivo da editora Lelivros, disponível na internet.

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/waack-nao-existe-fake-news-ou-mesmo-fatos-para-os-integrantes-de-uma-bolha/.

[3] https://infoamazonia.org/2022/10/26/bolhanaro-97-das-interacoes-de-apoiadores-de-bolsonaro-nas-redes-sociais-ocorrem-sem-sair-da-propria-bolha/.

[4] https://www.brasildefato.com.br/2022/01/25/morre-olavo-de-carvalho-astrologo-estava-com-covid-causa-da-morte-nao-foi-divulgada.

[5] https://www.metropoles.com/brasil/olavo-de-carvalho-nao-ha-nada-que-refute-que-a-terra-e-plana.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *