Por Antônio Carlos Rodrigues de Moraes (Toninho) *
“Infeliz a nação que precisa de heróis”, escreveu B. Brecht na peça Vida de Galileu. Em seu discurso do dia 10 de março passado, creio que Lula soube muito bem distanciar-se da figura do herói desnecessário, na medida em que ainda que dolorido pelas feridas causadas pela prisão injusta e pelas outras desgraças decorrentes como a morte da esposa, do irmão e do neto, considerou que sua dor nem de longe se equipara à de milhões de brasileiros que novamente são assombrados pela fome e pelo desemprego e, ainda pela ameaça de morte e a perda de entes queridos pela pandemia. Se há heroísmo, só pode ser compartilhado. Disse ele:
“Então, se tem um brasileiro que tem razão de ter muitas e profundas mágoas, sou eu. Mas não tenho. Sinceramente, eu não tenho porque o sofrimento que o povo brasileiro está passando, o sofrimento que as pessoas pobres estão passando neste país é infinitamente maior do que qualquer crime que cometeram contra mim. É maior do que cada dor que eu sentia quando estava preso na Polícia Federal.”
Mas há algo que mais o diferencia do herói desnecessário, que é sua própria disposição de falar e lutar. O herói, silenciado no tempo, não mais fala, só é eventualmente falado. No filme Cidade sem Passado de Michael Verhoeven, de 1990, a protagonista Sonja, historiadora, toma consciência ao final, no ato de homenagem, que os próceres de sua cidade lhe concedem, da armadilha em que tentam enredá-la e roda a baiana. Homenageá-la significava a tentativa de prendê-la no tempo como peça de museu, tirando-lhe a possibilidade de continuar incomodando. Certamente quando Lula morrer ou puder ser definitivamente silenciado, não faltarão retumbantes homenagens, até mesmo dos seus mais figadais inimigos políticos, aliviados com o seu silêncio.
Como ainda não é possível isso, precisa ser de alguma forma ocultado. Só que o referido discurso repercutiu de forma assombrosa dentro e fora do País. No entanto, a mesma mídia que deu publicidade a ele no dia do discurso, parou por aí. Nenhum canal da grande mídia o convidou para entrevista. Mas as repercussões dadas ao seu discurso e sua condição de recuperação de seus direitos de cidadania e, sobretudo, a entrevista dada na CNN a uma das mais conceituadas jornalistas do mundo, Christiane Amanpour, foram suficientes para exaltar Lula e rebaixar a mídia pátria que recentemente tenta reassumir sua identidade golpista com o start agora da Folha de São Paulo.
O que distingue um líder como o Lula e um herói é o tempo do ato requerido para sua qualificação. O herói qualifica-se por suas ações pretéritas, e por isso mesmo é silencioso. O líder está sempre voltado ao futuro possível e, por isso mesmo continua falando, despertando esperanças em uns e incomodando outros, dependendo de sua identificação. Precisamos repensar o conceito de representação a que estamos viciados dentro da democracia burguesa que a define apenas pelo voto. Representante é o que ganhou votos em número suficiente para ser eleito, independentemente de seus atos políticos a posteriori. A repercussão do discurso de Lula demonstra que ele é um líder que representa grande parte da sociedade brasileira e mundial, independentemente de voto. Sua representação se dá pela identificação, da parte dele com as pessoas e destas com ele. Ele representa os pobres, não porque sabe falar da pobreza, mas porque o pobre fala por ele. Representar não é discursar sobre, mas falar o que as pessoas representadas gostariam de falar.
O que garante esta verdadeira representação é a fidelidade aos referenciais de vida de cada um, mesmo quando submetido a múltiplas identidades construídas e sobrepostas no exercício da política. Virgil Georghiu escreveu na década de 1940 um romance – A 25ª Hora – transposta para as telas na década de 1960 em filme com atuação magistral de Anthony Quinn, cujo protagonista Iohann Moritz, um simples camponês romeno é preso durante a segunda guerra e levado para um campo de concentração como judeu, porque o gendarme, delegado da aldeia em que morava, estava interessado em afastá-lo de sua linda esposa que não lhe dava mole. Além de judeu, teve de assumir várias outras identidades que lhe foram impostas nos inúmeros campos pelos quais passou e que justificava a sua condição de prisioneiro: judeu na Romênia, espião romeno na Hungria e até mesmo reconhecido em campo de concentração na Alemanha, como representante legítimo da raça ariana e como tal obrigado a fazer parte da SS, o que lhe valeu um julgamento em Nuremberg no final da guerra e sua prisão num campo de concentração norte americano. Apesar disso, sempre se reconhecia como aquele camponês simples que só desejava voltar para casa junto à esposa e seus dois filhos. Eram os seus referenciais de vida que o nortearam em todo o sofrimento a que foi submetido e que lhe possibilitou vencer todos os sistemas moedores de singularidades.
Lula mostrou os referenciais com os quais se identificou em seus longos dias de prisão. Expressou-os em seu citado discurso:
“Eu digo sempre que eu sou, na política, um resultado da consciência política da classe trabalhadora brasileira. Na hora que ela evoluiu, eu evoluí.”
Por isso, os seus agradecimentos calorosos a todos os que ficaram durante todo o tempo na vigília em Curitiba e que diariamente não lhe permitiam esquecer de seus referenciais com seu “bom dia”, “boa noite”.
Há muitos na vida política, com origem de classe semelhante a Lula, mas que pagaram pedágio para progredirem. Assim como muitos na prisão pagaram o preço da liberdade com a delação encomendada. Lula, ao contrário, não quis sair do país, nem prisão domiciliar ele aceitou, assim como não renegou sua origem de classe. Pode ter negociado, em seus governos, para garantir a tal da governabilidade, até mais do que o desejado por seus representados, mas não negociou sua identidade. E é isso que lhe dá força de representação, que dá à sua fala uma penetração maior que as melhores aulas dos mestres acadêmicos.
A experiência de Lula e sua atual presença na vida política incitam-nos a refletir, além do conceito de representação, sobre a relação entre as individualidades e o universal nos processos de mudança social. Óbvio que não podemos conceber o indivíduo fora de seu contexto. Cada um de nós é filho de um tempo histórico bem definido e é este tempo que nos dá os referenciais que constroem nossas identidades. Mas, isto não justifica qualquer destruição das singularidades, transformando agentes da mudança em autômatos obedientes a um ideário imposto de fora, como nos regimes totalitários. Não há ação verdadeiramente construtora de uma sociedade mais justa e solidária, sem que cada indivíduo seja respeitado em sua singularidade que, ao invés de assumir inconsciente e mecanicamente os ideais impostos pelo grupo a que pertence, os interioriza e vivencia como seus. Tanto as singularidades como o universal estão em continuo processo de construção em relação nunca unilateral mas dialética. Dessa forma podemos sim considerar o Lula decisivamente necessário no atual estágio de lutas em que todos estamos engajados sem cairmos na tradicional crítica ao personalismo.
( *) a.cromo@terra.com.br
(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.