O episódio faz parte da saga “No Reino da Carapinha”
Por Fausto Antonio
Epigrafia do Reino das Águas Escuras
Monteiro Lobato epígrafou as “Águas Claras”. Eu, filho de nobre linhagem de trabalhadores negros – carvoeiros e, ao mesmo tempo, maravilhado com a quase totalidade e beleza dos nossos rios de águas escuras e barrentas, epigrafico; edifico, o que vejo e, sobretudo, o que temporariamente ou historicamente sou.
“No Reino da Carapinha”, “Na Árvore de Palavras”, na “Máscara Falante” e no “Kakadekos”, textos infantis, o “Brasil profundo” e/ou negro-popular é sinônimo do sistema cultural negro-brasileiro que é dinâmico, milenar, complexo, sofisticado, político e filosófico.
Não há manhã, tarde e noite que os netinhos passem sem histórias ou aventuras; assim que vovó griota , todos se aproximam dela e entram,então, no Reino Encantado da Carapinha. Os netinhos chegam compondo o círculo; os mais velhos, quando estão presentes, também integram igualmente o círculo. E nesse instante que vovó Doca , com a arte de encantar, rega o jardim com a água do mistério; os netinhos são as sementes.
Uma vez, no ato de regar as mentes ou sementes, Oubi, Kamau, Inaê, Sayomi, Kaya e os demais netinhos estavam na sala e vovó Doca, depois do café da tarde, respondeu à pergunta feita por Oubi. Conforme o desejo dos netinhos em círculo, ele indagou, vovó, o mundo é um tambor? Vovó Doca não foi direto ao ponto. Ela riu e falou que repetiria o que ouviu e aprendeu com os mais velhos.
Os netinhos ficaram atentos e o círculo, que não é uma mera forma, se fez como ressonância e expansão. Vovó bateu as mãos três vezes e repetiu: o tambor é tim-tim por tim-tim e tam-tam por tam-tam. Os ouvidos internos das crianças ficaram prontos para ouvir as palavras mágicas. No Reino da Carapinha, as mágicas são feitas , há muito tempo, por palavras que adormecem e acordam os netinhos e deixam tudo fixado no coração deles.
Assim, a mágica segue e chega também a quem acessar e ouvir o tim-tim -tan-tan. Depois de materializar o tambor, no tim-tim por tim-tim e no tan-tam por tam-tam, que permitia a compreensão do mito, prosseguiu. O tambor, de acordo com o mito ancestral da criação do mundo, nasceu do umbigo do incriado. Vovó questionou Sayomi, o incriado é o que sempre existiu? Sim, perfeito minha netinha, sempre existiu.
Vovó Doca continuou. Como falei e toda criança sabe, o tambor é a vida. Pois bem, no círculo infinito, zero ou no antes do antes, quanto havia apenas o espaço e o tempo contidos na voz do silêncio; o espírito, o ritmo circular, uma vibração, bateu três vezes as mãos no Umbigo do sem fim, o primeiro tambor, que era pai e mãe de tudo. Tudo bem, meus netinhos? Houve silêncio; tudo estava fixado, até o momento, no coraçãozinho dos netinhos. Então a matriarca e sábia completou.
O umbigo, o tambor primordial, ressoou o um; tam, o três; tam-tan-tam e depois o sete; tam-tam-tam-tam-tam-tam-tam! Assim nasceu a mãe do mundo, na semente e no ser mente, fertilizada pelo Eterno, vibrado no couro-ouro do cordão umbilical, em cuja envergadura prateada, meus netinhos, estava confiada a existência de infinitos tambores, que ligavam os três tambores primordiais em um.
O tambor, a semelhança do pai- mãe, depois de percutido pelas mãos, gera a vida e cria e recria o mundo. O mundo é um tambor? Quem quiser a resposta terá de percutir três vezes o próprio umbigo. O tambor-mundo responderá, como eco ou voz dos mistérios, tim -tim por tim – tim e tan- tan por tan-tan. Aberta e jamais encerrada a transmissão-circulação do mito, vovó Doca bateu três vezes as mãos e, num sincronizado movimento, todos moveram os braços, as pernas e abriram lentamente os olhos e tinham, na memória encarapinhada e no coração, o mistério do mito da origem do tambor-umbigo ou da vida.
A tarde era agora noite, vovó, no entanto-encanto, teve tempo para dizer que, No Reino da Carapinha, o mito adormece e acorda as crianças para o mistério dos mistérios.
(*) Fausto Antonio é professor da Unilab – Bahia, escritor, poeta e dramaturgo
Referências
ANTONIO, Fausto.No Reino da Carapinha. São Paulo: Editora Ciclo Contínuo, 2018.
_________. A Máscara falante. Texto infantil Londrina: Galileu Edições, 2020.
_________. KAKADEKOS em Ebook para download gratuito: https://www.homeeditora.com/ebook-2023/2e0474f3-257d-472a-a7db-f4ba942b9561
Respostas de 3
Perfeito Fausto.
Estou adorando ler seus livros.
Muito grato irmão e mestre.
Importante texto, para encantar as crianças e adultos. E no ressoar do tambor
Belo texto que toca na magia que sempre nos encanta. Parabéns Fausto