O terceiro turno

Por Silvio Queiroz (*)

A extrema-direita não esperou mais que umas poucas horas para entrar em campo no terceiro turno da eleição. Enquanto a gente ainda festejava a vitória suada de domingo, a franja mais radical do bolsonarismo começava a bloquear estradas pelo país. Amanhecemos na segunda, meio ainda na ressaca cívica, com um ensaio de caos em marcha.

Como seria de esperar, até pelo que vimos durante a votação, a autoridade responsável por garantir a livre circulação nas rodovias federais limitou-se a assistir – quando não confraternizou com a baderna. A mesma PRF, zelosa e diligente para “fiscalizar” o deslocamento de ônibus com eleitores, ignorando solenemente determinações do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, permitiu que se chegasse à noite de segunda-feira com bloqueios praticamente em todo o país – inclusive no acesso ao aeroporto de Guarulhos.

Já vimos algumas tantas vezes esse tipo de ação buscar a desestabilização e o estrangulamento de governos de esquerda. Para não estender a conversa, esses bloqueios foram parte importante na construção do golpe contra Salvador Allende, no Chile, no 11 de setembro de 1973. O “original”, aqui, é que o alvo é impedir a posse de um governo recém-eleito – no limite. O bolsonarismo radical aposta publicamente no caos, desafia o nosso lado a, talvez, aceitar um confronto capaz de convulsionar o país.

Um dos combustíveis – quase ao pé da letra, no caso – desse ensaio “insurrecional” é o silêncio sinistro mantido desde as 20h de domingo pelo presidente derrotado. Segundo o que circulou desde então nos bastidores de Brasília, diferentes setores do governo e dos aliados tentavam em vão convencer Jair Bolsonaro a reconhecer a derrota, o que esvaziaria a baderna da ultradireita e desautorizaria a “resistência” golpista à vitória e à posse de Lula.

Sem a pretensão de “enxergar” com clarividência esse movimento pós-eleitoral, me arrisco a dizer que entendo a tática do lado de lá. O silêncio do derrotado, a inércia da PRF & adjacências, a tolerância do Executivo federal, a desobediência escandalosa às determinações do TSE e do STF. Mais que tudo a impunidade do diretor bolsonarista da PRF, que se permitiu até postar nas redes sociais pedido de votos para o cavernícola.

Confesso, porém, que não entendo a passividade política do nosso lado. Na conversa tensa que se desenrola por aqui desde o começo dessa crise, vejo muita gente reduzindo o episódio a algo como “birra” de um mau perdedor, um moleque mimado. Na linha das “orientações” distribuídas pelo (“nosso”) guru das redes, André Janones, o que se diz é isso “acaba já já”, que devemos “ignorar”, porque “Lula foi eleito e tomará posse” – e então, como por encanto, teremos pela frente uma alameda florida. Até lá, deixamos o enfrentamento da arruaça golpista nas mãos de “Xandão da massa”.

A passividade política da nossa parte me parece temerária. Não se trata, aqui, de temer que isso possa de fato permitir um golpe – não no sentido clássico, com tanques na rua, como vimos em 64. O que está em andamento, a meu ver, é o ensaio, o exercício de uma força política extremista e paramiliciana. Enquanto o “mito” não entregava os pontos, eles se adestravam para, adiante, desestabilizar, minar e eventualmente estrangular o governo Lula. É disso que se trata. Da noite de domingo para cá, foram eles mobilizando e arregimentando.

Parece perigosamente tímido o silêncio político do nosso campo. É urgente tomar a iniciativa política – repito a palavra. Precisamos, também nós, mobilizar e arregimentar. Denunciar a convivência cúmplice das forças de segurança com a anarquia. Voltar às ruas e reafirmar que NÓS ganhamos a eleição, Que, apesar de tudo, NÓS tivemos a maioria dos votos, por mínima que tenha sido.

Em 2012/13 e dali em diante, abdicamos de disputar as ruas, Deixamos para eles e depositamos a confiança no tal “espírito republicano”, no “funcionamento das instituições”. Demorou dois anos, mas vimos no que deu. Primeiro, Aécio contestou a própria derrota. Depois, Eduardo Cunha comandou, da presidência da Câmara, o cerco e aniquilamento do governo Dilma. Por fim, o golpe se consumou com o “impeachment” – por sinal, sacramentado pelo Supremo.

Errar é o preço de quem faz política, e para aprender com os erros é que se faz a crítica e a autocrítica. Insistir, reiterar, reinventar (palavra da moda) os erros é outra coisa.

Sem comparar diretamente os momentos e as circunstâncias, não consigo deixar de me lembrar de março de 64. Dias antes de o general Mourão mandar as tropas de Minas para o Rio e consumar a quartelada contra João Goulart, Luiz Carlos Prestes dava entrevistas à TV e fazia conferências públicas como secretário-geral de um Partido Comunista semilegal. Repetia que “se a reação levantar a cabeça, nós a cortaremos de imediato”. Garantia que não havia “condições políticas” para um golpe, mas que, se se atrevessem, os golpistas teriam “as cabeças cortadas”.

Com quem o Velho contava para “decapitar” a reação? Com a reconhecida penetração que o PCB tinha naquela altura? Com a capacidade de mobilização do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), dirigido por comunuistas e por setores do trabalhismo próximos a Leonel Brizola? Com a UNE, as Ligas Camponeses e outras organizações sociais de massa? Não: a missão cabia ao “dispositivo militar” de Jango, chefiado pelo general Jair Dantas.

Não houve cabeças cortadas nem golpe abortado. O que veio depois foram duas décadas de resistência penosa, ao custo da vida de centenas de militantes e combatentes de duas ou três gerações.

(*) Silvio Queiroz é coordenador-geral do Sindicato dos Jornalistas do DF e militante do PT/AE

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