Texto de Valter Pomar, publicado originalmente em seu blog pessoal, em que comenta artigo de Pepe Escobar sobre a Vaza Jato.
Pepe Escobar e o Morogate
Acompanho com muito interesse tudo que Pepe Escobar escreve sobre os conflitos EUA/China/Rússia, sobre o Irã e a Eurásia. E achei ótimo que ele tenha aberto uma janela para tratar do Morogate.
Concordo com parte do que Pepe Escobar escreveu a respeito, no artigo intitulado “Brazilgate está se transformando no Russiagate 2.0”, divulgado originalmente em inglês.
Aqui vou falar basicamente daquilo de que divirjo, baseando-me na tradução divulgada por 247.
Começo pelo menos importante: tomar como fonte confiável um mitômano e adepto de teorias conspiratórias, cujo comportamento de agente provocateur já foi denunciado inúmeras vezes, alguém que é apresentado na tradução como “advogado internacional suíço e conselheiro da ONU”.
Passo ao mais importante: o que Pepe Escobar fala acerca do Morogate.
Ele destaca que o vazamento divulgado por Intercept confirma “que a máquina judicial / de lei da investigação unilateral da lava jato era de fato uma farsa maciça e um negócio criminoso”.
Pepe Escobar lembra que “a gênese do lava jato envolve (…) o governo dos Estados Unidos. E não apenas o Departamento de Justiça (DoJ) (…) A operação foi Deep State”.
Depois de elencar os efeitos da Lava Jato, Pepe Escobar vai ao que considera o “cerne da questão do Brazilgate: (…) o confronto sem barreiras entre os EUA e a Rússia-China”.
Pepe Escobar acrescenta: “Para o Deep State, o controle do fluxo de petróleo do Brasil para o agronegócio é igual a contenção / alavancagem contra a China”.
Em seguida ele diz que “os militares brasileiros sabem que as relações próximas com a China – seu principal parceiro comercial, à frente dos EUA – são essenciais, o que quer que Steve Bannon possa reclamar. Mas a Rússia é uma história completamente diferente.”
Tenho muitas dúvidas a respeito desta afirmação peremptória acerca da percepção dos “militares brasileiros” acerca da China. Acho que nesta percepção há excesso de “empatia antropológica”. Mas concordo com o que é dito acerca da visão deles sobre a Rússia.
É nessa dupla percepção acerca dos militares (supostamente positiva sobre China, negativa sobre Rússia) que Pepe Escobar se baseia para afirmar que “assim, o Estado dos EUA pode estar cumprindo pelo menos parte do objetivo final: usar o Brasil em sua estratégia Divide et Impera de dividir a parceria estratégica Rússia-China”.
Nesta chave de interpretação, o Morogate serviria para acentuar a oposição dos militares brasileiros contra a Rússia.
A maneira como Pepe Escobar argumenta sugere, segundo eu entendi, que a fonte do vazamento foi o Deep State.
Esta é uma hipótese, claro. Conspirações existem. Mas o volume e a natureza das informações divulgadas indicam que, das duas, uma:
-ou alguém ligado a OLJ passou os últimos anos colecionando todas as mensagens trocadas pela quadrilha;
-ou a OLJ foi alvo de espionagem sistemática, de alguém que dispõe de tecnologia e estrutura para isso.
Neste segundo caso, as hipóteses são:
-empresários atingidos pela operação;
-inteligência do Estado brasileiro;
-inteligência de algum Estado que disputa com os gringos;
-inteligência gringa.
E neste último caso, nada comprova que estejamos diante de uma operação planejada por algum setor do Deep State. Afinal, onde há um Snowden, podem existir outros.
Pepe Escobar, segundo interpreto, se concentra apenas numa destas hipóteses.
Diz ele: “Moro era um ativo certificado pelo FBI, CIA, DoJ e Deep State. Seu uber-chefe seria, em última análise, Robert Mueller (assim, Russiagate). No entanto, para Team Trump, ele seria facilmente dispensável – mesmo que ele seja o Capitão Justice trabalhando sob o ativo real, o menino Bannon Bolsonaro. Se ele cair, Moro terá a garantia do indispensável paraquedas dourado – completo com residência nos EUA e palestras em universidades americanas.”
Que há uma guerra na elite dos EUA, todos sabemos. Mas por qual motivo um dos setores envolvido nesta guerra lançaria uma “bomba” do tamanho do Morogate sobre o atual governo brasileiro?
Isto não está explicado no texto de Pepe Escobar.
A relação entre o Intercept e Pierre Omidyar também é conhecida. Mas, novamente, é preciso demonstrar o que esta relação tem que ver com a tal “bomba” do Morogate.
Isto também não é explicado no texto citado de Pepe Escobar.
Pepe diz que a “questão crucial a frente é o que as forças armadas brasileiras estão realmente fazendo neste pântano épico – e quão profundamente elas estão subordinadas ao Divide et Impera de Washington”.
De fato, as forças armadas (sobre quem, reitero, é recomendável fazer uma análise mais política e menos antropólogica) voltaram a ser peça chave na dinâmica brasileira. E, também de fato, aos militares é conveniente culpar “os russos” pelo Vaza Jato. E é igualmente correto dizer que para um setor dos EUA interessa concentrar fogo nos russos (dai a provocar o Morogate, vai uma enorme distância).
Mas nada disso que foi dito antes indica qual a fonte.
Vale dizer que Pepe Escobar, embora fale de Garganta Profunda, é cauteloso a respeito da fonte.
Mas ele faz gozação com o “principal site militar” e sua “crença fervorosa em uma Guerra Híbrida Rússia-China contra o Brasil”; com os ataques ao Telegram; e com as teorias conspiratórias acerca da visita de Dilma à Rússia.
E, por outro lado, diz que “o cenário de Vaza Jato como parte de uma psyops ( operação psicológica ) extremamente sofisticada, de domínio de espectro completo, um estágio avançado da Hybrid War ( guerra híbrida), deve ser seriamente considerado”.
“Seriamente considerado”, seguramente que sim! Mas é preciso considerar, também “seriamente”, as outras possibilidades citadas anteriormente, a saber:
-alguém ligado a OLJ;
-empresários atingidos pela operação;
-inteligência do Estado brasileiro;
-inteligência de algum Estado que disputa com os gringos;
-alguém “do bem” com acesso à inteligência gringa.
E aqui entro na minha principal divergência com o texto de Pepe Escobar: a hipótese segundo a qual “as forças armadas brasileiras – com o total apoio do Deep State dos EUA – poderiam estar instrumentalizando uma mistura de Vaza Jato e Guerra Híbrida “Russos” para criminalizar a esquerda para sempre e orquestrar um golpe silencioso para se livrar do clã Bolsonaro e seu QI coletivo de sub-zoologia”.
Esta hipótese — que Pepe Escobar toma o cuidado de tratar no condicional: “poderiam” — mistura alhos com bugalhos. E na prática pode conduzir (como fica claro na ação do agente provocador) a alimentar desconfianças no conteúdo do Morogate, em nome de um debate sobre quem seria a fonte e sobre quais seriam seus interesses mais ou menos ocultos.
O que é fato?
Fato: as forças armadas estão numa operação de criminalização da esquerda. E todo “argumento” lhes é útil.
Fato: o clã é cavernícola. E há sim diferenças entre alguns setores da cúpula militar e Bolsonaro.
Mas não é fato que esteja em curso, neste momento, um “golpe silencioso” contra Bolsonaro. O que “poderia” estar em curso é um golpe “nada silencioso” de Bolsonaro em aliança com os militares. Em sendo assim, é fundamental desmoralizar, desgastar e enfraquecer o governo.
Objetivamente, seja qual for a fonte, e sem ingenuidade nem terceirizar tarefas para o Intercept (e seus novos e velhos parceiros), o Morogate contribui, ao menos para quem defende a palavra-de-ordem “nem Bolsonaro, nem Mourão, nem centrão, nem conciliação: Lula livre e eleições livres”.
De resto, as análises de Pepe Escobar são sempre ótimas de ler!