A regulação é necessária, mas não suficiente: é preciso enfrentar o próprio modelo dual que estrutura o sistema de saúde no Brasil
Por Roberto Mardem Soares Farias (*) e Nayara Oliveira (**)
Algumas notícias que têm aparecido na imprensa nos deixam muito preocupados.
No último dia 25 de fevereiro de 2025, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) promoveu uma audiência pública para discutir uma proposta de mudança significativa na regulamentação dos planos de saúde. Visa permitir a criação de uma nova modalidade de plano de saúde denominada “Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames”. Esse modelo, também conhecido como plano “minimalista”, não prevê cobertura para atendimentos de urgência, emergência, nem terapias — rompendo, portanto, com o princípio da integralidade do cuidado.
Mais recentemente lemos em vários órgãos de imprensa que “Lula avalia apoiar criação de plano de saúde popular de até 100 reais”, talvez à busca de apoio popular para sua reeleição em 2026. Ainda que mereça ser reeleito, isso não se pode dar às custas do SUS e de outras políticas sociais inclusivas, numa barganha que parece sem limite e ou subordinada aos retrocessos impostos pela direita brasileira.
Trata-se de um retrocesso preocupante em relação ao marco regulatório estabelecido pela Lei nº 9.656/1998, que há mais de duas décadas buscou proteger os usuários do setor suplementar diante da proliferação de operadoras que negavam cobertura em momentos críticos de atenção à saúde. Com os chamados planos minimalistas, os riscos de desassistência aumentam e a fragmentação do cuidado se aprofunda — em especial para as populações mais vulneráveis, que, diante das dificuldades de acesso hoje no SUS, podem ser atraídas por planos mais baratos, mas com pouca ou nenhuma cobertura real.
Os planos minimalistas colocam o SUS em risco por alguns motivos: o sistema público será o destino das demandas de maior complexidade, que não serão cobertas pelos planos restritos. Assim, o SUS, já pressionado por subfinanciamento e sobrecarga pela insuficiência de equipes de atenção primária e especialistas, será ainda mais demandado para suprir lacunas criadas pelo setor privado. Hoje, muitas pessoas enfrentam dificuldades no SUS para conseguir consultas, exames, cirurgias e início de tratamentos — principalmente em casos mais graves. Isso gera insatisfação e faz com que, quando aparece um plano de saúde mais barato, muitos pensem: “melhor isso do que nada”. Mas a realidade pode ser mais dura do que parece.
Esses planos restritos não resolvem os problemas de saúde das pessoas, apenas empurram os casos mais graves para o SUS. Na prática, o SUS continuaria cuidando das situações mais difíceis e caras, como já faz, mas agora ainda mais sobrecarregado. É fácil prever: têm-se um sintoma e busca-se o médico do plano minimalista. Este, que não acompanha o paciente ao longo do tempo, não o conhece adequadamente, não conhece o contexto no qual vive, faz um diagnóstico. Pede-se inúmeros exames. O convênio se recusa a fazê-los. Busca-se o SUS e pressiona-se o médico de família para fazer exames, muitos inúteis ou até “porque o paciente pediu”: mais custos e mais atendimentos desnecessários. É possível que, diante da dificuldade de diagnóstico, o médico do convênio o encaminhe para especialistas. E, de novo, diante das insuficiências desses planos minimalistas, lá está novamente o paciente a pressionar por consultas desnecessárias no sistema público. É óbvio: o plano, à busca de lucro, buscará ficar com a parte mais fácil e deixar a parte mais pesada para o serviço público. Cria-se assim o um uso fragmentado dos dois sistemas.
O resultado disso é um cuidado menos efetivo, mais confuso e, muitas vezes, sem resolver o problema de saúde da pessoa. E ainda aumenta a carga sobre os trabalhadores do SUS, que precisam lidar com a parte mais difícil, com menos recursos.
Sustentando essas críticas, muito pertinentes segundo a minha avaliação, foi publicado um ótimo artigo na coluna Saúde é Coletiva do Outras Palavras (Saúde privada busca volta à desregulação – Outras Palavras), assinada por Alzira Jorge, Fausto Pereira e Rômulo Paes. São estudiosos e pesquisadores do SUS a quem respeitamos e admiramos. No seu texto, que analisa criticamente essa proposta, traz contribuições importantes ao denunciar os efeitos negativos dessa nova modalidade.
Os autores também apontam que essa proposta representa um retorno ao cenário pré-regulatório, em que operadoras sem estrutura adequada abriam e fechavam com frequência, deixando milhares de pessoas sem atendimento. Além disso, alertam que, com a entrada em vigor dos planos minimalistas, haverá maior dificuldade para organizar as filas de acesso no SUS, com risco de “bypass” — ou seja, beneficiários de planos privados sendo encaminhados diretamente para a atenção especializada, passando à frente de quem acessa o SUS por seus canais regulares. Isso acentua desigualdades já estruturadas.
Concordamos com os argumentos apresentados no artigo. No entanto, é necessário ir além. A proposta da ANS, e a forma como o artigo o critica e mesmo o debate público a respeito (pouco ainda, infelizmente), revela algo mais profundo: a naturalização da existência de um sistema dual de saúde no Brasil — como se essa divisão entre público e privado, com lógicas distintas de funcionamento e acesso, fosse inevitável.
Telma Menicucci, em sua obra Público e Privado na Política de Assistência à Saúde no Brasil: Atores, Processos e Trajetórias, demonstra que essa configuração institucional híbrida não é fruto do acaso ou de escolhas técnicas recentes. Trata-se de um processo histórico, iniciado na década de 1960, em que o Estado brasileiro estimulou o crescimento do setor privado com recursos públicos, inclusive utilizando incentivos fiscais, compras governamentais de serviços e subsídios indiretos (como a dedução de despesas com saúde privada no imposto de renda).
Menicucci afirma que esse modelo gerou um sistema estruturalmente segmentado: de um lado, o SUS, comprometido com os princípios de universalidade, integralidade e equidade; de outro, um setor privado que atua com base em critérios de mercado, acesso seletivo e serviços voltados prioritariamente à população com maior poder aquisitivo. Quando esse sistema privado não dá conta — como ocorrerá com os planos minimalistas —, transfere-se ao SUS a responsabilidade de garantir o cuidado, ampliando a sobrecarga sem os recursos correspondentes. O risco, portanto, não está apenas na criação de mais uma modalidade excludente de plano de saúde, mas na própria lógica de funcionamento do sistema dual. Tal arranjo compromete a efetivação dos princípios constitucionais do SUS e reforça desigualdades no acesso, na qualidade do cuidado e na responsabilização pública. Em vez de tratar o sistema dual como uma fatalidade ou algo “com o qual precisamos conviver”, é necessário problematizá-lo e enfrentá-lo como um obstáculo à consolidação plena de um sistema público universal.
Artigo de 2021, publicado no Britsh Journal of General Practice demonstra que a continuidade do cuidado (o acompanhamento longitudinal das pessoas ao longo dos anos pelo mesmo profissional – e, melhor ainda no SUS, pela mesma equipe) é fator, por si só, capaz de reduzir internações, uso de serviços de saúde e a mortalidade. Essa é a maior potência do SUS: acompanhamento ao longo dos anos das pessoas e suas famílias, concebendo a saúde como fruto da sociabilidade, da cultura, da inserção de classe, do trabalho, das relações com a comunidade e território, “ainda que incida num corpo que é também biológico”.
Avaliamos que uma proposta como essa, encampada pelo Governos Federal, é fazer exatamente o que o mercado sempre tentou: não acabar com o SUS (afinal é um grande espaço para construção, venda de equipamentos, medicamentos e exames), mas reduzi-lo a um SUS para pobres e capaz de estimular, via transferência de recursos, um sistema privado forte e poderoso.
É preciso que conselhos de saúde, entidades da sociedade civil, profissionais da saúde, universidades, gestores comprometidos com o SUS e movimentos populares avancem nesse debate. A regulação do setor suplementar é necessária, sem dúvida. Mas não será suficiente enquanto mantivermos um modelo que socializa os riscos e privatiza os lucros. Se quisermos um SUS verdadeiramente universal e sustentável, será necessário rediscutir o papel do setor privado na saúde brasileira — inclusive os limites de sua expansão com recursos públicos.
Por isso, não se trata apenas de discutir se o plano minimalista é bom ou ruim. Precisamos debater o modelo de saúde que queremos. Se continuarmos permitindo que o setor privado cresça às custas do SUS, estaremos enfraquecendo ainda mais o sistema que atende quem mais precisa, sem nenhuma perspectiva de que venha a ser de fato universal. Esse tipo de proposta, em vez de ajudar, agrava ainda mais as desigualdades do sistema de saúde no Brasil. Não é factível que um governo pretensamente de esquerda seja aquele a disparar o “tiro de misericórdia” que reduz o papel do SUS. O que queremos do nosso governo é mais coragem – para ampliar as equipes de atenção primária, mais especialistas para reduzir as filas das especialidades e cirurgias eletivas e garantir condições adequadas e dignas para os nossos trabalhadores. Esse tipo de proposta, em vez de ajudar, agrava ainda mais as desigualdades do sistema de saúde no Brasil. E como mostra a pesquisadora Telma Menicucci em seu livro, isso não é novidade: há décadas o Estado investe dinheiro público para fortalecer o setor privado, enquanto o SUS luta para cumprir seu papel com poucos recursos.
No contexto atual sempre somos lembrados de que não é favorável defender uma regulação adequada do sistema privado, quanto mais traçar e implementar um plano para reverter a dualidade do sistema. Mas podemos e precisamos manter a utopia. Há muito conformismo no ar, tipo o capitalismo é inevitável, tal como defende Mark Fisher de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” Preferimos acreditar que não!
(*) Roberto Mardem Soares Farias, Médico Pediatra e Sanitarista, trabalhou no SUS por mais de 40 anos, militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) Campinas e Conselheiro Municipal de Saúde.
(**) Nayara Oliveira, educadora popular de saúde, socióloga sanitarista, trabalhou por quase 30 no SUS, militante do MOPS Campinas, ex-conselheira municipal de saúde.
Uma resposta
Excelente texto! Me representa e tenho certeza que representa grande parte dos militantes do SUS. Precisamos parar de respirar por brechas. Afinal, quem está com a caneta agora somos nós! O SUS precisa de avanço e não de mais este ataque.