Por Renato Dagnino (*)
O inesperado surgimento de uma proposta de ação governamental no campo econômico-produtivo – o “Programa Pró-Brasil” – deve ser explicado e confrontado tendo por referência o momento político que vive o País e os seus possíveis desdobramentos durante a jornada que que nos levará ao “dia depois”; entendendo, como tenho dito, que ele começa amanhã.
Seu caráter anticíclico e sua orientação keynesiana, por um lado, e a sua origem, por outro, têm originado o apelido de “PAC dos militares”.
Quando mais não seja, a referência à política pública implementada por governos de esquerda torna conveniente uma reflexão sobre um programa alternativo que contemple ações que, sem serem excludentes em relação às antes levadas a cabo, se orientem por uma perspectiva mais aderente à realidade atual, a da economia solidária.
Depois de explicar o surgimento do “PAC dos militares” e de mostrar porque ele, por ser considerado um mal menor, pode vir a receber algum apoio por uma parte da esquerda, o texto apresenta as características do “PAC da economia solidária”, o PACES.
1. O “PAC dos militares”
A formulação do “PAC dos militares” ocorre num contexto que pode ser assim caricaturado.
1. baseado nos conceitos de orçamento de guerra, segurança nacional, mobilização industrial e base industrial de defesa, dos militares, ele se deve, por um lado, ao imperativo de dissimular o desgoverno e insular os conflitos causados pelo presidente, de mostrar empatia com a classe trabalhadora e de apaziguar o clamor “aberturista” da classe proprietária;
2. por outro lado, o “PAC dos militares”, ao alegar a excelência de sua governança e capacidade organizativa, pode pretender tão-somente buscar assegurar sua própria governabilidade numa eventualidade;
3. mas mesmo que seja somente mais um caso de política simbólica e sirva apenas para anteciparem-se às propostas de ação similares em gestação no âmbito da esquerda, ele não pode ser desconsiderado;
4. urubus não costumam enganar-se e a revoada dos que se alinham com o centrão pode derivar de sua certeza de que as emendas, concessões, etc., que virão com o “PAC dos militares” possuem potencial político e econômico para beneficiar seus partidos e empresas;
5. em troca, os urubus prometem produzir governabilidade para o governo e proporcionar um anteparo legal e legislativo para o presidente e seus asseclas;
6. a reconhecida capacidade dos tecnoburocratas do centrão para intermediar o emprego de recursos para atividades financeiras e econômico-produtivas a serem sistematicamente abocanhados pela classe proprietária poderá fazer com que “dê certo” o “PAC dos militares”;
7. e que, ao possibilitar que os “negócios sigam como usualmente”, sobre algo para a classe trabalhadora.
2. Qual poderá ser a reação de “uma parte da esquerda”?
Frente a essa problemática, qual seria a reação econômico-produtiva do que aqui corro o risco de caricaturar como “uma parte da esquerda”? Tendo em vista o cenário propositalmente pessimista e provocador que decorre do que arrolo a seguir, como ela se posicionará frente ao “PAC dos militares”?
1. ela há muito vem denunciando o agravamento da desindustrialização causado pelos governos golpistas e clamando por uma reindustrialização mediante a adoção de medidas visando à substituição de importações, o apoio preferencial do que sobrou da nossa “burguesia nacional”, e a implementação de reformas tributária e do sistema bancário;
2. não questiona a assimilação “ilusionista” que faz a direita entre industrialização e produção de bens e serviços com alguma intensidade tecnocientífica via processamento de recursos naturais por empresas privadas;
3. não aceita a concessão de subsídio equivalente ao destinado às empresas a outros arranjos econômico-produtivos igual ou potencialmente capazes de agenciar essa produção agregando valor aos nossos recursos naturais, ocupando trabalhadores marginalizados pela nossa estrutural condição periférica, etc.;
4. não apoia órgãos como a Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social do MCTI e as incubadoras universitárias de empreendimentos solidários para, à semelhança do que ocorre há décadas em relação às empresas, estimular a interação das universidade e centros de pesquisa com esses arranjos econômico-produtivos;
5. não considera relevante a experiência desses arranjos, como a da expansão de atividades da agricultura familiar (o segmento mais avançado da economia solidária) com absorção da mão de obra ociosa, captura do poder de compra do Estado e, em especial, orientando-se na direção da industrialização ;
6. avalia que, em que pesem considerações ideológicas e políticas, os militares parecem ser capazes de coordenar o “seu” PAC com um nível de corrupção e desperdício não superior ao usual;
7. embora insista em ressaltar que a crise pode ensejar a solidariedade, a adoção de estilos de produção e consumo mais sóbrios, racionais, distributivistas e ambientalmente sustentáveis – característicos da proposta da economia solidária – desconhece, invalida ou rejeita a recuperação do arranjo institucional que buscou com algum sucesso impulsioná-la no início do primeiro governo Lula;
8. não pondera adequadamente as dificuldades de implementar a “conversão industrial” que ela espera lograr ao orientar as empresas para a produção de bens e serviços aderentes ao seu projeto político, vis-à-vis a possibilidade de implementar uma conversão econômico-produtiva através de empreendimentos solidários organizados com este objetivo;
9. não leva em conta os potenciais impactos socioeconômicos costumeiramente estimados em análises de custo de oportunidade de propostas como as que aqui se contrapõe e, menos ainda, considera as implicações possíveis nas esferas organizacionais (impulso à propriedade coletiva dos meios de produção e à autogestão), políticas (empoderamento da classe trabalhadora), psicológicas (des-alienação do trabalho) e ideológicas (confiança em experimentos para “além do capital”) que podem engendrar;
10. tenderá a aceitar o “PAC dos militares” como um mal menor, dado que sua implementação poderá beneficiar sindicatos e outras organizações com que reciprocamente se relaciona ou influencia;
11. buscando evitar o aumento do desemprego, informalidade, e miséria, a penalização dos pequenos empresários e a severa recessão que se espera, ela estará propensa a apoiar ações governamentais semelhantes, centradas no subsídio às empresas que, estruturalmente, limitam seu impacto ao dele “descontar” seu lucro, sabidamente aqui abusivo;
12. ao fazê-lo, ela poderá contribuir para manter um estilo econômico-produtivo predatório, caracterizado, ademais por um alto nível de sonegação (estimada em mais de 10% do PIB) e corrupção, pela entrega, como norma, de bens e serviços com preço crescente e qualidade cadente, baixíssima remuneração, pela elevada dependência e vulnerabilidade em relação às multinacionais, alta, acelerada e descontrolada carga ambiental, crescente financeirização, etc.
13. por aceitar a concepção capitalista de que o conhecimento para servir à sociedade deve passar pelo mercado, limita a interação das organizações públicas de ensino e pesquisa aos canais privados de materialização do conhecimento que produzem através do subsídio a empresas de seus integrantes via “incubadoras”, “Núcleos de Inovação”, etc. o que além de desaproveitar muito do seu potencial, induz, pela via da premiação ao patenteamento, a se desviarem de sua missão;
3. O “PAC da economia solidária”
Estou consciente de que o recém apresentado pode ser interpretado como uma lista de elementos para a formulação de uma proposta dessa “parte da esquerda” a ser criticada. Uma vez que o propósito deste texto é ultrapassar a instância da crítica para buscar o “bom debate”, e não construir um “espantalho a ser condenado”, passo a esboçar o que seria o “PAC da economia solidária” (PACES).
Para deixar mais claro suas características, ressalto, por contraste, mas sem pretender exclusividade do primeiro elemento desses três pares de elementos, nem a exclusão dos que aparecem em segundo lugar, o aporte:
1. da estratégia solidária do “trabalho e renda”, ao lado da estratégia empresarial do “emprego e salário”;
2. da “geração de renda pelos mais pobres” através da economia solidária, ao lado da “distribuição de renda para os mais pobres” alvitrada pelas medidas compensatórias de renda mínima;
3. da reorganização do nosso tecido socioeconômico-produtivo no “dia depois” mediante empreendimentos solidários, ao lado da reindustrialização baseada na conversão das empresas.
O “lado da oferta” do PACES
Para apresentar o PACES, examino, primeiro, o “lado da oferta” listando o potencial existente para a produção de bens e serviços mediante sua implantação.
1. constituem o insumo principal do PACES os mais de 80 milhões de brasileiros em idade de trabalhar, que não são e provavelmente nunca serão empregados por empresas;
2. há abundantes recursos naturais para serem transformados por esses brasileiros em bens e serviços de maneira coerente com os princípios da economia solidária em seu benefício e, diretamente ou com intermediação do Estado, para alavancar o bem-viver de todos os brasileiros;
3. a produção de bens e serviços deverá ocorrer de modo descentralizado, em pequena escala aproveitando a modularidade possibilitada pelas tecnologias emergentes minimizando custos de produção e logística;
4. a distribuição dos bens e serviços deve abarcar espaços pequenos, simplificando e barateando sua logística aproveitando o potencial otimizador das TICs no que se refere a rapidez de atendimento, diminuição de desperdício;
5. a exploração de efeitos sistêmicos associados aos conceitos de cadeias de valor, produção em rede, e outros usualmente ausentes na formulação – individual, atomizada e não coordenada – dos planos de negócio das empresas permitirá significativo aumento de produtividade;
6. a significativa redução das assimetrias de poder típicas da empresa permitirá a redução dos gargalos tecnológicos impostos pela necessidade de controle dos trabalhadores por parte do seu proprietário e um consequente aumento da produtividade;
7. a maior transparência do processo interno de tomada de decisões e das relações com os agentes privados e públicos diminuirá o nível de corrupção na operação dos empreendimentos solidários;
8. a organização de redes de empreendimentos solidários visando ao adensamento e completamento de cadeias produtivas proporcionará economias de escopo e efeitos de sinergia que contribuirão, também, para sua produtividade;
9. o encadeamento a jusante e a montante dos empreendimentos solidários permitirá uma diminuição da sua dependência e subordinação nas suas relações de compra e venda com o circuito econômico formal;
10. as características da maioria dos bens e serviços a serem produzidos, o amplo espectro de rotas tecnológicas de produção e consumo viáveis e as crescentes restrições ambientais impostas fazem com que o conhecimento com eles envolvido já seja dominado ou possa vir a sê-lo com relativa facilidade pelos participantes dos empreendimentos solidários;
11. os significativos potencial, capilaridade e cobertura cognitiva das nossas redes de organizações de ensino e pesquisa aliados ao seu caráter majoritariamente público pode ensejar sua participação junto aos empreendimentos solidários num processo de conversão econômico-produtiva (mais do que apenas industrial) que envolva, além da empresa, o Estado e os movimentos populares;
12. esse processo, ao reorientar o potencial dessas redes, evadir o pesado e injustificável “pedágio” dos canais privados, evitar que o conhecimento tenha que passar pelo mercado, e conectá-las à demanda cognitiva associada às necessidades materiais e da produção e consumo de bens e serviços desses dois atores nos territórios e relações sociais e institucionais em que estão inseridos, permitirá a adequação sociotécnica da tecnociência capitalista e o desenvolvimento de soluções tecnocientíficas originais de elevadas efetividade e compatibilidade com os princípios da economia solidária.
O “lado da demanda” do PACES
Agora, do “lado da demanda” de bens e serviços, destaco alguns aspectos.
1. há necessidades de alimentação, moradia, saneamento, educação, saúde etc. insatisfeitas num volume equivalente ao de um outro Brasil do tamanho do que já existe;
2. a satisfação dessas necessidades é compatível com as condições e oportunidades que caracterizam o “lado da oferta” recém analisado, o que permite um razoável potencial de crescimento da autonomia da economia solidária e de suas redes de empreendimentos solidários em relação à economia formal e suas empresas;
3. em que pese nossa brutal concentração de renda e riqueza, é possível transformar essas necessidades em demanda efetiva mediante alteração da estrutura tributária e do incremento de políticas compensatórias (Bolsa Família, renda mínima, etc.);
4. a criação de mecanismos de crédito adequados, que articulem os “lados” da oferta e da demanda compatibilizando qualitativa e quantitativamente seu movimento, será um elemento importante para o sucesso do PACES;
5. o elevado impacto econômico das políticas compensatórias implementadas pode ser estimado pelo que foi desencadeado pelo Bolsa Família que custava apenas 0,5% do PIB e que tirou da miséria 30 milhões de pessoas;
6. é significativo impacto socioeconômico potencial da reorientação de parte das compras públicas (estimadas em cerca de 18% do PIB) hoje contratadas com empresas, para a economia solidária;
7. tomando como referência o logrado com o Bolsa Família, se 1 desses 18% fosse assim reorientado, poder-se-ia prever que 60 milhões de pessoas poderiam obter um benefício equivalente ao de liberar-se da miséria;
8. ainda tomando como referência o passado: se o recurso do programa Minha Casa Minha Vida concebido para melhorar a vida dos pobres, que são os que constroem suas casas, não tivesse limitado em 3% o destinado à autoconstrução, seu impacto socioeconômico seria muito maior;
9. a expertise institucional de articulação entre os lados da oferta e da demanda mediante as compras públicas (vide o Programa de Aquisição de Alimentos) terá que ser mobilizada e ampliada pelo PACES;
10. o crescimento econômico endógeno obtido tornará acessório insistir na ampliação de nosso estruturalmente reduzido (ocupamos o penúltimo lugar no ranking mundial, antes do Sudão) coeficiente de abertura de nossa balança comercial.
Espero que este texto, que continua o esforço que iniciei em dois anteriores, possa contribuir para o debate de propostas da esquerda para conceber ações no campo econômico-produtivo para o “dia depois”.
(*) Renato Dagnino é professor da Unicamp
(**) Textos assinados não representam, necessariamente, a opinião do Página 13.