Qual será a penitência para religiosos que apoiaram o inelegível genocida?

Votos de cristãos da extrema direita credenciaram e sustentaram o desgoverno criminoso do genocida. E agora? Votaram no mito e pagaram mico

Por Paulo Sérgio de Proença (*)

O casamento recente entre religião e política pariu monstros no Brasil. A direita extrema cristã fez da bíblia seu ventríloquo para apoiar interesses políticos em nada religiosos e configurar crimes agora revelados – e pode haver outros ainda escondidos.

O ex-presidente costumava repetir um versículo bíblico, adequadamente curto para uma mente que se ocupava exclusivamente em tramar golpe e roubar o patrimônio público (a verdade vos condenará). Essa estratégia era forma de manter o apreço de evangélicos, devido ao apego que têm às Escrituras, o que lhes permite repetir extensos trechos, de cor e salteado.

Evangélicos costumam rechear postagens com trechos bíblicos em suas redes sociais, muitas vezes ao lado de teorias conspiratórias, de fake News e de pensamentos diversos escolhidos especialmente para fechar sinapses dos que frequentam as bolhas. Essa combinação projeta uma aura beatífica a essas iniciativas; porém, não esconde as marcas de sua constituição e motivação, em extremismo abençoado por trechos bíblicos.

A interpretação da bíblia praticada por conservadores é literal; ela passa a ser um mapa da conjuntura atual que vai do pessoal ao universal, em cifras, para todas as circunstâncias da vida, de todas as pessoas, de todos os tempos. Na prática é uma caprichosa interpretação que ocupa o lugar do sagrado, eventualmente com interessada manipulação.

Outro fator de sedução entre cristãos e a direita extrema é a comunhão de pautas moralistas, conservadoras, envernizadas, em perspectiva que reduz a religiosidade à exclusiva dimensão pessoal, exilando desse processo a solidariedade que exige a implantação da justiça, da distribuição equitativa do que a sociedade produz de bom: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Bíblia com Bíblia.

Essa perspectiva individualista alimenta o acúmulo capitalista e a competição que elimina o Outro que não partilha desses valores. Instaura-se o conflito; cria-se a disposição para a luta, apoiada em trechos bíblicos de guerra e de destruição (mal lidos e mal aplicados à presente realidade); apela-se à força, idelogicamente justificada, para apoiar a adesão a militares e de militares nessa perigosa conjunção. É matar ou matar. E o Evangelho?

Religiosos extremistas em geral – evangélicos em particular – mostraram a cara na tentativa de esconder as fragilidades de suas operações. Por exemplo, André Mendonça, ultra evangélico então nomeado ministro da justiça (em substituição ao comprovadamente ultra corrupto Sérgio Moro), no dia 29 de abril de 2020, em seu discurso de posse disse que era servo do governo do ex-presidente e louvou o inelegível, afirmando que ele era um “profeta no combate à criminalidade” (https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/andre-mendonca-se-diz-servo-e-chama-bolsonaro-de-profeta). É o cúmulo… do quê? As palavras fogem – recusam-se a nomear e a qualificar a sandice.

Outro exemplo: parlamentares religiosos da bancada da bíblia, Magno Malta e Marco Feliciano à frente, envergonham a religião e a política (não mencionada a risível incompetência que os adorna); fazem da Escritura letra morta; enterram a ética; ultrapassam o liame da dignidade. Outros evangélicos não parlamentares, como o pastor Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, fez dos gabinetes do MEC um antro de corrupção comandada por pastores, religiosamente venais. Isso é que é falta de educação.

Empresários da fé não perderam o barco – nunca perdem, estelionatários que ocupam os holofotes de que tanto gostam, de forma teatral e dramática (quando não cômica); aparecem não somente em púlpitos e sacristias, mas também nas redes sociais e nos gabinetes do poder. Bispo Macedo, Valdemiro Santiago e o estridente Silas Malafaia lideram os bandos de pastores que compõem essa legião. Negociaram com os infernos, anjos do Mal. Vade retro.

O Brasil saiu muito pior de tudo isso. Comunidades acolhedoras passaram a ser ambiente de perseguição, disseminação de ódio, acirramento de diferenças; grupos e famílias antes fraternos se dividiram; inimizades emergiram. Chegou-se ao cúmulo de proporem a criminalização de interpretações não literais da bíblia. O ódio reinou, o bando se armou.

Celebrações religiosas viraram manifestações de êxtase coletivo. Cânticos e orações se tornaram frequentes em manifestações públicas desses grupos (inclusive nos atos terroristas de 8 de janeiro), em imanência apocalíptica Michele, a santa, se apresentou em performance inusitada – dança em glossolalia – quando pelo Senado foi aprovada a nomeação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (foi em causa própria?). A manifestação pública da primeira dama e sua condição de evangélica não a impediram de ser arrogante, destemperada e igualmente dilapidadora do patrimônio público. Desvario.

É compreensível que no meio religioso apoiadores tenham aderido ao genocida por convicção ideológica, pois há quem goste de sua pregação machista, elitista, racista; com ele se parecem e comungam tais princípios, bebendo no mesmo cálice o sangue do ódio. Houve apoiadores de ocasião, assustados com a pecha de comunista atribuída a Lula e a esquerdistas em geral, demonizados (de que lado estavam todos os demônios?). Ainda outros entraram na onda na expectativa de algum benefício pessoal, familiar ou grupal: “Primeiro eu”: Deus acima de todos?

Têm responsabilidade os que provocaram ao país esse mal; são coparticipantes de ataques diversos à República e suas instituições, à democracia, à laicidade do estado: Brasil acima de tudo?

Tivemos no Brasil um golpe; sim, um golpe: elitista, machista, racista, um golpe branco, que retrata o Brasil profundo, emerso das raízes escravocratas (o berço esplêndido da nação) da direita cristã.

É importante e necessário que religiosos tenham convicções e militância política. Não se pode admitir, entretanto, em nenhuma hipótese, que usem a religião para oprimir, para controlar, para corromper.

O Brasil saiu muito pior de tudo isso. Haverá penitência possível, adequada? Cinzas estão aí e querem nos cobrir. Bíblia com Bíblia.

(*) Paulo Sérgio de Proença é professor da Unilab-BA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *