Por Wladimir Pomar (*)
O início de 2021 no Brasil parece, cada vez mais, um palco de acontecimentos desagradáveis. A pandemia ultrapassou 200 mil mortos e 8 milhões de infectados. Não bastasse isso, a imprensa noticiou que a Ford deu por encerrada sua fabricação no Brasil, embora a Mercedes também houvesse comunicado decisão idêntica.
A decisão da Ford estaria relacionada ao ambiente econômico brasileiro desfavorável, de alto custo, agravado pela pandemia. Para o governo, porém, a Ford teria obtido 20 bilhões de reais em subsídios, deve 335 milhões de reais ao BNDES, e não teria motivos para encerrar suas atividades produtivas.
Em resposta, a Ford declarou estar mudando para um modelo enxuto de negócios, com poucos ativos, de alta tecnologia, alta produtividade, poucos trabalhadores, e com acesso ágil a insumos. Na mesma linha, o secretário de comunicação do governo Bolsonaro preocupou-se em dizer que a saída da Ford nada teria a ver com a situação política, econômica e jurídica do Brasil, e sim com o desejo de fabricar modelos “mais rentáveis”.
Só faltou dizer que não é possível fabricar modelos rentáveis aqui, apesar das vantagens que os governos brasileiros, desde os anos 1950, ofereceram aos investimentos estrangeiros. Segundo comentaristas, desde então, havia uma lista enorme de “incentivos” às empresas multinacionais para reduzir os custos de produção e elevar a lucratividade, incluindo descontos em impostos e financiamentos do BNDES.
Tais incentivos teriam somado centenas de milhões de reais por ano, sem compromisso de manter empregos. Ampliando os horizontes desses dados para o conjunto da indústria, da agricultura, dos serviços e do sistema financeiro, que representam o secular processo de acumulação de riquezas em menos de 1% da população, pode-se deduzir que tal acumulação promoveu, no polo oposto do mercado de trabalho, a ampliação dos sem-sem, desempregados, e pobres e miseráveis.
Ou seja, nesse polo, apesar das medidas dos governos petistas, o que ocorreu foi a extensão da miséria, com a compressão do consumo, numa dimensão que danifica a circulação das mercadorias e, portanto, do próprio capital. Ao não considerar essa hipótese, parte dos analistas não consegue explicar por que o Brasil, apesar daqueles incentivos, não consegue oferecer à Ford as condições para a fabricação de modelos com alta tecnologia e alta produtividade.
Ou seja, o Brasil não consegue oferecer, na atualidade, condições diferentes das que promoveram as industrializações dos anos 1950 e 1970, quando as empresas que investiram industrialmente no Brasil e em outros países atrasados, somente demandavam muitos trabalhadores a baixos salários. Naquela ocasião, o capitalismo avançado aproveitou as vantagens de forças de trabalho abundantes e mais baratas do que as dos Estados Unidos, Europa e Japão. Suas grandes empresas investiram nos países atrasados, incluindo o Brasil, de modo a obter uma lucratividade mais elevada. A contratação de forças de trabalho mais baratas, e a ampliação mundial do sistema financeiro, foram a mola propulsora da globalização capitalista dos últimos 50 anos.
Paralelamente, o desenvolvimento científico e tecnológico elevou exponencialmente a produtividade industrial e tornou o crescimento do desemprego tecnológico nos países capitalistas desenvolvidos uma realidade intensamente ameaçadora. Desse modo, comprimiu a capacidade de compra, estreitando o mercado e obrigando a produção de novos modelos, e mais baratos, de modo a fazer com que a circulação do capital continuasse gerando mais valor.
Ou seja, o desenvolvimento capitalista atual passou a se relacionar, ainda mais, ao desenvolvimento científico e tecnológico e à elevação, ainda maior, da produtividade. O que faz com que a força de trabalho desempenhe um papel cada vez mais secundário no processo produtivo, na geração do lucro e na circulação das mercadorias. E traz à tona, e à vista de todos, as brutais contradições entre a crescente capacidade produtiva e a enorme redução do poder de compra, levando o capital, cada vez mais, a apelar para o lucro fictício financeiro.
Em países como o Brasil, em que o desenvolvimento científico e tecnológico é reduzido, e em que os mercados são comprimidos em virtude de políticas econômicas que visam o enriquecimento de apenas parcelas insignificantes da população (inferior a 1%), os problemas de lucratividade das empresas industriais se tornam ainda mais graves, muitas vezes obrigando-as a mudanças geográficas.
Ou seja, além de sinalizar que o Brasil está passando por um processo mais intenso de desindustrialização, a saída da Ford alerta fortemente para o perigo do Brasil ser colocado fora da cadeia global de produção industrial e retornar à posição colonial de produtor de matérias primas minerais e agrícolas.
É verdade que alguns publicitários a serviço do agronegócio tentam fazer crer que “o agro é a verdadeira indústria do Brasil”. Porém, as máquinas utilizadas nos campos brasileiros são importadas, e a tendência geral desse setor econômico também é de redução da força de trabalho. Para piorar, as políticas governamentais se esforçam em reduzir o combate à pobreza e à miséria, comprimindo ainda mais os mercados.
O mesmo pode ser dito a respeito das “reformas” da equipe econômica bolsonarista, que se esforça em reduzir ainda mais os tributos sobre os mais ricos, em vender a preço de banana as estatais, em sucatear os serviços públicos de atendimento aos pobres e remediados, em substituir o serviço público civil pela ampliação da polícia militar sob comando federal, em transformar as florestas em desertos de “minerações ou pastagens produtivas”, e em fingir que transfere renda aos pobres e miseráveis.
Em sentido contrário, porém, para reforçar o mercado interno e criar condições para o desenvolvimento econômico e social brasileiro, será fundamental estabelecer linhas múltiplas de financiamento de novos projetos industriais, pequenos, médios e grandes, estatais e privados, tendo a ciência e a tecnologia como impulsionadoras, e tendo a melhoria ecológica como condição importante.
Ou seja, ao invés de apenas evitar que os pobres morram de fome, será fundamental incentivar materialmente a população brasileira a ampliar o mercado interno e a participar ativamente da reindustrialização, através de projetos de diferentes dimensões, de propriedade estatal e privada, bancadas e orientadas pelo Estado. O que também pode voltar a interessar empresas estrangeiras, tecnologicamente avançadas, a investirem e produzirem no Brasil.
É essa combinação estatal e empresarial, voltada para a criação de condições materiais de ingresso num novo patamar de desenvolvimento econômico e social, que pode fazer o Brasil escapar da desindustrialização em curso e evitar as distorções, seja das industrializações dos anos 1950 e 1970, seja da desindustrialização atual. Os propagandistas do mercado financeiro e da burguesia alienada certamente vão afirmar que tais propostas, mesmo que criem um poderoso mercado interno, capaz de consumir plenamente seus produtos, são “socialistas” e/ou “comunistas”. Mas isso já é assunto para a história futura.
(*) Wladimir Pomar é jornalista e militante do PT.
(**) Textos assinados não refletem, necessariamente, a opinião da tendência Articulação de Esquerda ou do Página 13.