Por Daniel Araújo Valença (*)
Artigo enviado para a Revista Esquerda Petista em 01/12/21
O Chile vivenciou uma explosão popular, o “Estallido Social”, em outubro de 2019, cujos dilemas e consequências se arrastam até a atualidade. São mais de mil presos políticos, 360 pessoas com perda ocular parcial ou completa, e dezenas de mortos, a maioria a partir da repressão de carabineiros (o correspondente chileno à polícia militar).
Para responder ao Estallido em seu momento mais crítico, o establishment chileno viu-se obrigado a convocar uma constituinte, anunciada em 10 de novembro de 2019. À época, o país estava totalmente sublevado, e a convocação foi uma tentativa de pacificação do país. Do acordo entre governo Piñera e setores da oposição (especialmente a centro-esquerda e algumas lideranças como Gabriel Boric) saiu uma proposta de constituinte que não previa a paridade entre homens e mulheres em sua composição, tampouco reserva de vagas para os povos indígenas originários. Ademais, o poder originário era convocado, mas sob regras de aprovação textual pré-estabelecidas – somente com mais de 2/3 dos assembleístas seria possível aprovar determinado tema, garantindo, assim, que os principais pilares do governo Pinochet tivessem maior facilidade de sobreviver às mudanças da constituinte.
O acordo constituinte realizado à noite, e em reunião fechada, de um lado reduziu a temperatura do país, mas, de outro, foi recebido com desaprovação e descrença por quem, nas ruas, estava sendo massacrado pelas forças repressivas chilenas. A pressão popular continuou fazendo com que a direita recuasse e avançasse as propostas da paridade e de reserva de vagas indígenas. Com este movimento, o tema do quórum qualificado permaneceu intacto e seu questionamento seria reivindicado novamente durante os debates do processo constituinte.
As burguesias chilenas ainda fariam campanha pelo NO, com o intuito de derrubar a assembleia constituinte pela raiz. Porém, com as urnas abertas, um retumbante 78% aprovou a sua convocação. O resultado demonstra, também, que a direita chilena detém um núcleo duro de 22%.
Quando da eleição dos constituintes, destacaram-se as listas de candidaturas independentes, bem como a coalizão do Partido Comunista com Frente Amplio. A direita neoliberal e a antiga Concertación (coalizão do Partido Socialista com outros de centro e centro-direita), que estiveram à frente do governo desde o fim da ditadura (a Concertación de 1990 a 2010 e, depois, de 2014 a 2018 e a direita neoliberal entre 2010 e 2014 e na atualidade), foram derrotadas nas urnas, sendo que o bloco de direita não alcançou o número de vagas apto a bloquear por si só as proposições e votações.
A Constituinte então começou seus trabalhos e, em paralelo, deu-se a corrida presidencial. Quanto a esta, teve seu primeiro episódio importante com a realização de prévias vinculativas, instrumento previsto no sistema eleitoral chileno.
O Partido Comunista e Frente Amplio, então, submeteram-se ao escrutínio popular colocando os nomes de Daniel Jadue e Gabriel Boric, respectivamente, à disposição da população. Contrariando todas as pesquisas que indicavam Jadue como líder da corrida à presidência, a prévia da coalizão de esquerda resultou na candidatura de Gabriel Boric.
Meses após a vitória popular no processo constituinte, o primeiro turno realizado em novembro deste ano o posicionou como segundo colocado, com 25%, contra 27% de José Antônio Kast, candidato da extrema direita. Franco Parisi, em candidatura da anti-política e sem ter saído de território norte-americano nem mesmo para votar – pois se pisasse em território chileno seria preso por dívida na pensão alimentícia de seus filhos –, teve 13%; Sebastián Sichel, candidato de Piñera, viu sua candidatura desidratar ao longo do período eleitoral e terminou com apenas 12,5%. A candidata democrata cristã, Yasna Provoste, representando a antiga Concertación, teve apenas 11,7%.
No Congresso, o resultado apontou para relativo equilíbrio, e nem Kast nem Boric poderão vir a ter maioria absoluta durante seu governo. Por outro lado, o Partido Comunista, pela primeira vez desde 1973, voltou ao Senado com duas cadeiras (antes do golpe de 73 detinha 9 cadeiras). Foi eleita a primeira deputada transexual da história do Chile, Emilia Schneider, de 25 anos, e as urnas deram a maior votação da história à Fabiola Campillai, militante que perdeu a visão em ambos os olhos devido à repressão carabineira durante protesto em que ela se encontrava em ponto de ônibus a caminho do trabalho. Além da visão, a senadora recém eleita também perdeu o olfato e o paladar, como sequelas da bomba de gás lacrimogênio atirada contra ela.
De qualquer forma, o resultado do primeiro turno, que a tanta gente assustou e atraiu as atenções para aquele país, contrasta radicalmente com o processo eleitoral que, agora em 2021, elegeu a bancada constituinte. O que teria ocorrido? Como se explicar tal mudança de humor em intervalo temporal tão curto?
O crescimento de Kast se deu na esteira do esvaziamento da candidatura da direita gourmet, Sebastián Sichel, em processo semelhante ao brasileiro em 2018.
Cenários de aprofundamento de crise econômica, social e política tendem a esvaziar quaisquer possibilidades de alternativas moderadas. A direita tradicional e a centro-esquerda domesticada perdem margem de manobra e são ultrapassadas por forças que buscam responder aos problemas reais da população. Foi o que ocorreu no Chile, mas também no recente processo eleitoral peruano.
Vimos que, mesmo na votação da constituinte, 22% se posicionaram a favor da herança de Pinochet. Kast, portanto, não é um raio em céu azul e, de partida, já contava com uma base social ávida por uma candidatura de enfrentamento, à direita. Portanto, ele concentrou sua campanha na defesa da ordem capitalista – e em seu estágio atual de avanço do capital contra o trabalho e o comum – e de temas e propostas que pudessem agradar ao conservadorismo em processo de organização. Dentre as pautas que agitam sua militância, estão desde a proibição do funcionamento em solo chileno da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais – Flacso, por ele acusada de agente do comunismo latino-americano, à criação de órgão de perseguição a comunistas, a revogação da lei do direito ao aborto seguro, a privatização de estatais, a recusa à convenção n° 169 da OIT, de proteção aos direitos dos povos indígenas, etc.
Mas para além de um programa muito bem voltado para o conservadorismo e a defesa da ordem capitalista, o candidato também sabe lidar com os anseios mais imediatos da população. Em declaração, após os resultados do primeiro turno, ele afirmou que “a única candidatura que vai recuperar a paz, que é a alternativa para confrontar os delinquentes e o narcotráfico e que porá fim ao terrorismo é a nossa. Gabriel Boric e o Partido Comunista querem indultar os vândalos que a destroem. É preciso dizer: foram Boric e o Partido Comunista que se reúnem com terroristas assassinos e nunca estiveram ao lado das vítimas do terrorismo e da delinquência”.
Se o confronto se dá com um projeto de defesa do que há de mais abjeto na humanidade, dever-se-ia recorrer ao que há de mais belo na construção histórica da humanidade. Mas, assim como no Brasil, à extrema direita se busca responder com moderação. Boric, após tais declarações, respondeu que “aos que temem a delinquência, dizemos que estaremos com vocês e que seremos implacáveis com o narcotráfico (…)”. O que temos que fazer é entender por que escolheram alternativas diferentes, e convencê-los de que somos um melhor caminho para conduzi-los a um país mais justo.
Por outro lado, em paralelo ao processo eleitoral, desenvolveu-se o início do processo constituinte, em que, de um lado, a direita – com todos os seus instrumentos, inclusive meios empresariais de comunicação – buscou cotidianamente descredibilizar-lhe e, de outro, constituintes vinculados ao campo popular, como a própria presidenta, a mapuche Elisa Loncon, tomaram a posição, idealista e de certo republicanismo ingênuo, de não envolver-se no embate eleitoral para não prejudicar a instituição constituinte. Ocorre que, com Kast, as chances de derrota da constituinte pululam de maneira extraordinária.
Frente ao fascismo, deveria-se defender o socialismo ou o comunismo, e não um “país mais justo”. Quem tem familiares presos, cegos, mortos, não quer apenas algo mais justo. Se em seu programa Boric defendeu o direito das mulheres, indígenas, o meio ambiente, em nenhum momento acenou para reformas estruturais e profundas no país como um programa autônomo da classe trabalhadora contra o capital. Não há, só para se ter uma ideia, qualquer linha sobre transformações no interior da instituição Carabineiros e Forças Armadas, nem nacionalizações nem quaisquer medidas de avanço da classe trabalhadora contra o capital que pauperizou todo o país desde a ditadura Pinochet.
Possivelmente, seja tal moderação a motivação que explica o porquê, após uma participação política histórica nas ruas, nas urnas apenas 47% do eleitorado optou por manifestar-se.
Mais importante do que acenar para o eleitorado de centro-direita, seria a candidatura Boric conquistar toda essa massa de pessoas que não enxergaram no processo eleitoral quaisquer possibilidades de mudanças reais em sua vida. O prazo é curto e os caminhos seguidos no Chile serão fundamentais para a correlação de forças que se inaugurará em 2022 na região.
(*) Daniel Araújo Valença é professor da graduação e mestrado em Direito da UFERSA, coordenador do Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Marxismo e América Latina – Gedic, Vice-presidente do PT/RN.