Por Nayara Lúcia Soares de Oliveira (*)
Não é congelamento, é redução!!
A EC95, Emenda Constitucional do Teto de Gastos, também conhecida como Emenda da Morte, que prometeu o congelamento dos recursos da união com políticas sociais no governo Temer, vem, na verdade, provocando uma queda excepcional dos gastos com saúde, que representaram a cifra de 20 bilhões de reais perdidos, entre 2017 e 2019, mesmo considerando que a receita da União cresceu cerca de 27% em 2019, em relação a 2016.
O descalabro pode ser constatado também na redução significativa da renda per capita da saúde, que passou de R$ 595 em 2014 para R$ 555 em 2019. Com o estrangulamento do SUS como política social universal, e todas as demais políticas de retirada do Estado da Economia viabilizadas desde 2016, medidas aprofundadas a partir de 2019 com Bolsonaro/Guedes, há um impacto crescente na desigualdade social, no aumento da pobreza e na piora do quadro de adoecimento e de condições de vida da população, visto que as famílias ampliam gastos com saúde simultaneamente à crescente privatização do sistema e queda do gasto público.
Os dados que confirmam isto podem ser lidos, por exemplo, em textos escritos recentemente pelos companheiros Carlos Ocké Reis (técnico do IPEA e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde) e Francisco Funcia (da equipe do Instituto de Direito Sanitário e da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde). E também aqui: https://www.brasildefato.com.br/2020/02/21/orcamento-da-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-conta-da-emenda-do-teto-de-gastos
Já se previa que tal situação pudesse vir a ocorrer, quando amplos setores da sociedade se mobilizaram contra o ajuste fiscal do governo golpista de Temer, agravado por Bolsonaro, representando de fato a desvinculação do gasto mínimo de 15% pela União com a Saúde, aprovado pelo Congresso pouco tempo antes. Sabia-se que a medida representava desconsiderar que a população crescia (entre 0,8 a 1% ao ano), que as necessidades de saúde e os custos com saúde também aumentavam, seja pelo envelhecimento (o aumento proporcional da população idosa tem aumentado os custos da atenção à saúde), seja pela incorporação tecnológica em saúde (com medicamentos e equipamentos decorrentes do desenvolvimento tecnológico). Tanto é que tramita no STF (muito lentamente, claro), por causa do desrespeito ao princípio constitucional da vedação de retrocesso, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5658 referente a EC 95/2016, com várias mobilizações impulsionadas pelo Conselho Nacional de Saúde através de abaixo-assinados, resoluções, recomendações, atos pelo país e o amplo consenso estabelecido na 16ª Conferência Nacional de Saúde em agosto de 2019, no sentido de revogá-la por sua inconstitucionalidade e inviabilização do SUS.
Mais e diversos ataques!
A desvinculação do piso da Saúde implementada pelo governo federal desde 2016, tem no governo Bolsonaro um curso mais abrangente e profundo: Guedes &Cia colocaram em tramitação no Congresso a PEC 188, que postula unificar os gastos mínimos obrigatórios com Saúde e Educação nas três esferas de governo. Estando claro que a perda do caráter obrigatório do piso setorial individual é problema porque o piso unificado de ambos setores não está garantido. Combinada a isto, o serviço público também é atacado por outras PECs em tramitação, a 186/2019, em que se permite reduzir compulsoriamente em 25% salários e jornada dos servidores públicos e a 187/2019, onde o governo federal será autorizado a extinguir vários fundos públicos e utilizar seus saldos bilionários.
Não bastasse tudo isso, internamente ao Ministério da Saúde, vem sendo efetivadas investidas de morte ao SUS universal e à Atenção Básica (AB), na execução do orçamento, desde a portaria 3992/17 sob Temer, em que em nome da “flexibilidade e autonomia de gestão” se comprometeu a manutenção e a ampliação dos serviços de AB e de vigilância em saúde, como também mais recentemente com a portaria 2979/19 sob Bolsonaro, em que foram estabelecidos novos critérios de rateio dos recursos para AB, limitando o financiamento às pessoas cadastradas, perdendo a única transferência governamental em saúde de base populacional, aplicada com autonomia pelos municípios, prejudicando também a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além só das pessoas cadastradas. Ambas investidas tiveram a concordância dos gestores do SUS, que as aprovaram em seus órgãos de deliberação, mas não foram analisadas ou deliberadas pelo Conselho Nacional de Saúde, como define a lei 141/2012.
Ampliando os ataques à universalidade e aprofundando a privatização do sistema, a Medida Provisória 890/19, institui uma agência de direito privado, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), que realizará serviços de responsabilidade do Estado com orçamento público, podendo efetivar parcerias com a iniciativa privada, contando em seu conselho deliberativo com representante das empresas privadas da saúde, mas não do Conselho Nacional de Saúde. O programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, prevê contratação de médicos em regime CLT, abrindo mão da exigência de residência médica, sem prever a melhoria e construção de Unidades Básicas de Saúde (UBS). E mais: o Ministério lançou uma consulta pública para estipular uma carteira de serviços da AB, que, apesar de poder padronizar os serviços entre as diferentes UBS e aumentar a transparência para população, neste cenário de corte de recursos pode na verdade restringir o serviço, ao invés de ampliá-lo.
Por fim, além de tudo que já foi apontado, segundo estudo de Francisco Funcia a respeito da situação dos restos a pagar inscritos e reinscritos para execução financeira do Ministério da Saúde em 2020, houve um aumento significativo do estoque de restos a pagar de 2017 em diante, algo em torno de R$ 20 bilhões! Assim, conforme a reprovação dos Relatórios Anuais de Gestão do Ministério da Saúde de 2017 e 2018 pelo CNS, o cumprimento da aplicação mínima em saúde não foi efetivamente usufruído pela população, já que houve o empenho da despesa, mas esta não foi efetivamente liquidada e paga pelo governo. O estudo pode ser lido aqui: “Saúde é direito de todos e dever do Estado: o piso federal desidratado, os restos a pagar do Ministério da Saúde e a lógica invertida do “carnê das Casas Bahia”. Disponível em: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-07-fevereiro-2020?lang=pt
Este conjunto de medidas ultraneoliberais visa fazer com que o SUS vá minguando e gradativamente sirva para atender ações cada vez menos abrangentes, mais precárias e voltadas somente a populações empobrecidas, mas continue existindo para viabilizar os serviços privados, que se manterão com o filão de mercado, enquanto a maioria da população morre e adoece.
Como seguiremos em luta?
Desde a 16ª Conferência Nacional de Saúde, os movimentos e forças organizadas definiram uma Jornada de Lutas para o enfrentamento do projeto conservador e ultraliberal em curso, juntando bandeiras que se agregam às lutas gerais da sociedade brasileira –“Pelas liberdades democráticas e pelos direitos sociais: em defesa do direito à saúde”– tendo a revogação da EC 95 como carro chefe. Estas articulações estão sendo trabalhadas a partir de linhas de ação como as plenárias de saúde estaduais; a realização de um Encontro Popular de Saúde, que ocorreu durante o Fórum das Resistências em janeiro de 2019; e a construção da Semana do 7 de abril, com o propósito de colocar 100 mil pessoas na rua em todo país.
Internamente ao PT, o Setorial Nacional de Saúde tem buscado exercer seu protagonismo nessas movimentações, desde a 16ª Conferência, participando ativamente da Jornada de Lutas, organizando sua militância por meio da realização do Encontro de lutadores/as petistas da Saúde no final de março de 2020, ao mesmo tempo articulando a tramitação no Congresso Nacional, em conjunto com a mobilização pela revogação da EC 95.
Uma proposta que está sendo analisada, a partir de consulta realizada com Natália Bonavides, deputada federal pelo PT, é se seria viável mobilizar a população, convocando um plebiscito, em que se verifica se o eleitorado é ou não a favor do teto de gastos, ao mesmo tempo em que se leva este debate à população. Não caberia mais realizar um referendo, pois de acordo com a Lei 9.709/98, um referendo pode ser convocado no prazo de trinta dias da promulgação da medida legislativa. Portanto, o plebiscito é um instrumento político de pressão popular, mas para que o teto de gastos seja revogado, é preciso que seja aprovada uma nova PEC. Dessa forma, teríamos duas opções: por um lado protocolar uma PEC sobre o tema (e pressionar para sua aprovação por outros meios), por outro usar o plebiscito como instrumento de pressão.
(*) Nayara Lúcia Soares de Oliveira integra o Conselho Municipal de Saúde de Campinas (SP) e o setorial nacional e estadual SP de saúde do PT