Sambódromos, espaços segregados e de espetacularização do samba

Por Fausto Antonio (*)

Epigrafia do território como encruzilhada

Nela, a encruza, sinônimo de território restitutivo, o espaço geográfico e o sistema cultural são instâncias sociais

Somos da restituição

O carnaval pode empiricizar o território como encruzilhada dos “sistemas de objetos e de ações” (Milton Santos, 1994;1996).  Proponho o conceito de território como sinônimo de encruzilhada.  A encruzilhada, que é lugar e conceito, é categoria de análise quando processa a relação indissociável do espaço histórico, na totalidade da sua constituição com o transcendente não localizado.  A encruzilhada é, sobretudo, uma categoria territorial, filosófica e política. O território como encruzilhada é restitutivo. Fora dessa sistematização, o uso da encruzilhada é apenas uma palavra; o conceito ou chave interpretativa, como veremos, é de outra ordem.

Sendo o que é, a encruzilhada é o “território usado” (SANTOS, 199; 1996) e praticado pela restituição. Como tubo cósmico que relaciona ou religa dinamicamente o histórico social ao ancestral, concebido seminalmente pelos Dogons (OLIVEIRA [s/d]) e aqui, igualmente, como vibração ou energia, a encruzilhada é base também para a compreensão cosmológica, que não é o foco desse artigo. Mesmo assim, é útil negritar que somos da restituição. A   encruzilhada, que é o próprio território, pressupõe a centralidade da ancestralidade e da sua historicização pelo sistema cultural negro-brasileiro. Ao se historicizar como modo de produção da existência e objeto da filosofia da ancestralidade e/ou categoria filosófica, o sistema cultural negro brasileiro se afirma como instância social. Na conjunção, na encruzilhada, base material e imaterial, temos o encontro dialético do espaço como instância social e igualmente do sistema cultural negro-brasileiro como instância social.

A ancestralidade se empririciza ou se historiciza a partir do sistema cultural, que não se reduz ao canto, dança e artes, mas se afirma uma totalidade, de modo exúsico e na encruzilhada, como modo de produção ancestral, restitutivo, e como categoria filosófica. Somos, no território, movidos pelo modo de produção restitutivo, derivado da concepção eboísta ou do ebó, (SODRÉ, 1988) que é contrário ao acúmulo definidor do capitalismo. Há, portanto, no sistema cultural negro-brasileiro, um método para construir ou reconstruir a sociedade, numa tessitura circulada pela ressonância ancestral, diametralmente oposta às desigualdades naturalizadas pelo capitalismo. Não é por outra razão que nos Quilombos e remanescentes não há propriedade privada da terra. Numa síntese, somos da restituição e/ou do equilíbrio das trocas e relações, quaisquer que sejam. Fica patente que falamos das relações sociais e, num contínuo, das relações com o transcendente.

Sambódromos, espaços segregados e de espetacularização do samba e da vida

Feita a delimitação conceitual, quero dizer que os Sambódromos são espaços  segregados e de espetacularização do samba, fenômeno específico, e da  escola de  samba; outro específico e carregado de crescente  sofisticação técnica, e do  carnaval que permite a  compreensão, como espaço e logo instância social da sociedade brasileira e, de modo  especial, do uso seletivo, intencional e  segregado do território.   A apreensão parcial, destarte em profundidade dessa manifestação coletiva, exige um método de compreensão do território, a rigor da sociedade, e de intervenção.

O método para compreender o  estágio  de  desenvolvimento do carnaval de  escolas  de  samba pressupõe, no  território   como encruzilhada,  o  entendimento  do “estado  ou estágio de  desenvolvimento   dos sistemas  técnicos  ”(SANTOS, 2021)         constituidores dessa manifestação e, sobretudo, “o  estado  ou  estágio de desenvolvimento  da política”(SANTOS, 2021), que  diz  respeito ao modo pelo  qual as  escolas estão organizadas ou são arranjadas hegemonicamente nos espaços segregados dos sambódromos. Os Sambódromos explicam, não totalmente, mas apenas parte do problema. Na contramão, o samba não “escolarizado” pela modelo escola de samba e o carnaval, com inúmeras manifestações do sistema cultural negro-brasileiro, pipocam abertamente, num estado de revanche convulsiva, contra a centralização e controle dos desfiles. As manifestações transitam, fora dos Sambódromos, pelas entranhas da cidade e pela materialidade do cotidiano.

As manifestações feitas nas cidades, reguladas por Sambódromos e  reformas  urbanísticas no século XX, são emblemáticas  no  advento de eventos.  As cidades de São Paulo e Rio de   Janeiro  sofreram reformas urbanísticas, no transcurso do século XX, para acolher verticalmente modernizações e gerar ou multiplicar privilégios e lucros para as empresas e   empreendimentos imobiliários. O processo, de modo excludente, derrubou igrejas, cinemas, teatros, expropriou os moradores de cortiços, verticalizou certas áreas, alargou avenidas, construiu viadutos, minhocões e, ao mesmo tempo, numa ordem eugênica, atualizou “limpezas  étnicas”  antinegro e, numa autêntica diáspora  urbana, institui bairros dormitórios, destituídos de bens materiais e imateriais básicos, e favelas literalmente  abandonadas pelo Estado e segregadas pela  ação cotidiana da violência  policial.

Apesar das violências estruturais e do racismo, os carnavais em Salvador, Recife, Olinda e no Rio de Janeiro, entre outras cidades brasileiras, ressignificaram estas cidades, a própria noção de “urbanização” e notadamente a sociedade brasileira. Mas existe e persiste a ação e o controle dirigidos pelas empresas televisivas, poder empresarial, indústria turística, governos, Estado e seus aparatos de repressão jurídica, midiática e policial. No entanto e a despeito desses limites impostos, nas grandes cidades  há, hoje, 2024, uma explosão de manifestações culturais de rua e nas ruas, que  recuperam  cidade como espaço de  todos.

A relativa autonomia desses cortejos, bandas, blocos afros, afoxés, maracatus, escolas de samba, jongos, congadas, capoeiras, grupos de manifestantes difusos e diversos, goza nas cidades, à revelia da violência policial e institucional-estrutural, de crescente e conjuntural autonomia na organização carnavalesca. É relativa, no entanto, porque é vigiada e, muitas vezes, contida pela repressão policial.  Há, no quadro dessas manifestações, uma pulsante autonomia de mundo, imaginário e de formas insubmissas em gestação.

O carnaval caótico e sem tempo do relógio, temporalidade perversamente regulada pela mídia e centralização dos desfiles, na encruzilhada que é o território, ativa o retorno ao território pela determinação do seu uso e sem as fronteiras dos camarotes e da recepção controladora e inerte. O carnaval pela cidade inteira recupera o território como abrigo e, se convertido em encruzilhada, passa imediatamente à categoria de território praticado pela ação não dos tambores ou dos objetos em geral, mas sim pela ação sistêmica dos manifestantes. Nas entranhas da cidade, então, emergem as recepções participativas. Estamos, a bem de uma possível convulsão, no domínio da comunicação com o próximo e da recepção como coautoria ativa.

Emerge, no processo educativo das  ruas, o currículo do  lugar, que vigorosamente  expulsa o currículo vertical, universalizante, do carnaval do modelo-peça sambódromo e, na mesma configuração segregatória, a peça-trio-elétrico, que não obstante o requinte tecnológico é, como peça-objeto, palco e também show e, quase invariavelmente, espaço de cordas de isolamento, de abadás pagos e de ruídos sonoros de grande alcance, que impedem a verdadeira comunhão e comunicação e, numa adição perversa, prevalece a seleção de manifestantes orientada pela branquitude e branqueamento. Fora desse encaixe, do carnaval totalitário dos trios-elétricos e dos desfiles centralizados, cresce a possibilidade não tão-somente de convulsão no evento carnavalesco, mas do alongamento dessa subversão para questionar a sociedade e as desigualdades. Dessa margem ou possibilidade, indagamos, não é possível, num crescendo e além da festa, uma revolução?

Sambódromos e Trios-elétricos na contenção das massas

O uso das técnicas é um dado capital na produção de sambódromos, bumbódromos e Trios-elétricos. As técnicas, como sistemas controlados pela ação humana, podem libertar ou oprimir. No momento atual, com a cultura contida pelas técnicas, as forças, mobilizadas pelas peças sambódromo, bumbódromos e trios-elétricos, são elementos de contenção das massas carnavalescas, festivas, e do contingente negro-popular. No movimento contrário, o objetivo é ocupar a rua como parte dos corpos e dos instrumentos populares. O movimento tem, no seu cerne, o reconhecimento empírico de que a sociedade brasileira é significada pela cultura negro-popular. O movimento, assim delineado, não poderá ser contido.

O sambódromo existe. Mas há a explosão dada pela pluriversalidade de manifestações, que ultrapassam o evento segregado nos sambódromos, nos bumbódromos e permite o deslizar das pessoas pelos espaços banais e com instrumentos, fantasias e adereços dados pelas  condições objetivas e atualizados pela convivência e ação política. Os aparatos técnicos servem para os manifestantes atuarem e agirem no cotidiano e notadamente no território-encruzilhada, que é tornado abrigo e lugar para viver, posição de pacto e prática, que é política por excelência. Quem samba e caminha pelos becos, ruelas, favelas, morros, avenidas, centros urbanos, metrôs, ônibus, praias, jardins, praças, num circuito sem limitações, segregações e violências policiais, leis arbitrárias e contrárias aos deslocamentos, tem condição de rever a cidade e desfazer, não isoladamente, a centralização dos desfiles. Em outros termos, o manifestante olha, critica, analisa e age para alterar a sua própria e coletiva posição social.

O samba e o carnaval devem ocupar a cidade inteira e enunciá-la como um todo. Os desfiles especiais, conduzidos pelo poder do dinheiro e dos aparatos tecnológicos, suspendem o uso coletivo das ruas e num contínuo da cidade. O carnaval é capturado, sequestrado mesmo, e o sistema samba, numa das suas modalidades, é encapsulado por um modelo hegemônico de escolas de samba.

Quais os problemas do modelo espetacular e dos sambódromos? 

O  sambódromo  esconde, nas alas seletivas das escolas de samba, os negros(as), os  favelados e a sociedade urbana como ela realmente é. Temos, assim e com a escolha segregada de integrantes e de alas, meios para esconder a vida que transita e  vive   no  espaço encruzilhado, aquele que é restitutivo e, portanto, de todos, a favor do espaço segregado. O Sambódromo, no entanto, que pode gerar ilusão de inclusão, espetaculariza, de modo fragmentado e vertical, uma parte dessa realidade. As escolas de samba, mesmo que massacradas por críticas dos meios de comunicação, podem tematizar o racismo, a violência policial e as desigualdades sociais como enredo, meros temas, nada mais. O carnaval, que poderia contribuir com o projeto ou processo de luta para redefinir a sociedade e os lugares sociais, fica vedado. Há uma interdição urdida e sistemática. As percepções da realidade são afastadas ou há uma recusa da realidade e uma imediata, interesseira, valorização, é uma escolha, dos eventos e da estandardização dos manifestantes, que apenas se carnavalizam.

O que delimita e viabiliza a espetacularização do samba, escolarizado pela forma escola de samba, é a sua redução a evento. A manifestação deixa de ser ação, possibilidade de mudança e lugar do inesperado. Adentra soberano o evento e com ele a espetacularização da escola de samba, no caso do sambódromo. As  técnicas, os  objetos, adereços, carros  alegóricos e todos  os  demais   sistemas de objetos, presentes nos sambódromos, revelam um determinado uso dos sistemas técnicos, o  que se  constitui na  tecnoautonomia justaposta a tecnoautomação, e o evento, com o uso que se dá aos recursos técnicos, entra perigosamente  como uma segunda inteligência, que são as recepções fascinadas e os manifestantes faiscando e movimentando ou sendo movimentados por objetos, que prenunciam uma inteligência e autonomia dos e nos objetos e a consequente opacidade dos  sambistas.

As escolas de samba, como sistemas técnicos, só podem ser entendidas a partir do uso dado aos objetos e aos manifestantes, o que põe em relação dinâmica os objetos e o uso dado a eles isoladamente e no conjunto. A compreensão facilita, como uso ou possibilidade, as bases para um outro arranjo e comando nos desfiles para a superação do evento, que é fugaz e da consequente espetacularização das escolas de samba.

(*) Fausto Antonio é professor da Unilab – Bahia, escritor, poeta e dramaturgo


Referências

OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia  da ancestralidade. Disponivel em: https://filosofia-africana.weebly.com › uploads ›.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 2.Edição. São Paulo: Editora Record, 2021.

SANTOS, Milton. Técnica, Espaço e Tempo. São Paulo: Editora Edusp, 1994.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço. São Paulo: Editora Edusp, 1996.

SODRÉ, Muniz. O território e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988.

 

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