Por Raquel Mirian*
A governabilidade dos países com tradição democrática é brecha para a consolidação do capitalismo avançado que, aviltados em meio a uma crise humanitária de saúde pública e de seguridade social, ainda se blinda por uma forte classe que prefere ter liberdade para comer vários sorvetes do que o direito de todo mundo comer um sorvete no sábado. É claro que acabar com a pandemia é a nossa vontade hoje, mas paremos para refletir o que significa para a democracia um presidente da república, que fomenta a divisão geopolítica dos corpos e que se mostra capitaneado pela fascismo, não compor nenhum partido político hoje.
O pluralismo polarizado é atualmente o modelo do sistema partidário, em que a hegemonia política, antes exercida pelos partidos trabalhistas e populares, hoje se faz pelos partidos centristas ou totalmente de direita. Exemplo disso é o governo Bolsonaro, ávido em seus encontros com os partidos ao centro do congresso. A “consolidação democrática” institucionalmente, tenta criar a necessidade de um partido empresarial, ou seja, burguês, que consiga realizar a estabilidade do Brasil.
Acontece que a estabilidade dos países sociais-democratas ignora totalmente o despojo da desigualdade social – promovido pelo just in time, hoje bem nítido com a pandemia – evidente na diferença entre quem pode entrar em auto-isolamento e quem não possui essa possibilidade. Como ocorre com os trabalhadores informais, que representam 38,3 milhões de pessoas, ou de setores essenciais, amortecidos pelo corporativismo adaptável da crise do covid-19, imersos na cadeia finita da agenda neoliberal do Estado burguês, designado por um presidente que insolentemente utilizada um “e daí?” para expressar seus anseios necróticos e homicidas. Mas, em contrapartida, a democracia é um sistema que se pode também, por meio dele, implementar o socialismo e a revolução brasileira, que não está fora do jogo político, principalmente na dianteira de um período de transformações biossociais que implora por uma nova estrutura.
Não podemos, diante dessa primazia dos partidos centristas e de direita, assim como das figuras políticas notáveis, resistir sem ter um mínimo de lógica possível. Pois a realidade nos foi dada, e o governo bolsonarista, mesmo não nos representando, foi eleito pelo modelo democrático do sistema eleitoral, tem governabilidade por dispor das estruturas estatais (está no comando das esferas do Estado), e é um governo que tem credibilidade por estar em uma instância política elevada. O fato é que o governo possui governabilidade, só que não é a favor da classe trabalhadora, dispõe de credibilidade, que não advém das camadas populares e é legítimo por ter sido eleito pela democracia. Mas, o ponto crucial do problema constitucional está na nossa forma de defesa e resistência.
O sistema capitalista passa por uma crise em seu macro sistema. As crises desde 2008 são responsáveis pelo aprofundamento dessa biopolítica gestora de capital subdesenvolvido. Inúmeras empresas e redes comerciais privadas e internacionais, incluindo o agronegócio, se reuniram para colaborar com a atenuação da crise pandêmica do covid-19, como transmitido rotineiramente pelas mídias digitais, em que se mostram “unidas” – veja bem, entre aspas – contra o vírus do novo século. Entretanto, essa solidariedade hoje se configura como a máscara de ferro da iniciativa empresarial. Ela não passa de uma ilusão imperiosa da necessidade do sistema capitalista nesse momento atual, pois, no pós-pandemia, se as forças de esquerda e revolucionária não se entenderem, a guerra híbrida se intensificará, as manobras pelo poder serão ainda mais nefastas e a tentativa de reestruturação do capitalismo, a partir dos preços altos de mercado, desemprego contínuo – 12 milhões de pessoas hoje -, impostos escandalosos e a falsa solidariedade irão abrir caminhos para uma crise ainda mais profunda, que comandará o país todo num rugido.
Estamos diante da perniciosa presença de um governo de milícias que empoeira as medidas de prevenção do covid-19 e consegue subtrair qualquer expectativa positiva que pudesse surgir deste desgoverno, mesmo conhecendo a face direitista do Mandetta. Em meio à complacência do bolsonarismo quanto ao vírus que se tornou o infortúnio de milhões de vidas, ninguém suspeitaria do Twitter. De fato, o twitter tornou-se o sucedâneo de 2020, ano que seria marcado pelas eleições municipais, incumbiu-se de protagonizar as separações políticas e não menos amorosas do presidente com o ex-ministro da justiça, assim como substituiu massivamente e talvez de forma malograda as manifestações de ruas.
“Supondo que venha um ano mau e estéril, durante o qual uma horrível fome roube muitos milhares de vidas. Sustento que, ao fim da calamidade, se fossem pesquisados os celeiros dos ricos, neles se encontrariam imensas provisões de grãos. De sorte que, se essas provisões tivessem sido distribuídas em tempo, nenhum dos infelizes que morreram de fraqueza e debilidade teria sido tocado pela inclemência do céu e a avareza da terra.” (pág. 139. A Utopia. M. Thomas).
Apesar das turbulências que o governo vem passando, não é o suficiente para o tamanho da classe proletária, a sentença estar anunciada. Temos de agregar politicamente à esquerda, passando por desestruturar as mentiras do presidente embuste. Como se vê na CPI das fake news, sendo um caminho para desmascarar a governabilidade do governo bolsonarista. Atenuar sua credibilidade e mostrar as facetas ilegais que foram usufruídas para o governo ter se legitimado pelo sistema eleitoral, elemento chave das disputas não convencionais, das guerras híbridas. Nessa perspectiva, a construção dos movimentos populares deve se fazer nas mídias digitais e nas ruas (esta, no pós-pandemia), escancarando a complacência do governo com a crise do covid-19, as milícias e os responsáveis pela morte da Marielle Franco e desvelando a pretensão do governo em desgovernar todas as riquezas estatais brasileiras.
“Se o leão souber sua própria força, nenhum homem poderá controla-lo”, dito por Thomas More, em The Tudor. E sublevamente, toda a classe de trabalhadores se tornará este leão.
*Raquel Mirian é estudante de Ciências Sociais na Univasf é militante petista e da AE em Petrolina-PE (Free image by Alexas_Fotos from Pixabay)