Sete ideias feministas para avançarmos em 2022

Por Maria Caramez Carlotto (*)

A primeira versão deste texto agora publicado por Página 13 foi apresentada numa “live” do blog Manifesto Petista, sobre se devemos enfrentar ou recuar diante do conservadorismo que ataca as mulheres. A proposta era apresentar sete premissas feministas para pensar a relação entre mulheres e o conservadorismo. Esta versão (cujo título original era “O conservadorismo contra as mulheres: enfrentar ou recuar?”) sintetiza as sete premissas abaixo.

1/ “Conservadorismo” é um termo insuficiente para descrever o que estamos enfrentando.

Isso porque, o movimento que chamamos de “conservador” não tem como objetivo “conservar” o status quo da sociedade brasileira, especialmente no que concerne à posição das mulheres. Na verdade, trata-se de um movimento para transformar a realidade atual, no sentido de produzir uma outra sociedade em que as mulheres assumam um lugar diferente do atual: um lugar mais privado, mais doméstico e domesticado, menos autônomo e livre.

Na prática, é um movimento de reação a mudanças em curso ou já consolidadas na sociedade brasileira, como as que permitiram o avanço da escolarização feminina, seu ingresso consolidado no mercado de trabalho, alguns direitos sociais e seus parcos direitos reprodutivos e sociais. De tão radical, esse movimento reacionário chega a ser, no limite, revolucionário.

Daí porque, embora possamos considerar que se trata de retroceder em relação a uma série de conquistas que as mulheres conseguiram, não é politicamente correto falar de um movimento conservador, como se o objetivo fosse, como dito, manter o status quo. Paradoxalmente, no momento, conservadores somos nós o que, do ponto de vista político estratégico, é um erro.

Portanto, seguindo a sugestão de Flávia Biroli no livro “Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil”, só devemos usar o termo conservador qualificando-o como um conservadorismo reacionário ou, se quisermos, precisando que se trata de uma reação conservadora, no limite revolucionária.

O fundamental, em todo caso, é considerar que não estamos diante de um movimento conservador defensivo, que busca apenas conservar a sociedade atual tal como está, mas de uma ofensiva conservadora, que busca transformar a sociedade em uma direção profundamente reacionária.

2/ Mas se estamos diante de um conservadorismo reacionário, cabe perguntar: esse movimento está reagindo a que? No caso das mulheres, sem dúvida, ao impacto político e social das políticas influenciadas pelos movimentos feministas que, embora tenham surgido há mais de um século, ganham novo significado a partir da crise econômica e política atual, intensificada desde 2008.

Movimentos feministas no plural, porque, como sabemos, não existe um único feminismo, mas feminismos. Apesar de reconhecer essa diversidade, podemos dizer que o cerne comum de todo o feminismo é questionar os diferentes processos de naturalização que buscam apagar a construção política e social dos papeis de gênero, em especial, do masculino e do feminino. Isso levou o movimento e o pensamento feminista a colocar, como pauta prioritária, o questionamento da dualidade público/privado, tal como reforçada – quando não constituída – pela sociedade capitalista burguesa.

Não por acaso, trabalhos como os de Silvia Federici, em especial “O Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva”, alcança enorme influência no movimento feminista hoje. Em suma, esse e outros trabalhos da chamada “teoria da reprodução social”, procuram mostrar como o capitalismo precisa de mulheres em casa, no espaço privado de reprodução, dedicadas ao trabalho de cuidado, domesticadas e controladas. E isso não só para que os homens possam, assim, hegemonizar o espaço público e os trabalhos produtivos, gozando de autonomia, liberdade e poder político, mas para que o custo geral de reprodução da força de trabalho seja rebaixado, aumentando as taxas de exploração como um todo. Foi essa organização dual público/privado que a burguesia naturalizou, tanto quanto o próprio capitalismo, e que o movimento feminista questionou historicamente, politizando as relações privadas da esfera familiar, denunciando suas hierarquias, desigualdades e formas de violência e opressão.

3/ Esse cerne comum a todo feminismo, embora fundamental, é claramente insuficiente para pensar o lugar das mulheres nas sociedades periféricas, especialmente naquelas como a brasileira, atravessadas por processos seculares de dominação e racialização de grandes parcelas da população.

Por isso, é preciso incorporar de maneira muito decisiva o pensamento feminista negro, periférico, africano e latino-americano ou, se quisermos, os feminismos do sul que, juntos e de diferentes maneiras, chamam a atenção para as relações raciais e de classe que permitem a exploração de algumas mulheres mais do que outras.

Nessa chave, como o capitalismo precisa de mulheres “em casa”, em sociedades de origem escravocrata como a nossa, isso se manifesta sob a forma de uma exploração brutal de vasta parcela racializada da mão-de-obra feminina, que se responsabiliza pelo trabalho de cuidado em larga escala, precarizado e superexplorado.

Igualmente domesticada e controlada por violentos processos de estigmatizarão e dominação social, essa mão-de-obra feminina é constitutiva da cultura e da materialidade da sociedade brasileira. Impossível não mencionar, aqui, os trabalhos incontornáveis sobre racismo e sexismo na vida brasileira, de Lélia Gonzalez, que, dentre outros papeis importantes, cumpriu a de ser a primeira e única mulher eleita para o primeiro Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores formado no início dos anos 1980.

Isso nos ajuda a entender por que o movimento que resulta na valorização das relações tradicionais de gênero, que produz mulheres “presas” à esfera doméstica, conta com apoio não só de uma parcela majoritariamente masculina, inclusive de setores da classe trabalhadora, mas também de mulheres, principalmente, mas não só, das classes dominantes.

4/ A reflexão feita a partir dessas duas matrizes diferentes de feminismo, nos permite ressignificar a importância histórica, para mulheres de diferentes raças e classes sociais, das políticas de Estado que se desenvolveram como consequência direta da pressão de movimentos operários de vertente comunista e social-democrata, impactados pelo movimento feminista desde o final do século XIX.

Ainda que com ritmos de implementação muito diferentes nos países do centro e da periferia capitalista, esse “Estado de Bem-estar social”, nas suas versões mais ousadas, promoveu políticas e direitos que iniciaram um processo de libertação das mulheres do espaço doméstico, bem como do trabalho reprodutivo e de cuidado precarizado. Numa lista não exaustiva, cabe destacar políticas como:

  • a ampliação do sufrágio;
  • o reconhecimento do direito à escolarização feminina e a efetivação e democratização desse direito;
  • o reconhecimento do direito ao divórcio e a diferentes graus de controle do processo reprodutivo;
  • o reconhecimento de direitos trabalhistas, ainda que de maneira tardia e incompleta, também para o trabalho doméstico tal como realizado na periferia do sistema;
  • a promoção de políticas de transferência de renda, com foco nas mulheres;
  • e, principalmente e de maneira muito decisiva: a organização de serviços públicos de cuidado, com destaque para os serviços de educação (da creche à pós-graduação); de saúde e de seguridade social, incluindo a previdência.

É fundamental frisar esse ponto: sem políticas públicas voltadas para o cuidado e a preservação da vida de crianças, jovens, doentes e idosos e sem direitos trabalhistas, especialmente voltados para o trabalho reprodutivo e doméstico, não é possível falar em efetivação dos direitos das mulheres, que permanecerão encerradas na esfera doméstica.

Vale notar que a história das chamadas “políticas de bem-estar social” não teria sido a mesma sem a influência das feministas socialistas e comunistas. Retomar o pensamento de figuras como Aleksandra Kollontai, primeira Comissária de Bem-estar Social soviética, nomeada já em outubro de 1917, nesse contexto, é muito importante. Ainda que sua influência concreta seja objeto de controvérsia, ela simboliza o impacto negligenciado do pensamento e das políticas anticapitalistas sobre desenho dos Estados de bem-estar social europeus, encerrados, no geral, dentro de um horizonte propriamente capitalista que, por isso mesmo, acabaram questionados de maneira muito fundamental quando o capitalismo aprofundou sua crise, a partir dos anos 1970 e, com mais força, desde 2008.

 5/ É justamente por isso que precisamos sempre frisar que o conservadorismo reacionário, no plano político-moral, é inseparável do capitalismo ultraliberal ou do neoliberalismo de choque, no plano político-econômico. São eles que, juntos, estão empenhados em produzir uma nova sociedade, que tem como um dos seus pilares a (re)naturalização das relações de gênero, processo que já está produzindo, como resultado, uma retirada sistemática das mulheres do espaço público e o reforço do seu aprisionamento ao espaço doméstico.

Basta olhar os dados do mercado de trabalho brasileiro pós-pandemia para vermos que as mulheres são, hoje, as mais afetadas pelo desemprego e pela precariedade dos serviços públicos. Isso se deve ao fato delas terem sido obrigadas a assumir o trabalho de cuidado das crianças, idosos e enfermos, intensificados ao máximo durante o auge da Pandemia. Mas também resulta do subfinanciamento de serviços públicos, resultado de políticas como o Teto de Gastos, e da redução de direitos, produzida pelas Reforma trabalhista e da Previdência.

A questão que se coloca é simples: a destruição de serviços públicos como saúde, educação e seguridade social pressupõe a privatização do cuidado.  Quem vai assumir isso? As mulheres, claro! Remuneradas ou não.

6/ É por isso que o sistema de crenças que sustenta tanto o ultra(neo)liberalismo quanto o conservadorismo reacionário é machista, ou seja, profundamente conectado às vantagens masculinas ligadas à naturalização dos papéis de gênero que vinham, justamente, sendo colocadas em questão por décadas de movimento feminista.

Essa ideologia machista inclui, dentre outras dimensões:

  • a (re)valorização da família tradicional, marcada por papéis cristalizados de gênero, em que homens e mulheres têm seu lugar caudado na dicotomia público/privado – vale notar que essa “família tradicional”, hoje, não tem lastro nenhum na realidade. Não só porque as taxas de divórcio crescem em todas as classes sociais, mas, sobretudo, porque especialmente entre as camadas mais pobres da classe trabalhadora, existe um predomínio de lares chefiados por mulheres que, no mais, ainda são responsáveis pelos recursos financeiros da família;
  • essa (re)valorização da família tradicional é calcada na (re)naturalização dos papeis de gênero, que só se torna possível por meio de um recrudescimento da socialização masculina e feminina – só assim é possível entender ideias como “meninos vestem azul; meninas vestem rosa”;
  • ataques materiais e simbólicos às instituições de Estado responsáveis pelas políticas de cuidado – esses ataques vão desde movimentos mais evidentes como o “escola sem partido” e em defesa do “homeschooling”, passando por críticas à “ideologia de gênero nas escolas”, mas envolve, também, a desmoralização do sistema único de saúde, por meio de argumentos negacionistas como propagado pelo movimento “antivacina”, chegando a políticas de redução do Estado, com destaque para o Teto de gastos e a proposta de Reforma Administrativa;
  • questionamentos abertos ou velados ao processo de escolarização feminina, especialmente por meio do descrédito das instituições de ensino que promoveram e democratizaram essa escolarização – nunca é demais frisar: o antiintelectualismo é, sobretudo, um movimento masculino de reação ao avanço das mulheres no sistema escolar, do ensino básico à pró-graduação.
  • masculinização do espaço público, naturalizando a sobrerrepresentação masculina – vale lembrar, aqui, o ciclo “Brasil de ideias: mulher” organizado pelo “Instituto voto”, por ocasião do dia internacional da mulher, que tratava justamente da participação feminina na política, com a presença exclusiva de homens, a saber: Jair Bolsonaro, Arthur Lira, Paulo Guedes, Tarcísio de Freitas e Rodrigo Garcia, mais que um erro ou descuido, se trata de uma política deliberada de promoção da exclusão, numa sinalização de que o espaço público e de formulação intelectual deve ser hegemonizado por homens.
  • Difusão de valores masculinos e promoção da masculinidade tóxica, especialmente ligada à apologia da força física, do porte de armas e de outras formas de violência – a defesa do armamento da população, embora tenha outros sentidos políticos, não pode ser deslocado deste contexto de aumento da dominação masculina, sendo desnecessário lembrar o aumento das taxas de feminicídio e violência contra mulheres;
  • Questionamento de direitos reprodutivos reconhecidos para as mulheres, como o aborto em caso de estupro – esse movimento, que atinge o auge na perseguição de crianças vitimas de violência sexual que têm o direito de ser submetidas ao procedimento via SUS, nada mais é do que uma forma mais ou menos explícita de apologia ao controle dos corpos das mulheres, que se manifesta em violência doméstica e sexual e no já mencionado aumento brutal do feminicídio no país.

7/ Diante disso, não surpreende que o bolsonarismo, no seu núcleo duro, seja um movimento masculino e que, diante das chances reais de Lula derrotar Bolsonaro, as mulheres se agreguem em torno da candidatura petista. O que surpreende é que tenham setores que apoiam a candidatura Lula que achem que a questão de gênero não é importante e que precisamos fazer uma campanha que não paute o tema das mulheres de maneira específica ou, pior, que devemos ceder ao conservadorismo racionário, incorporando de maneira descontextualizada, valores tradicionais como a “defesa da família”.

Os dados do mais recente Datafolha falam por si. As mulheres são a maior parte do eleitorado brasileiro e, no geral, o apoio delas à candidatura Lula é mais do que o dobro da de Bolsonaro: 49% a 23% no primeiro cenário.

Bolsonaro cresceu entre os homens, especialmente os homens brancos, de classe média e média alta, mas não só: o apoio dos homens a Bolsonaro é maior do que o das mulheres em todas as classes sociais, mostrando que se trata, de fato, de uma tendência estrutural.

Porém, é importante reconhecer que embora proporcionalmente o apoio a Bolsonaro seja maior entre os homens ricos, em termos absolutos, ou seja, numericamente, são os homens da classe trabalhadora e as mulheres de todas as classes sociais que garantem o segundo lugar para Bolsonaro na corrida presidencial.

Significa dizer, portanto, que há uma batalha ideológica e fundamental a ser feita, daí porque, diante do conservadorismo contra as mulheres, só temos uma saída: enfrentar!

Mas enfrentar nos nossos termos, ou seja, a partir de uma reflexão e de uma política que incorpore as contribuições dos diferentes feminismos e que nos permita redefinir os termos desse debate. Não estamos diante de um conservadorismo de natureza puramente ideológica. Mas de um movimento reacionário de natureza política, econômica e social que, para produzir a modernização econômica capitalista e ultraliberal pressupõe formas retrógradas de organização da sociedade, especialmente para as mulheres. A produção de desigualdades é da essência dessa forma de organização, e é isso que, como parte da produção de uma nova sociedade, precisamos enfrentar.

(*) Maria Caramez Carlotto é militante petista e professora da Universidade Federal do ABC.

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